segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Sem Preceito Nem Preconceito.






    Certa vez fui vítima de assalto. Um velho amigo sugeriu-me que consultasse os serviços de uma famosa curandeira no bairro da Polana Caniço.
Num instante ela faria surgir o rosto do ladrão na superfície de uma tina de água. Não é que fizesse fé nesse mágico scanner sem imagem original. Estava criado o pretexto para dar o gosto à alma e visitar um universo onde perdemos certezas.
    No momento seguinte encontrava-me tirando os sapatos à porta da Dona Mariana, em solicitação de poderes. Acreditava no que estava vivendo? Com o tempo, aprendi que por vezes a resposta é errada simplesmente porque a pergunta é incorrecta. Não se tratava de saber se era ou não verdade. Certas coisas são verdade numa dada relação, num dado momento.
    Nenhum rosto compareceu à tona de água. Mas a curandeira falou de mim, da minha vida passada e presente. Sem incursão no futuro. Nem tudo terá sido verdade. O que foi verdade é que conversámos, ela falando sem preceito, eu escutando sem preconceito.
    Dona Mariana deu-me uns pós para espalhar em água de banho. Tomasse banhos enquanto chorava, em audível lamento: «Ai, o meu televisor! Ai, o meu leitor de vídeo!»  Nunca chorei. Talvez por isso  –  insuficiência de fé  –  nunca tenha recuperado os bens roubados. Regressando mais tarde a casa de Dona Mariana continuei trocando fios de prosa que me compensaram a perda dos aparelhos.


[A partir de uma narrativa de Mia Couto: O Feitiço Dentro de Nós” ]





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22 comentários:

  1. As certezas não passam de incertezas mascaradas - quem sabe não é verdadeiro, também, o contrário...

    Boa noite Janita - Boa semana pa TU também

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    1. Pois, Noname...quem sabe? :)

      Beijinho e boa semana, NN!

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  2. É verdade que em cada preceito há sempre um preconceito, e vice-versa. As verdades são sempre matéria frágil, escorregadia, e disso bem sabe quem muito experimentou e porfia.
    Mia Couto? É dos meus!

    Um beijinho, Janita :)

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    1. No campo das crenças e das crendices há um mundo em que cada qual acredita no que mais lhe convém.
      Afinal, o que é a 'verdade'? Até o que está à vista de todos tem a interpretação que cada um lhe dá.

      Mia Couto, é dos dois, então!

      Um beijinho, A.C. :)

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  3. Os mundos de Mia Couto são encantadores.
    E únicos.
    Beijinhos, boa semana

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    1. O mistério das gentes africanas está bem patente em quase tudo o que sai da sua 'pena'. É um mundo mágico e único, como diz o Pedro.

      Beijinhos.

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  4. mundo mágico que tão bem nos faz quando nos deixamos transportar pelas suas fantasias!
    gostei do texto Janita:)
    Angela

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    1. Muitas das suas 'fantasias' vai ele buscá-las às suas vivências com os outros, como todos os escritores, aliás.
      Ainda bem que gostaste, Ângela.
      Fico feliz por isso. :)

      Beijinhos, boa semana.

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  5. Acontece que não acredito nos curandeiros ou bruxos (mais vulgarmente), mas pegaste-lhe bem no título !
    Elas ou eles que falem sem "preceito" e eu também seria capaz de os ouvir sem "preconceito", apenas por divertimento !

    Abraço

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    1. Não digo que acredito nem digo o contrário, Rui. Simplesmente nunca fui confrontada com nenhuma situação semelhante.
      Mas acredito nos "curandeiros" de ossos! Os chamados «endireitas», já uma vez levei um 'abraço' de um que me colocou uma vértebra lombar no sítio....:))
      E tu, nunca foste a um 'endireita'?

      Beijinhos, Rui!!

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    2. AH ! Isso de "Endireitas", é outra coisa. Normalmente até são fisioterapeutas que conhecem bem os músculos os tendões ! Já fui e digo maravilhas !
      Outra coisa são as tais "ditas" em que não acredito,... pero que las ay las ay ! rsrsrs

      Beijinhos

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    3. Las hay, las hay, mas eu não sei onde há nenhuma, senão bem que eu precisava de consultar para que me dissesse onde fica esse tal castelo lá do teu passatempo. ehehehehe

      Beijinhos.

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  6. Gosto da escrita do Mia Couto.
    E este naco de prosa é bem saboroso.
    Também gostei do teu blogue (penso ser a primeira vez que aqui venho).
    Janita, tem uma boa semana.
    Beijo.

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    1. Olá, Jaime Portela. Bem-vindo!

      Gostei da expressão 'naco de prosa'. Na verdade é mesmo do que se trata. :)
      Obrigada, pelo que ao blog diz respeito, mas como pode constatar é um espaço sem qualquer pretensiosismo. Simples, como eu.
      Uma boa semana também para si, Jaime.

      Um beijo.

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  7. Adoro os textos de Mia Coto, estou a torcer para que seja premiado este ano com o Nobel da Literatura.
    Beijinhos Janita

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    1. O Mia Couto também está nomeado para o Prémio Nobel, Manu?
      Se sim, pois que arrecade ele o galardão. Bem merecia.

      Beijinhos e boa semana, Manu! :)

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  8. Mia Couto, sempre e a toda a hora.

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    1. Ainda bem que assim pensa, José! Fico feliz por isso!

      Um beijinho, também para si!!!

      :)

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  9. Há em Mia
    algo
    que nada miado
    me fala à Minha Alma
    faz pensar Meu Contrário
    e que Eu aplaudo

    Nobel? Porque não?

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    1. Que lindo e bem rimado comentário, amigo Rogério!

      É sempre uma delícia ler esta sua poesia que, sendo diferente da prosa do Mia, muito me agrada e desvanece.

      Pois, porque não? Amanhã saberemos.

      Um abraço.

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    2. Amiga Janita:

      Segui o link da tela e fiquei maravilhada pelas telas e pela homenagem do pintor ao escritor.
      Todos os textos do Mia Couto nos prendem e encantam mesmo quando se trata de bruxas,que não acredito mas que existem :))

      Um beijinho

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    3. Amiga Fê: Tanto o pintor quanto o escritor mereciam esta homenagem.
      Agora que soube quem foi o eleito pela Academia sueca para ser agraciado com o Prémio Nobel da Literatura, mais me congratulo por ter escrito, e transcrito, este belo pedaço de prosa do nosso grande escritor, que é: MIA COUTO!!

      Beijinhos.

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