sábado, 5 de janeiro de 2013

O CREPÚSCULO DOS DEUSES.




"Elogio da Sombra"
 
 

A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão)
pode ser o tempo da nossa felicidade.
O animal morreu ou quase morreu.
Restam o homem e sua alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas
que não são ainda a escuridão.




Buenos Aires,
que antes se espalhava em subúrbios
em direção à planície incessante,
voltou a ser La Recoleta, o Retiro,
as imprecisas ruas do Once
e as precárias casas velhas
que ainda chamamos o Sul.



 

Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas;
Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para pensar;
o tempo foi meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói;
flui por um manso declive
e se parece à eternidade.

Meus amigos não têm rosto,
as mulheres são aquilo que foram há tantos anos,
as esquinas podem ser outras,
não há letras nas páginas dos livros.


Tudo isso deveria atemorizar-me,
mas é um deleite, um retorno.
Das gerações dos textos que há na terra
só terei lido uns poucos,
os que continuo lendo na memória,
lendo e transformando.
Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
a meu secreto centro.
            
                                                           
 

Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, agonias, ressurreições,
dias e noites,
entressonhos e sonhos,
cada ínfimo instante do ontem
e dos ontens do mundo,
a firme espada do dinamarquês e a lua do persa,
os actos dos mortos,
o compartilhado amor, as palavras,
Emerson e a neve e tantas coisas.

Agora posso esquecê-las.
Chego a meu centro,
a minha álgebra e minha chave,
a meu espelho.


Breve saberei quem sou.
 
 
Autor:
Jorge Luis Borges
 
Nasceu em  Buenos Aires, capital da Argentina e faleceu em Genebra.
É considerado o maior poeta argentino de todos os tempos e um dos mais importantes escritores da literatura mundial.
 
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16 comentários:

  1. Não é só Borges...
    A Argentina é um país que me seduz muitíssimo.

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  2. Por que será que a Argentina tem esse poder, o poder de sedução?
    Lamentavelmente, ainda não li nada (que me recorde) desse escritor.

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  3. Associei, de imediato, o título deste post à grande obra operática do mestre Wagner. Deste escritor também nunca li nada (puro desconhecimento de quem passa a maior parte do tempo a ouvir música)...(não se pode ir a todas). Espero, um dia, vir a ter a mesma visão da velhice. Todos nós para lá caminhamos. Saibamos vivê-la quando chegar... se chegar. :-):-):-)
    Beijinhos

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  4. TEATRINHO

    Tempo - Olá dona Velhice
    Velhice - Olá, senhor Tempo, Bom Ano lhe desejo para que mo possa dar
    Tempo - Eu não dou nem tiro, sou apenas a marca do que vai acontecendo e a oportunidade de aproveitares o espaço para fazeres o que te resta
    Velhice - E o que me resta?
    Tempo - Saberes quem és. Se não conseguires não te admires. São tantos os que partem sem o saber

    CAI O PANO

    [Janita o (belo) poema de José Luís Borges é um desafio...]

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  5. Janita,
    o poema é belo (apesar do autor não ser dos meus preferidos).

    Quanto à sombra, esta sombra, é fria, tal como a outra. Gosto mais do sol e do ... sol da vida!

    Na sombra, por vezes, já nem sabemos quem somos....

    Beijinho

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  6. Janita gostei muito, mas não conhecia, nunca li nada deste autor!
    A velhice não é algo que preocupa, tento viver um dia de cada vez, assim aprendi com a doença e a morte do meu falecido marido e com a morte do meu netinho, o que me assusta é os meus netos não me terem para continuarem a ter a vida com o minimo de condições e alguma comida enquanto eu posso.
    Bom fim de semana amiga

    beijinho e uma flor

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  7. La Recoleta é o nome de um cemitério. Um dia iremos todos para lá morar. :-(( Entretanto fico-me pela tranquilidade da minha cubata. :-))

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  8. Olá, Janita!

    Felizes dos que se despedem assim...De bem com a vida, e sem chorar a partida.

    E amanhã vai estar solzinho; bom Domingo!

    Beijinhos; fica bem.
    Vitor

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  9. Este grande poeta merecia um lugar em La Recoleta.
    Beijinho minha querida Janita!

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  10. Tuve la suerte de escucharle hace bastantes años ya no me acuerdo como se llamaba donde dió unas magnificas charlas.

    Argentina un país enorme grande y cuando estuve ya demostraba una singular riqueza y la gente super amable,estoy hablando cuan gobernaba Galtieri.

    Saludos

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  11. Jorge Luis BOrges, difícil de ler.

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  12. Acabadinho de chegar, neste dia cinzento, dou aqui com este post sobre a Argentina e Borges, a combinação (quase) perfeita. Isso não se faz, amiga! :-)))
    Comecei a visita aos amigos que durante este tempo de ausência mantiveram a fidelidade das suas visitas e comentários, o que me deixa desvanecido. Há coisas muito boas na vida e uma delas é a blogosfera e os amigos que nela criamos.
    Obrigado
    Beijinho e até breve. As visitas continuam...

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  13. Minha querida Janita

    Muito verdadeiro este poema...ir para o outro lado serenos é muito bom.
    Deixo o meu primeiro beijinho deste ano e desejo que a felicidade esteja sempre na tua vida.

    Sonhadora

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  14. O Borges...
    Ando a ler contos do Borges. Voltei a ter aquela sensação de "ter um bom livro para ler" que é uma coisa muito próxima da felicidade. Ele lida com o "tempo" como mais ninguém. Estava a ler o poema e a pensar que só podia ser do Borges, e quando vi que era, fiquei feliz como um puto que encontra um brinquedo perdido.
    Beijo

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  15. Amiga Janita, esta música arrepia-me sempre que a ouço e na voz de Joan Baez ainda é mais arrepiante e bela.
    O poema não conhecia e fez-me reflectir . LINDO!

    beijinho

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