terça-feira, 10 de maio de 2016

OFÍCIOS EM VIAS DE EXTINÇÃO.


O Direito à Inveja

Em Portugal, há um problema com a inveja. Em concreto, há um problema com a grande quantidade de gente a queixar-se de ser invejada.
Ao vivo ou por email, em privado ou em programas de televisão, há sempre alguém a lamentar-se dos invejosos: não podem ver nada, são uma praga que não descansa.
Quem recebe esse desabafo é sempre solidário, demonstra saber exactamente o que o outro está a passar, também ele já foi muito invejado.
Entre outras consequências, a paranóia da inveja generalizada propiciou  o nascimento de uma modéstia entre aspas.
Disfarçada de virtude, essa «modéstia» é medo dos outros, também pode ser desinteresse pelos outros ou falta de convicção no próprio valor.
A inveja só chega ao invejado se este permitir, se estiver vulnerável, se não estiver preparado. Em Portugal, há demasiadas pessoas a alimentarem o equívoco de que todos têm de gostar delas.


A inveja é um sentimento. Se respeitarmos os outros, é elementar reconhecer-lhes liberdade para sentirem. Essa, parece-me, é a primeira característica de existir, de ser alguém e de ter um nome. Não nos compete decidir acerca daquilo que os outros devem sentir. Além disso, é improvável que consigamos saber com precisão aquilo que os outros estão a sentir.
A não ser que estejamos convencidos de que os outros são um reflexo nosso, como um espelho que reproduz até o invisível. Nesse caso, a inveja que lhes imaginamos é, afinal, a nossa.
A inveja deveria ser legalizada ou, pelo menos, despenalizada. Como as drogas leves, faz mal apenas a quem as consome. Devidamente informado dos efeitos, o invejoso faria um uso muito mais consciente dessa substância e, assumindo-se, não precisaria de frequentar meios pouco recomendáveis que, com facilidade, agravam a sua situação e potenciam consumos mais pesados e destrutivos.
Mas isso seria noutra realidade. Aqui, os invejosos são espectrais. Quando alguém apresenta uma fotografia, quando alguém garante possuir provas da existência desses fantasmas, a imagem está sempre desfocada e fica-se sempre na dúvida se será realmente um invejoso ou apenas um defeito de revelação.
Com tantos a serem invejados, sobram poucos para se dedicarem a invejar.
Talvez esse seja um ofício em vias de extinção, como os amola-tesouras.

Crónica do escritor José Luís Peixoto, transcrita da revista NM.

A imagem foi recolhida da Net, o mais semelhante possível à fotografia com que o escritor ilustrou esta crónica.



30 comentários:

  1. Pois, por minha parte declaro-a extinta. Não invejo ninguém, e acredito que também ninguém me inveja. Daí que está como os dinossauros. Existiu mas já não existe.
    Falando sério, a inveja é um sentimento que corrói. Faz muito mais mal ao invejoso do que ao invejado. Há muitos, muitos anos experimentei esse sentimento, quando lutava para ser mãe e não o conseguia. Tinha inveja de todas as mulheres que conseguiam o que eu não conseguia, apesar de todos os tratamentos e dinheiro gasto. Engravidar. Ia-me levando à loucura. Deus me livre e guarde de voltar a sentir algo parecido.
    Um abraço

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    1. De facto, amiga Elvira.

      Ao longo da História muitas foram as pessoas que se lamentaram de ser alvo da inveja alheia, mas nunca, jamais, em tempo algum, reconheceram ter sentido 'inveja' de alguém! :)

      Falando mais a sério, compreendo bem o que a Elvira sentiu ao ver outras mulheres serem mães e a Elvira não conseguir.
      Isso passou-se com a minha filha. Ia dando em doida! Ela e eu, por ver o seu desespero.
      Isso aconteceu quando teve de ser, e olhe que passaram três anos de grande tormento.

      Não sei se será inveja o que sentiam ao ver as amigas serem mães, acho que era mais um sentimento de dolorosa impotência perante o desejo de querer muito algo e não o conseguir.
      Penso que a inveja é um sentimento mais mesquinho, embora aqui me contradiga, em relação ao ponto de vista do JLP. Ou talvez não!
      Felizmente, tanto a Elvira quanto a minha filha lograram o tão almejado sonho, mas paradoxalmente, ambas ficaram só com um filho.

      Um abraço.


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  2. Por mim, o termo 'inveja' não teria honras de dicionário. Era simplesmente proibido, já que ninguém teve a coragem de passar ao lado da sua criação.
    Nem mais uma palavra sobre ... esta palavra.
    Beijinho, Janita.

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    1. Será possível que nem tu entendas a subtileza do que está escrito nas entrelinhas, Ó Observador??
      Isto é, notoriamente, ( pelo menos foi assim que entendi esta crónica) uma sátira àquilo que hoje em dia se lê nas redes sociais e nos programas televisivos, tipo reality shows e em toda a sociedade, de um modo geral.

      Em todas as situações menos favoráveis, todos se queixam da inveja dos outros.
      Ah, e tal, quando um clube de futebol perde, por exemplo, a culpa ou é do árbitro ou do treinador. Raramente admitem que foram os jogadores que não jogaram bem ou não houve oportunidades de golear, a equipa adversária...INVEJA...dizem eles!
      Os políticos dizem mal uns dos dos outros? INVEJA...dizem eles!

      Resultado: Todos se queixam de ser alvo de inveja, nunca de invejar. Daí, esta brilhante ideia do JLP, escrever sobre o tema e rematar: "Com tantos a serem invejados, sobram poucos para se dedicarem a invejar."

      Aprende que eu não duro sempre, António! Ehehehehe

      Beijinhos! :)

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    2. O implícito é quase um inimigo do explícito, Janita.

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    3. Mas é no implícito que reside a magia da maior parte das coisas interessantes, António!!
      Tudo o que for demasiado explícito, perde o encanto da descoberta...:)

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  3. Consta existirem diversos graus de inveja, assim como que numa escala.
    Não sei se sou, se serei, ou se já fui invejado coisa que não me tira o sono.
    Invejoso eu? Sim, acho que com maior ou menor intensidade a inveja já me possuiu, ao contrário "do objecto" das minhas invejas que nunca a mim chegou.

    Beijokas com sorrisos

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    1. Que gosto ver-te finalmente por estas bandas, Kok!!

      Pois, deixa que te diga que quem não deve ser nada invejada sou! Não possuo nenhum atributo ou talento que seja susceptível de ser invejado. Mas também me aceito como sou e ainda bem que não tenho nada de especial.
      Não imagino qual possa ser o «objecto» que gostarias de possuir, mas havendo saúde e amor, já se tem tudo o que há de melhor e isso acho que tu tens. Mais: ainda tens um invejável sentido de humor...quando estás para aí virado!

      Estou muito contente por teres voltado, Kok. Pena foi aquilo lá das chapas de matrícula.

      Um beijinho grande e muito amigo! :)

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  4. Inveja também não consta dos meus dicionários. Creio nunca ter invejado ninguém e não creio que haja razões para outros me invejarem. As situações acima referidas (da maternidade) não me parece serem de inveja, mas de outro tipo de sentimento, talvez impotência, como diz a Janita.
    Onde a correlação do texto com a foto?

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    1. Ainda bem que esse sentimento tão feio é 'coisa que não lhe assiste', José.
      Cobiçar o alheio até é pecado capital.
      Pois, a correlação, texto / imagem, não me a disse o escritor, mas eu já tirei a minha inalação.
      Vou deixar à apreciação do José, para ver se a sua leitura é a mesma que a minha...Também não posso ser eu a dizer tudo, não acha? Vá lá, pense um bocadinho. O que pode haver de comum entre um rebanho e algo que, quando se propaga, vai tudo atrás sem pensar por si próprio?

      Um abraço e tenha uma boa noite. :)

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  5. Vou em sentido contrário
    eu, invejoso, confesso sempre ter invejado
    Invejo o poemar
    e tento rimar
    Invejo a transparência
    e procuro, entre toda a gente
    aquele que é transparente
    Ah, e junto à transparência
    invejo a coerência
    a firmeza
    a resistência
    a persistência

    Sabes?
    Não me sinto "imagem desfocada"
    Nada, nada, nada,
    Nem com valores em desuso

    Se invejo?
    Sim, abuso

    (O José Luís Peixoto é um grande cómico quando diz que a inveja é "Como as drogas leves, faz mal apenas a quem as consome" Ignora, que neste mundo tudo é relativo e, assim, tudo depende do que se inveja e do valor invejado).



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    1. Resumindo e concluindo, Rogério...
      ...O meu Amigo é um invejoso declarado e assumido!
      Gosto disso, desse lado tão humano em que a «inveja» conduz à competitividade.

      Não se vê nem pode ver, como uma imagem desfocada;
      acaso o Rogério é alguma alma penada?

      Essa parte em que os fantasmas aparecem nas fotografias e a sua imagem sai sempre desfocada, não passa de uma metáfora...digo, eu!! :))

      (Pronto...o que deixou entre parêntesis, assim ficará.)

      Um abraço, cheio de inveja, por não saber comentar assim!!

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  6. Eu acho a inveja um defeito "muito justo", pois quem sofre dela vive dois infernos: sofre porque não consegue ter o que quer e porque vê os outros felizes....
    Pior fado não me ocorre :)))
    bjs

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    1. Ehehe Justíssimo, Papoila!
      O invejoso sofre duplamente!
      Oh, tortura infernal!
      Bem pensado é um Fado
      como não há outro igual! lol

      Beijinhos bem fadados!

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  7. Muito bem escrito!
    Num atelier de escrita em que estive, falámos dos defeitos ou sete pecados e ninguém queria ter este de inveja que é muito mal-visto.

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    1. Gábi,

      Se calhar escolheram todos a "luxúria", não?? ehehe

      Beijinhos

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    2. Muitos escolheram, sim, Janita, eu fui para a gula :)
      um beijinho

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    3. :)) Acredito, Gábi!!

      O teu pecado não é comer muito, é ser 'Gul(a)osa'.

      Bem precisas, para compensar a meia-dúzia de ervilhas. ehehe

      Beijinhos, boa semana! :)

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  8. Estava aqui a pensar se invejava alguém.
    E não me recordo de ninguém.
    Inveja de quê??
    Beijinhos

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    1. O escritor debruçou-se mais sobre os 'invejados', Pedro!

      Tem a certeza que lá no seu local de trabalho não é invejado por algum colega? Sabe que alguns...

      ..."não podem ver nada, são uma praga que não descansa." :))

      Beijinhos

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  9. Gostei muito de ler a crónica do JLP que toca no cerne da questão. A inveja é um sentimento mal visto pela sociedade. Logo, à partida, são raros os que se assumem como padecendo desse mal. Já ser invejado, é encarado como um sinal de mérito, um reconhecimento de valor. Na minha opinião, a inveja não é melhor nem pior do que outros defeitos e acredito que já todos sentimos uma pontinha de inveja de alguém. Sentir inveja não é um defeito. É humano. Reconhecê-la e usá-la como incentivo para lutar por aquilo que gostaríamos de ter ou de ser pode até ser uma virtude. Sentir inveja pode servir de alerta para a necessidade de mudar alguma coisa na nossa vida. Já alimentar e deixar-se "intoxicar" por ela, é um caminho destrutivo que, mais do que afetar o invejado, prejudica o próprio invejoso. A inveja tem muitas nuances e há também quem consiga convertê-la em sincera admiração.

    Um beijinho, Janita, e um dia feliz :)

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    1. Quem tocou no cerne da questão, foi a Miss Smile!!
      Que excelente análise desta bela crónica! Concordo plenamente com tudo o que escreveu.
      A parte destrutiva desse sentimento, é justamente a que o escritor denominou como 'droga' e referiu, com muito sentido de humor, que deveria ser a inveja "despenalizada".
      Se, socialmente, a inveja não tivesse essa conotação quase criminosa, talvez não houvesse a tal "intoxicação" de que fala a Miss Smile.

      Quem ficou com um sorriso de orelha a orelha e, quiçá, com uma pontinha de 'inveja', fui eu!!:)
      Quem me dera conseguir exprimir, assim, aquilo que penso e sinto.

      Um beijinho grato e uma noite feliz! :)

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  10. ... entretanto no Brasil
    avança o golpe dos coronéis
    fardados à civil

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    1. ...Para lá do Atlantico a coisa vai levar uma grande reviravolta, O Puma!
      Esperemos que a 'inveja' de chegar ao poleiro não tenha consequências desastrosas para o elo mais fraco...

      Abraço.

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  11. Inveja??? Essa palavra não consta do meu dicionário, deve estar desactualizado rsrsrsr:
    Se sou invejada? Não sei nem me preocupo com isso.
    Tenho outros defeitos que não convém dizer aqui :)

    Beijos Janita

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    1. Quem não tiver defeitos que atire a primeira pedra, não é Manu?? :))

      Beijinhos!!

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  12. Um sentimento que me arrepia, simplesmente porque já fui muito invejada e isso entristeceu-me bastante.

    Beijinho Janita

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    1. Se visto pelo lado negativo e destruidor, certamente que arrepia, Adélia!

      (Nunca o invejoso medrou nem quem ao pé dele morou, dizia-se...)

      Beijinho, amiga Flor!

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  13. Janita, devo dizer que o comentário da Miss Smile me encheu as medidas. Dizer mais, para quê?

    Uma boa semana :)

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    1. Verdade, AC!

      Também fico sem palavras perante a humana lucidez e a sabedoria de Miss Smile!
      Enche-nos a alma, ler o que ela escreve.

      Beijinhos e boa semana também para ti. :)

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