Era uma vez um homem sentado diante de casa. a olhar
para o rio. Casa é maneira de falar porque não se pode chamar casa a uma
barraca de tábuas costuradas com arame e reforçadas de placas de cartão, com
um pedaço de zinco a servir de telhado. Mas nessa parte da cidade, em Cabo
Ruivo, ao pé dos fumos da Siderurgia, quem tinha chegado de África, como o
homem, sem mais roupa que a do corpo e sem mais bagagem que um baralho de
cartas, era dessa forma que se governava. O Boeing de Angola desembarcava em
Lisboa as pessoas fugidas à guerra, e no dia seguinte lá andavam elas, truca-truca,
a martelar cabanas num baldio de ervas frente aos vapores do Tejo. entre
armazéns ao abandono e um hidroavião que era um esqueleto de morcego, com a
peie de lona a desfazer-se debaixo da surpresa das gaivotas.
Barracas assim contavam-se para cima de três dúzias,
umas mais perto outras mais longe da água, feitas com os desperdícios de uma
obra (tijolos, pranchas, areia, ruínas de andaime) que não se completara sabe
Deus porquê, deixando ferramentas oxidadas, buracos de cabouco e sacos de
cimento, de que as pessoas se serviam para inventar moradias. Passeava-se por
ali como num acampamento de pobres, numa aldeia de miséria: havia quem secasse
camisas numa corda entre dois paus, quem soprasse o lume de uma panela de
esmalte, agachado para urn borralho de cinzas, havia cães arredios, medrosos
de pedras, a farejarem canecos, havia crianças mulatas a brincarem com
bocaditos de canas, havia a cidade que parecia um grande pulmão de chaminés e
janelas a respirar nas costas do homem, e havia sobretudo o rio, que para
aquelas bandas, a bem dizer, nem rio era: um pântano cinzento, horizontal até
aos morros de Alcochete, ou do que, para viajantes de Angola, se calculava que
fosse Alcochete, a brilhar, à noite, lantejoulas de leque sevilhano.
Ao homem sentado diante de casa tanto se lhe dava que
se tratasse de Alcochete, Nova Iorque ou Paris: tinha um rectângulo de cortiça
nos joelhos, para a paciência de cartas, e ao levantar os olhos do baralho, com
a cabeça ainda em Luanda, não era o Tejo que via: era uma ilha de palmeiras,
uma concha de arcadas com aves pernaltas nas empenas, e fragatas a gasóleo
largando para a pesca, num rastro de motores e batucada.
O homem morou quarenta e sete anos em África, a
trabalhar de motorista de camião ao serviço dos holandeses dos diamantes, e
custava-lhe habituar-se a uma terra de frio onde ninguém o conhecia, tirando
os vizinhos da desgraça que dividiam com ele uma língua de lama e alforrecas,
furtada aos desenfades do rio, E mesmo assim: calado como era, as poucas
frases que dizia reservava-as para os azares do baralho, valete de ouros sobre
a dama de paus, cinco de copas sobre seis de espadas, um duque desesperado a
acenar asas de mocho, sem terno preto onde ancorar.
De forma que estava o homem diante de casa, às voltas
com ases e manilhas, e sentado ao lado dele, num balde ao contrário, um cego de
óculos de mica. Muito direito, atento com os ouvidos, que é como os cegos vêem,
a enrolar uma mortalha com deditos de croché, e mal os sons rareavam, sinal de
que o homem hesitava a pensar, o cego perguntava logo, inquieto;
— Como é Lisboa, Artur?
E, ao fim de um silêncio comprido, o homem, a desfazer
a paciência com a mão aberta e a olhar para Alcochete:
— Lisboa?
Guardava as cartas de má morte no bolso, e ficava-se,
de pálpebra rancorosa, no hidroavião, à medida que pelas redondezas começava
uma agitação de ralhos e de caldos em púcaros de folha, que era o jantar de
quem viera de Angola, sem dinheiro para uma quarta de chouriço. O homem não
comia: demorava-se crepúsculo adentro até o hidroavião desaparecer nas luzinhas
de Alcochete ou de Paris, que para os nascidos em África, como era o caso, era
igual ao litro, e o cego ao lado dele. Também sem caldo, impassível nos óculos
de mica, a puxar fósforos e a acender o cigarro na colher da mão. Já estava
tudo escuro, só candeeiros a tremelicarem ao longe e um ventinho nas ervas, e
o homem, de gola levantada por causa das traições de bronquite, a pensar que
ele e o baralho se achavam em Portugal há três semanas no mínimo: do andar na
Amadora que umas senhoras de fitas ao pescoço lhe prometeram no aeroporto nem a
sombra, e nisto o cego, curioso, a chupar o cigarro, numa voz que se confundia
com os grilos:
— Como é Lisboa, Artur?
O homem olhou em torno: ralhos, estalos de púcaros de
folha, choros a fosforescerem aqui e acolá, pavios de azeite em amparos de
tela, a labareda da Siderurgia, no meio de tubos doirados, inundando trevas de
carvão. Nada, em resumo, que se comparasse às noites de Angola, entre Malanje e
Luanda: o homem-motorista, estrada fora, de bife com batatas no papo, a
mascote, que era uma pretinha de tanga, a dar-a-dar no espelho, uma paz de
capim no mundo inteiro, e um quarto como deve ser, alugado na Mutamba, à sua
espera. E, como se não bastassem a barraca, a fome e o ventinho das gripes, o
cego muito direito, embrulhado no tabaco e nos óculos de mica, a insistir, na
vozinha de grilo:
— Como é Lisboa, Artur?
Acabado o caldo os de África espalhavam-se no baldio,
entre o armazém e o pontão, a tropeçarem ao acaso nos desníveis de toupeira e
calhaus adormecidos. Um indiano de sandálias tinha acendido um candeeiro de
petróleo num contentor tombado, feito um balcão com caixotes, colado um cartaz
com a equipa do Belenenses na ferrugem, vendia fiado gasosas e cervejas mornas,
à espera que os clientes recebessem o subsídio do Governo, e o cego na dele: —
Como é Lisboa. Artur?
De ideias fixas o cego, pensou o homem cuja cabeça
continuava no canto oposto do mar, agarrada ao musseque onde crescera,
entretendo-se sozinho no quintal das traseiras, sob um braço de tília. De certo
modo, embora estivesse em Cabo Ruivo permanecia em África, com a mãe e as irmãs
mais velhas (o pai trabalhava há séculos no Congo e escrevia-lhes, no Natal,
postais de Boas Festas com selos esquisitos) e, por estranho que parecesse, o
que recordava melhor não eram coisas de adulto, já homem, já motorista dos holandeses
dos diamantes, a conduzir um camião para cá e para lá, de Malanje a Luanda e de
Luanda a Malanje, O que, pelo contrário, lhe aparecia mais vezes na lembrança,
em sonhos até, que é quando, como os olhos estão fechados, a gente enxerga para
dentro, era o braço de tília e ele de calções, pasmado, a observar um sapo numa
greta de muro, um sapo parecido com o dono da cantina, onde a mãe o mandava
comprar arroz, favas ou cebola para o almoço de domingo, dia em que se alargava
um bocadinho no cozido. E no instante em que se principiava a sentir o gosto da
cenoura às rodelas na boca, lá vinha o cego com a cantilena do costume;
— Como é Lisboa, Artur?
O cego era criatura de adereços: possuía uma bengala
de metal que se encolhia e aumentava como os metros articulados dos
carpinteiros, e nas raras ocasiões em que se levantava do balde caminhava de
queixo ao alto, varrendo os passos com aquela espécie de antena: ia do balde à
arrecadação ali perto, em que escondia um cobertor, e como, por assim dizer,
era sempre noite para ele, a bengala impedia-o de esbarrar em algerozes e de
tombar em valados. Talvez fosse o único, dos que chegaram de África, capaz de
caminhar na cidade, seguindo a haste mágica que devia ter urn mapa das ruas no
castão. Se quisesse ia de certeza de Cabo Ruivo à Amadora (é um exemplo) sem
uma hesitação para amostra, pelo que o do baralho não entendia a pergunta,
soprada, com o ventinho da tarde, nos intervalos das cartas:
— Como é Lisboa, Artur?
E o indiano entrincheirado no caixote, a designar com
o desprezo do dedo as gaivotas, o hidroavião a desfazer-se e os pântanos do
Tejo, o indiano das gasosas, desiludido com a clientela que lhe não pagava, a
lembrar-se do seu café de dois andares em Moçâmedes, onde os fazendeiros lhe
limpavam todas as tardes, e a pronto, as garrafas da loja, o indiano, inchado
de desgosto, a arrastar-se no contentor como um peru de Natal:
— Lisboa é esta infelicidade, amigo.
E, pelo gesto, não era só dos clientes que falava: era
das barracas, dos caldos, das camisas nas cordas, dos cachorros vadios sempre à
cata de sobras, e talvez que dele próprio também, que nos tempos de África nem
um automóvel americano lhe faltava, comprido como uma baleia, de dentes dos
cromados ao léu, com os olhos dos faróis arredondados de zanga contra os
imbondeiros. Falava das barracas, dos caldos, das camisas nas cordas, dos
cachorros e dele próprio, mas o desprezo do dedo, por acaso com um anel de
prata lavrada a alumiar-lhe o gesto, fixava-se no hidroavião que era um
esqueleto de morcego, com a pele de lona a desfazer-se debaixo da surpresa das
gaivotas.
Fixava-se no hidroavião e o homem, atrás do dedo, a olhar as asas
tombadas, os flutuadores, que pareciam pantufas gigantescas de caminhar sobre
marés do Tejo, as cadeiras sem passageiros, a hélice de moinho de poço, o
lugar do piloto encostado ao volante, parecido com o dos camiões dos diamantes:
só não havia a mascote da pretinha de tanga, pendurada de uma guita, a
dar-a-dar no espelho. Isso, pensou o homem, não constituía problema: a questão
era uma pessoa instalar-se ao guiador, que em chegando a Luanda encontraria,
apesar da guerra que por lá faiscava, a destruir vivendas e jardins, uma
capelista pronta a vender uma mascote nova, de modo que alcançaria Malanje com
a boneca, toda contente, a dançar merengues no vidro.
Quanto a colegas de
viagem, que de Lisboa a Malanje é um esticão, convidava o cego que, como ele,
não-tinha caldo nem família, e de caminho dava uma volta sobre Cabo Ruivo e
explicava-lhe a cidade: monumentos, estátuas, igrejas, o carrossel do oito,
bairros de ricos, tudo. Largariam de manhã cedo, à hora que os albatrozes se
levantam das mimosas do lodo e o nevoeiro se esfuma em Alcochete, Nova Iorque
ou Paris, mostrando paus de fio e telhados tremendo à flor da água, e o indiano
do automóvel das Américas, incrédulo:
— Esse hidroavião não vale nada, coitado.
E realmente não parecia valer nada: em três semanas
que o homem ali estava, sentado diante de casa com o baralho de cartas, o
hidroavião quietinho, sem que um farrapo de lona se mexesse ao vento, sem que o
leme da cauda desse sinal de abano, sem que qualquer luz se acendesse na
car-linga. Resumindo: sem nenhuma vontade de voar. Um trambolho, decidiu o
homem, uma coisa inútil, uma gaivota morta, e continuou a pensar isto à medida
que se dirigia para ele, escoltado pelo cego dos óculos de mica, muito direito,
muito seguro do caminho, a tricotar a erva com a bengalinha de metal.
Sentou-o num lugar à janela, recomendou-lhe:
— Segura-te.
Ocupou o volante, experimentou os pedais, as alavancas
e as manivelas perras, e voltou a cabeça para informar o outro:
— Aguenta um bocadinho que já te mostro Lisboa.
Anos depois, muitos anos depois de o homem e o cego
terem levado sumiço, sabe-se lá para onde, o indiano continuava a jurar, a quem
o queria ouvir, que o hidroavião não saiu do mesmo sítio, não se deslocou um
milímetro, não se ergueu nem isto do pontão. É neste ponto que as divergências
começam: há quem garanta que os empregados da Câmara vieram com uma furgoneta e
transportaram para a sucata aquele morcego sem préstimo. Mas há também quem
afirme, pronto a jurar, que o hidroavião, com o homem e o cego lá dentro,
correu um nadinha na água, subiu a pino, e partiu, sobre Lisboa, na direcção de
Luanda, na direcção do mar. E acrescenta, quem sabe, que se via um braço, saído
de uma janela, a mostrar monumentos e igrejas a uns óculos de mica, e uma
pretinha de tanga, muito alegre, suspensa de um cordel, a dar-a-dar no
pára-brisas em acenos de adeus.
António
Lobo Antunes
"A História do Hidroavião"
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