quinta-feira, 28 de julho de 2016

Uma Terra Chamada Galinha.

O consultor ajeitou os ombros a mostrar o seu desconforto. Sabia português suficientemente para lhe mostrar estranheza. Uma terra chamada Galinha? E como se chamavam os naturais? Galinheiros? Galinhenses?
    Mas não era apenas o nome da terra que o incomodava. Havia algum desconforto em tudo. Primeiro, o percurso de avião da capital até à Beira. Chegados ao destino, o homem respirou fundo, surpreso pelo tratamento e pelos serviços. 

Depois, veio a aflição do estado dos automóveis de aluguer. Quis ser ele a conduzir, o que me deixou, dessa vez, a mim, incomodado. Gosto de conduzir, mais ainda fora das cidades. Ele percebeu e passou-me o volante.
Na primeira parte do percurso, uma vez mais, ele foi cedendo, relaxado. Era melhor do que pensava. Não precisei de lhe adivinhar o pensamento. Ele mesmo exclamou:
   -- Estou impressionado, é bem melhor do que eu pensava!

    Viajávamos para Galinha, uma pequena localidade a noroeste da minha terra natal, a Beira. Para mim, era uma reincidência. Os meus trabalhos obrigavam-me a visitar aquela região, no centro do país. Mas para o estrangeiro, tratava-se de uma estreia absoluta. Ele conhecia outras Áfricas. Não esta. A nossa.
    Desde que chegara, o consultor ia abandonando a tentação de generalizar.
Imagens recolhidas na Net e agrupadas por mim.

Nos primeiros dias ele falava em África como se de uma entidade única e fácil se tratasse. Eu conheço África, repetia com insistência. «Qual África?», perguntei-lhe. Franziu o sobrolho, suspeitando da intenção da pergunta. Passou-se o tempo e o consultor foi ficando desarmado. 
Este era um lugar que ele, afinal, desconhecia. Mais do que a geografia e a paisagem, eram as pessoas que o deixavam surpreendido. Recebiam-no bem, escutavam com simpatia, tinham tempo, gentileza e paciência.
Aconteceu com ele o que sucede ao açúcar no chá: o consultor foi-se dissolvendo.
 Perdeu medos, barreiras, preconceitos. Começava nele a verdadeira e única viagem: a que se faz por dentro das pessoas.
    Ao desembarcar na Beira, o enamoramento agravou-se. Máquina fotográfica em punho, o homem aventurava-se por bairros e recantos.
    A meu ver, ele começava a arriscar-se e não tardaria que a paixão se convertesse em susto. Um anjo o protegia e, à noite, no hall do hotel, ele relatava-me os lugares percorridos. Alguns não muito aconselhados para um estrangeiro exibindo uma máquina fotográfica. Quando o alertei, ele encolheu os ombros sacudindo a máquina como se de uma caixa de tesouros se tratasse e disse:
   -- Quando eu chegar ao meu país eles vão ficar admirados!

    Nessa caixa mágica o visitante guardaria depois imagens do Parque da Gorongosa. Coroa de louros, para ele. Mesmo não tendo visto muitos bichos, o que vimos bastou-lhe. Em pleno tando do Urema espraiou a vista como se ocupasse o centro do Planeta. Aquele era uma espécie de umbigo do mundo e, pela primeira vez, o meu companheiro de viagem, cientista de renome, escorregou numa metáfora:
    --  É pena, não consigo fotografar tudo. 
    O mais importante nunca se pode fotografar, poderia eu ter dito. O que fica para sempre, o que nos revolve a alma é o que não pode ser capturado pela moldura. E lá veio a metáfora:
 «Este silêncio tão vasto, como o posso fotografar?»

    Ele fotografava e corria na minha direcção a mostrar a imagem no visor. Parecia uma criança apressada a exibir as conchinhas que recolhia na margem da praia.
    Agora, quase a chegarmos a Galinha, o cientista aperta a máquina de fotografias contra o peito. Passado um tempo, ele se confessa. Queria levar para o seu país essa imagem de glória que os europeus coleccionam quando cruzam aventuras. Mas eu que entendesse e descontasse o que ele iria dizer a seguir. É que ele, já na Europa, diria aos amigos que esteve numa localidade chamada «Búfalo». Ou quem sabe «Elefante». Mas «Galinha», não. Tudo menos Galinha. Que a ave doméstica lhe desprestigiaria o exótico relatório de viagens. E ali mesmo, junto ao rio Sangussi, me fiz cúmplice do rebatizar de terras.
   -- E se for galinha-do-mato?  
   -- Aceito, é bonito.
    Galinha, estou certo, não se irá ofender. Somos todos de algum mato.

                                                                                 (Outubro de 2007)



Nota: Como alguns leitores deste Cantinho já conhecem de postagens anteriores, esta é mais uma crónica transcrita do livro de textos do escritor moçambicano - que adoro ler - Mia Couto.
Talvez, numa próxima publicação, transcreva a nota introdutória, onde o escritor explica a razão de ser da edição destes textos, crónicas e pequenos contos. E, daí, talvez não. Já que a última frase do escritor é esta: "Espero que, no final, este livro dispense esta e qualquer outra explicação"
Por mim, está mais que dispensado. Porém, se houver interesse, por parte de quem aqui vier, publicá-la-ei.
Obrigada a todos. :)


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20 comentários:

  1. Quando escrevemos sobre a nossa terra, sobre as nossas emoções e sobre os nossos amores umbilicais, despejamos tudo o que nos vai na alma com um auto-convencimento de que quem nos lê compreenderá até os nossos sentidos e sentimentos. A última frase do escritor: "Espero que, no final, este livro dispense esta e qualquer outra explicação" diz isso mesmo: entender o espírito para além da escrita!
    Beijokas com amplos sorrisos

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    1. Eu também gosto muito quando te vejo comentar aqui com sentimento, Kok!
      É verdade o que dizes, sim!
      Quando damos voz às nossas emoções, deixando o pudor para trás e sendo nós, simplesmente, achamos que os outros nos vão entender tal como gostaríamos nos entendessem. E é bom, muito bom, quando isso acontece.
      Comigo já me aconteceu o contrário.

      Beijos ampliados no reflexo do teu sorriso, Kok!! :)

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  2. Somos todos de qualquer mato, sem dúvida :))

    Beijocas Janita

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    1. NoName,

      Realmente o viajante tinha razão. Contar na Europa, uma viagem feita a África, falar de gentes maravilhosas e lugares espectaculares, mostrar fotos magníficas e depois dizer que a localidade se chamava 'Galinha', acho que tirava todo o encanto à coisa!!
      Galinha-de-mato, já acrescenta mais valor e mistério ao galináceo, que deu o nome à terra.
      Essa frase do escritor, ando a remoê-la...:)

      Beijinhos, intrigados.

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  3. Ao ler, ocorreu-me que no Brasil há uma terra com o nome de "Porto Galinhas", por sinal uma bela praia !
    Seria também uma boa alternativa para o Mia Couto ! ... rsrs ...Bastaria que essa terra estivesse perto do mar ! :))

    Curiosa essa nossa necessidade de contarmos onde estivemos e não só. Também a necessidade de fotografarmos o que vimos e foi possível de captar !
    Não é uma crítica (porque é um facto), é uma constatação absolutamente legítima ! :)

    Abração !

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    1. "Porto Galinhas", já pedia mar por perto, Rui! :))

      Isso de " Somos todos de algum mato", como justificou o escritor, deve ter um significado mais profundo, sei lá!!

      Sabes que vi esta semana na TV, um programa, creio que no canal Odisseia, sobre uma aldeia na Tailândia, onde as mulheres usam colares no pescoço, para o alongarem, e estão sentadas nas tendas, onde vendem bugigangas, à espera que os turistas as fotografem.
      Houve uma jovem que resolveu tirar os colares alegando não ser um animal de circo e foi expulsa da aldeia.
      Incrível! As recordações fotográficas, de lugares e pessoas exóticas, atingem proporções desumanas.

      Beijinhos, Rui!

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  4. Janita, concordo contigo também acho que não há necessidade de explicações:) será curioso ver se alguém as quererá ler!
    Bejs

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    1. Pois é, Papoila. Se houver alguém que se interesse em saber o motivo pelo qual o escritor editou este livro com textos originalmente escritos para uma Revista na qual o Mia foi colaborador, eu transcrevo. Mas acho que ele não gostaria muito...:)
      Esperemos, para ver se alguem é bastante curioso. Lol

      Beijinhos, Papoila!

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  5. Gosto muito da escrita de Mia Couto, já não gosto tanto das suas histórias. Ou de algumas delas. Esta é uma delícia... :)

    Beijocas

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    1. Ainda bem que esta te agradou, Teté! Fico muito contente por isso. :)

      Um beijinho, bom fds

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  6. Sou fã incondicional de Mia Couto.
    Beijinhos, bfds

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    1. Incondicional, não sou, Pedro!

      Já li uma ou outra coisa escrita pelo Mia Couto, que não me satisfez completamente. :) Mas de um modo geral gosto de quase tudo o que ele escreve, seja prosa ou poesia.

      Beijinhos e bom fim de semana.

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  7. Janitamiga

    Conheço pessoalmente o Mia Couto. "Discutimos" muitas vezes se Angola era melhor, se Moçambique melhor era. Como tu gosto muito dos livros dele, embora alguns deles não me caiam no couto, oops, no goto. E também gosto muito dele - dele próprio (honny soit)

    Juntos, a contar estórias e anedotas somos os melhores do Mundo. Dizem...

    Bjs da Raquel e qjs do Leãozão

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    1. HenriquAmigo

      Que eras amigo de Mia Couto já mo havias dito. Que és um prodigioso contador de histórias, também já o sei há muito tempo.
      Que o escritor o é também, isso fiquei a saber agora....E também que gostas muito dele - honi soit qui mal y pense, pois claro,- ( como diria o nosso mui estimado CunhAmigo ). A propósito, por onde andará ele? Já lhe sinto a falta...

      Um beijo amigo para ti e Raquelita, da amiga Janita. :)

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  8. Simplesmente delicioso este texto de Mia Couto, escritor que tem pequenos textos que adoro ler.
    Nunca estive em Angola ou Moçambique, mas noutros países africanos que me marcaram a alma e que registei em fotografia, mas há coisas que nunca conseguimos gravar, o silêncio é uma delas.

    Beijinhos Janita

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    1. Fico imensamente contente que tenhas gostado, Manu.
      Tens mais sorte do que eu, pois não conheço nenhum país africano, nem mesmo os de expressão portuguesa.

      Beijinhos, obrigada e bom Domingo. :)

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  9. Por norma, não gosto muito das histórias que o Mia Couto escreve, mas adoro, fascina-me a forma como inventa e brinca com as palavras e frases.
    Por vezes leio um livro dele e no fim não sou capaz de recontar a história, mas são incontaveis as vezes que volto para trás e leio e releio frases e palavras, entendes o que quero dizer, Janita?

    Abraço grande e bom Sábado

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    1. Olá, Ricardo.

      Acho que o meu gosto pelas histórias do escritor terão também muito a ver com esse facto que mencionas. É realmente fascinante, a forma como ele reformula as palavras e as converte em novas denominações, sempre muito oportunas e bem inseridas nos temas.
      Podemos constatar isso com o título deste livro, não achas?

      Claro que entendo, comigo passa-se o mesmo!! :)

      Um grande beijinho.

      ( O sábado foi menos bom do que eu esperava )

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  10. Janita que história simpática :)) gostei muito já que não encontro tempo suficiente para ler livros de que tanto gostava, não sei o que fiz ao tempo, entrego-o às horas de trabalho, de ida e regresso, daqui para acolá e ele foge-me mas tanta gente se queixa, acho que vou agarrá-lo para me debruçar sobre as obras de Mia Couto
    olha que descobri há pouco tempo um video do parque da Gorongosa de antigamente, que terá depois sido destruído durante a guerra civil a seguir a independência,
    e que agora está a ser recuperado por outros poderes que gerem as riquezas de Moçambique

    locação de Fernando Pessa


    https://www.youtube.com/watch?v=E_Q1f7rfctY
    O Parque Nacional da Gorongosa em 1961: o Filme


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    1. Simpática és tu, querida Ângela! Adoro os interessantes links que me tens trazido.
      Este filme é espectacular e a locução a cargo do inesquecível Fernando Pessa, dá-lhe um encanto especial.

      Obrigada e um beijinho!

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