quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Partilhando Leituras # 2

    Não sou dado a pânicos, mas nessa noite estive mais perto de entrar em pânico do que nunca. De qual de nós andavam eles atrás – do Larry ou de mim? Ou dos dois? O que saberiam ao certo sobre a Emma? Porque é que o Checheyev tinha vindo falar a Bath com o Larry e quando, sim, quando? Aqueles polícias não andavam certamente à procura de um qualquer professor universitário que tinha resolvido ausentar-se por uns dias. Estavam a seguir uma pista, farejavam sangue, e perseguiam alguém que despertasse os seus instintos mais agressivos.
    Porém, quem pensavam eles que ele era? – o Larry, o meu Larry, o nosso Larry? – o que é que ele tinha feito? Esta questão do dinheiro, os russos, os acordos, o Checheyev, eu próprio, o socialismo, novamente eu – como é que o Larry podia ser outra coisa senão o que nós tínhamos feito dele: um revolucionário inglês da classe média sem direcção certa, um permanente dissidente, um diletante, um sonhador, um contestatário crónico; um falhado semicriativo, gasto, namoradeiro, sem ambições nem piedade, um falhado com inteligência mais do que suficiente para não demolir qualquer argumento e obstinação mais do que suficiente para não ceder aos obviamente débeis?
     E quem pensavam eles que era eu – este funcionário público reformado e solitário, a falar sozinho línguas estrangeiras, a fazer vinho e a brincar ao Bom Samaritano nas suas apetecíveis vinhas de Somerset? Por que razão haviam eles de concluir que, lá porque vivo sozinho, sou incompleto? Porque haviam eles de perseguir-me só por não poderem deitar a mão ao Larry ou ao Checheyev? E a Emma  –  a minha frágil Dama de Honeybrook, talvez não tão frágil assim, agora noutras paragens   – há quanto tempo não andariam eles a vigiá-la? Subi a escada. Não, não foi assim. Corri escada acima. Tinha o telefone ao lado da cama, mas mal levantei o auscultador verifiquei humilhado que me tinha esquecido do número que queria marcar, algo que nunca me tinha acontecido em toda a vida, nem mesmo nas situações operacionais mais difíceis.
    E para que é que eu tinha vindo cá acima, se havia um telefone perfeitamente funcional na sala, e ainda outro no escritório? Por que razão tinha resolvido correr pela escada acima? Lembrei-me de um zeloso professor do curso de formação que nos ia matando de tédio a dissertar sobre a arte de quebrar um cerco. Quando as pessoas entram em pânico, fazem-no sempre para cima, dizia ele. Correm para os elevadores, tapetes rolantes, escadas, tudo o que as leve para cima, nunca para baixo.
     Sentei-me na cama. Baixei os ombros, para relaxar. Rodei a cabeça, seguindo o conselho dado por um guru qualquer no suplemento a cores do jornal que ensinava ao leitor as técnicas da automassagem. Mas não senti qualquer alívio.
     Sentia os ouvidos a zumbir. Ouvi gritos, depois soluços, depois os gemidos do vento. Vinha por aí borrasca. Era a ira de Deus. Ontem um nevão de Outono, um despropósito, e esta noite um verdadeiro temporal, com as persianas a bater, o vento a assobiar nas caleiras e a fazer a casa ranger.


Continua.
   
  



14 comentários:

  1. Mais, mais! Gosto deste jogo, deste partilhar de leituras com os amigos.

    Abraco grande , Janita

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    1. Eu sei, Ricardo.

      Tens paciência e gosto, suficiente, para apreciar este tipo de partilhas!
      E eu, estou a gostar muito de partilhar...Tudo vale a pena, - como disse o poeta- não é assim? :-)

      Um beijinho e abraço muito grandes.

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  2. Assim sem o contexto percebo pouco...

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    1. Devagar devagarinho, vais percebendo tudo, Daniel.
      O contexto vai-se apreendendo aos poucos.
      O Cranmer é um agente secreto reformado. Com o Larry e a Emma vão formar um triângulo cheio de emoções. Já estou quase a terminar o livro, mas obviamente que não posso transcrever para aqui o livro na íntegra. São 393 páginas.
      Estou a fazer uma selecção que dê para perceberem, sem se tornar exaustivo, para vós e para mim, claro está.

      Se eu quisesse resumir, faria como tenho feito das mais vezes. Percebeu?
      ;)

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    2. Tá percebido.

      Acho, acho não, tenho a certeza, nunca li um policial.

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    3. Agora fizeste-me rir.
      Os serial killers que tu crias nunca são apanhados, pois não? Lol

      Este é mais de espionagem...

      :)

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  3. Vou continuar a acompanhar.
    Beijinhos

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    1. Fico muito contente, Pedro.
      E quase posso garantir que o Pedro não se vai arrepender, espero! :)

      Beijinhos

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  4. Gostei. Gosto destes medos que nos acordam e nos fazem viajar.

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    1. Luis Coelho,

      Se puder siga esta leitura que estou certa lhe irá agradar.
      Obrigada.

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  5. Gostei da tua partilha, vou aguardar e cuscar até ao proximo episódio.

    Um beijinho

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    1. Amiga Adélia,

      Se conseguires; com paciência e um bocadinho de tempo, lê até ao fim. Vais gostar. :)
      Sei que na blogosfera este tipo de publicações, alongadas, não despertam muito a atenção dos leitores.
      Mas eu gosto. Assim como gosto de os publicar gosto de os ler em outros blogues.

      Um beijinho.

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  6. um escrita límpida e impressiva. gosto muito - há muito tempo! rss

    beijo

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    1. Oh, meu amigo, isto vai ficar um pouco nebuloso, quando a personagem principal se embrenhar pelos meandros da Inglaterra pós-thatcheriana...:)

      Posso perguntar-lhe se já leu o livro?

      Beijinhos!

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