Àquela hora, no quarto piso do Centro
Comercial, os corredores estavam desertos e quase todas as lojas tinham
colocado a tabuleta virada para o exterior, com a indicação: “Volto já”. Como é
sabido do lado oposto estava escrito “Aberto”. Nunca percebi porquê, já que
quando uma loja está aberta a porta também está, mas era e parece que continua a ser assim!...
A hora era aquela a que, habitualmente, os lojistas
iam almoçar. Naquele tempo ainda não havia um único piso destinado exclusivamente
à alimentação. Em quase todos os quatro pisos havia um pequeno restaurante e no
sétimo piso, a contar vindo do céu, já que era o último para quem estacionasse no
parque do Centro, havia um 'Pão Quente'.
O piso a seguir era o 4º em que me
encontrava, a pensar que não sentia apetite suficiente para ir almoçar um prato
do dia num qualquer restaurante, mas também não sentia vontade de comer a
habitual sande americana de que o Pão Quente do 7º era especialista.
De súbito, vi que na porta da pequena loja
de lãs e peças de malha que vendia e eram confeccionadas por mim, se perfilava uma
figura estranha. Um homem que apareceu vindo do nada, olhava-me em silêncio. Não
entrou, mas o seu corpo ocupava todo o espaço da porta aberta. O coração disparou-me
loucamente, parecendo querer saltar-me pela boca, pois o aspecto sujo e andrajoso do homem deixou-me meio morta de
medo. E se ele entrasse e tentasse fazer-me mal?
Não conseguia raciocinar nem
sequer articular a pergunta sacramental: ”Deseja alguma coisa”?... Nada! Da
garganta seca, não saía som algum. Por uma questão de segundos, que me pareceram
séculos, ficámos ambos a olhar-nos olhos nos olhos. Os meus deviam reflectir um
medo irracional, mas os dele… como me lembro bem… eram de uma tristeza infinita!
Sem pronunciar uma única palavra nem sair do mesmo sítio, ele estendeu o braço,
virou a mão para cima, e, na palma da mão, calejada e suja, estava uma pinha
pequenina. A pinha mais perfeita e redondinha que alguma vez tinha visto.
ESTA FOI A IMAGEM MAIS PARECIDA QUE ENCONTREI MAS, A MÃO NÃO ERA ASSIM E A PINHA ERA SÓ UMA, MUITO MAIS REDONDA E PERFEITA. COLOCADA NA PALMA DA MÃO
Saí
detrás do balcão agarrei a pinha e fiquei a olhar incrédula, ainda com as pernas
a tremer. Quando levantei os olhos, o homem tinha desaparecido. Com a rapidez
que me permitiam as pernas ainda trementes, vim ao meio do corredor, olhei para
todos os lados e não vi vivalma, nem sequer a empregada da loja de artigos de
desporto que ficava em frente e era a única pessoa que poderia também ter visto
o homem, se apercebeu de nada.
Não foi delírio nem alucinação, a pinha
pequenina foi vista pela minha amiga Fernanda que era, nessa altura, empregada
numa loja de antiguidades no mesmo piso,
mas ao fundo de outro corredor, pela minha filha quando no fim do dia veio ter
comigo vinda do Liceu Rodrigues de Freitas, para irmos juntas para casa, e por
mais pessoas. Guardei-a durante muitos anos entre os meus pequenos tesouros,
mas um dia não a encontrei e nunca mais a vi.
Perdi-a e não sei como.
O que ainda hoje me dói é não ter tido
tempo nem reacção, para lhe dizer um simples “Obrigada”, e ter sentido medo de
alguém, apenas porque tinha o aspecto sujo e desleixado de quem vivia,
provavelmente, sem abrigo.
Isto aconteceu comigo em meados dos anos
oitenta, no Centro Comercial Dallas, situado na Avenida da Boavista e na altura
do seu apogeu.
Quem me dera poder voltar atrás no tempo!
Quantas perguntas sem resposta, ficaram por fazer. Quando menos esperamos algo
nos traz o passado de volta, toma conta de nós, deixa-nos um sabor amargo de tanta
coisa que poderíamos ter feito e por cobardia não fizemos.
Porque hoje me deu para as amargas recordações, quero dar um ar alegre a este post. Há músicos de rua excepcionais! Este jovem é um deles, Apreciem!...
(…) O homem quer ser peixe e pássaro a serpente quisera ter asas, o cachorro é um leão desorientado, o engenheiro quer ser poeta, a mosca estuda para andorinha, o poeta trata de imitar a mosca, mas o gato quer ser só gato e todo gato é gato do bigode ao rabo...(...)
Excerto do poema "Ode ao gato" de Pablo Neruda. Desta vez, numa dedicatória ao meu gato Santiago!
Bonacheirão, preguiçoso, mimalho, insidioso até dizer chega e que se empoleira em tudo quanto é posto de observação....Aqui, nesta foto, ficou a despedir-se do meu filho e neto, no dia a seguir ao dia de Natal. Recebi-a por email e partilho-a convosco. Ora digam lá se não é um belo exemplar da raça dos felinos sortudos?? :)
Adenda. A propósito do comentário do amigo Vitor Chuva, adiciono esta foto, para ilustrar e comprovar que também gosto de canitos! O Santigo e o Alentejano confraternizam, pacificamente! Aqui estão eles perto do calorzinho que sai da velhinha mas eficaz salamandra, colocada no escritório da empresa onde trabalho e que fica a cerca de cem metros de casa. Como já conhecem o caminho, para lá se dirigem e ficam a dormitar, no quentinho, o tempo que lhes apetece. Boa vida, né? :)
Hoje deixo-vos uma história
em verso, de raízes antigas e tradicionais, vinda do tempo dos trovadores, que
poderia servir a uma análise bastante profunda, quiçá, ( o que eu gosto desta palavra) a um estudo de comportamento,
no aspecto moderno da emancipação da mulher.
J
( Diz o Fidalgo)
Gentil
pastora, ouve um estranho,
deixa o rebanho, vem me escutar
pois que perdido há mais de uma hora
vago pastora neste lugar.
(Responde a Pastora)
Senhor bons dias, bem-vindo seja
tranquilo esteja que a vila é perto.
Siga essa estrada bem direitinho
não há caminho mais curto e certo.
( Fidalgo, e assim por diante... :) )
Extensas léguas hei caminhado,
estou prostrado não tenho ar.
Vê se me indicas qualquer um pouso
onde o repouso possa encontrar.
Senhor bem vejo que vós sois nobre
meu lar é pobre vede-o acolá.
Se aos vossos brios não há perigo
meu triste abrigo não longe está.
Muito obrigado gentil morena
mas, ó que pena, não posso ir.
Tu meiga e bela, de encantos cheia,
cá desta aldeia deves fugir.
Ah! Não que eu tenho vida folgada
sou muito amada de coração.
Meu nome adeja aos sons cadentes
dos versos quentes de uma canção.
Isto que vale, bela serrana,
se uma choupana só tens por lar?
Deixa este sítio na soledade
vem à cidade viver, gozar.
Ai, morreria lá na cidade
só de saudade da gente nossa.
A viver rica mas esquecida
prefiro a vida na minha choça.
Mas se eu te trair nada tu sofres,
dou-te os meus cofres, juro por Deus.
Habite eu pobre numa choupana,
tu, soberana nos Paços meus.
Ah, não aceito que é vil desdouro
guarde o tesouro meu bom senhor.
Para tornar-se rica princesa
a camponesa não vende amor
És muito pobre pra amor tamanho
segue o rebanho mulher grosseira
Ah, como és tola, como eu te iludo
não passa tudo de brincadeira.
Se em vossas pompas, a vós senhores,
vendem amores as cortesãs,
essa fraqueza das damas nobres
não mancha as pobres das aldeãs!
Como já adivinharam, a autoria é de Almeida Garrett!
Esta camponesa é mais moderna, mas também não vai na conversa do Fidalgo!
Quanto à sua beleza, deixo-a à imaginação dos meus amigos...
O Artur sentiu sobre a orelha uma coisa
muito fria, com um som...
- O que é, mãe?
- Não ouves?
Sim, ouvia. Era um som pesado lá ao longe e que depois vinha, vinha e subia, e
que depois se tornava mais brandinho, para logo voltar a vir de longe. Parecia
música, mas não era bem música. E talvez fosse. Bom, não seria bem música.
- O que é, mãe? - Voltou a perguntar. - Que barulho é este?
- É o mar... É a voz do mar...
- A voz do mar?!
- O mar fica longe, mas a voz meteu-se aí dentro. Isto é um búzio.
- E onde nascem os búzios?
- No mar.
-Então é por isso que se ouve...
- Pois é. As ondas fazem um barulho assim quando se ouvem ao longe. E a gente
está longe. Não ouves a voz que lá vem?
- Oiço.
- E depois quebra-se assim como as ondas na areia.
- Então isto é o mar? O mar é o oceano. No mapa chamam-lhe oceano. Parece que
há vários... Eu já ouvi aos que andam no quarto ano: é o Oceano Atlântico, o
Oceano Índico...
- Não achas que mar é mais bonito?
- Pois é, mar é muito mais bonito.
De repente, fechou os olhos e juntou as duas mãos sobre o búzio, apertando-o
contra o ouvido.
- Agora deve ser um navio que lá vem. É mesmo, é, é um navio...
A mãe aproximou o ouvido, desviando o lenço.
- Não ouves?
Não, a mãe não ouvia. Mas o importante para ele era ter o mar apertado entre as
mãos. Lá vinha uma onda...e outra.
Alves Redol, Histórias Afluentes
E um arzinho da minha graça, neste pequeno acróstico que dedico a uma pessoa muito especial.
Para me abrigar do temporal que assolou a localidade onde vivo e para me reconfortar do desaconchego gelado e húmido que me inundava a alma, abri o meu velho baú para nele encontrar as preciosidades que já me fizeram feliz, numa outra vida e hoje minimizam a minha angústia nas horas mais difíceis. Espreitei lá para dentro,vi e revi tudo, constatando ainda haver espaço suficiente para nele me aninhar. Foi o que fiz!
Deliciei-me a reler os bilhetinhos que recebi durante anos. No dia da Mãe, no meu aniversário e também quando "eles", mais amiúde o meu pequeno "ele", me sentia a precisar de um miminho.
Este é o que sempre mais me comoveu e de novo me fez verter lágrimas de dolorosa saudade...dele e de mim!
Esta carta tem sido a menos lida, não por ter sido a última - já com 20 anos - e não me ter sido entregue em mão e, sim, pelo carteiro, mas porque no final desse ano de 94, precisamente no último dia, perdi a pessoa que mais falta me fez e ainda faz. A minha Estrela benfazeja, cujo nome tem três letrinhas apenas( tal como era o seu nome próprio) mas é a maior que o mundo tem! Nesta carta recordei as grandes alterações que haviam transformado o meu menino num homem com a alma e a mente replecta de grandes ideais, e algo mais...Mas isso vai ficar só entre nós.
Bem embrulhadinhos e mais recentes, estavam uns lindos bilhetinhos que o meu neto João se entretinha a dedicar-me, quando sabia merecer, e nunca receber, uma reprimenda ou uma palmada.
Ser considerada a Avó mais linda, tem de ter as suas compensações. Este menino foi uma dádiva de Deus, que sabia quanto amor eu tinha para dar a um bebé e o quanto os pais dele e eu, o desejávamos.
Saí do baú e fui procurar alguns dos livros que mais gostei de ler, não podiam ser muitos pois o espaço dentro do baú já seria exíguo, para aquilo que tinha em mente: voltar para aquele meu passado que tanta felicidade me trouxe e deixar-me embalar pelas doces recordações, até adormecer.
Peço-vos, por favor, que me deixem aqui ficar. Não tentem acordar-me...Levei também estes três mais recentes, o do MST já o li, mas como não sei o tempo que ficarei neste bunker protector, talvez me apeteça relê-lo. "A Marcha" já comecei a ler e "O Rapaz de Olhos Azuis", vai como reserva.
Quando eu despertar e sentir necessidade de sair do baú virei, de minha livre vontade, sem este amargo e penoso sentimento de cansaço de mim!
-------------BEIJINHOS e ABRAÇOS--------------------
Os poemas são pássaros que
chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto;
Alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
No maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
(Mário Quintana)
...assim como sem livros, sonhos ou poemas...sem ti, não sou nada!