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Tela de Serge Marshennikov
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Ao
senador Onésimo Sánchez faltavam-lhe seis meses e onze dias para morrer quando
encontrou a mulher da sua vida.
Conheceu-a no Rosal del Virrey, uma
povoaçãozinha ilusória, que de noite era um abrigo furtivo para os navios de
longo curso dos contrabandistas. Até o seu nome parecia uma zombaria, pois a
única rosa que se viu naquela povoação levou-a o próprio senador, na mesma
tarde em que conheceu Laura Farina.
Desde que conheceu o senador Onésimo
Sánchez, na primeira campanha eleitoral, Nelson Farina tinha suplicado a sua
ajuda para obter um falso bilhete que o pusesse a salvo da justiça. O senador,
amável mas firme, tinha-lho negado.
Nelson Farina não desistiu durante vários
anos, e cada vez que se lhe proporcionava uma ocasião repetia a diligência com
uma petição diferente. Mas recebeu sempre a mesma resposta. De maneira que
daquela vez deixou-se ficar na rede, condenado a deixar-se apodrecer vivo
naquela ardente guarida de corsários. Cuspiu o seu rancor:
- Merde – disse - c’est
le Blacaman de la politique.
Depois do discurso, como de costume, o senador deu um passeio pelas ruas
da povoação. Uma mulher encarrapitada no telhado de uma casa, entre os seus
seis filhos menores, conseguiu fazer-se ouvir por cima do alvoroço.
- Eu não peço muito, senador – disse – a não
ser um burro para trazer água do Poço do Enforcado.
O
senador observou as seis crianças esquálidas.
-
Que é que aconteceu ao teu marido? – perguntou.
- Foi procurar destino na ilha de Aruba – respondeu a mulher, bem-disposta – e o que encontrou foi uma forasteira daquelas que põem diamantes nos
dentes.
A
resposta provocou um estrondo de gargalhadas.
- Está bem – decidiu o senador – terás o teu
burro.
Pouco depois, um ajudante levou a casa da mulher um burro de carga, nas
costas do qual tinham escrito com pintura eterna um manifesto eleitoral, para
que ninguém se esquecesse de que era uma dádiva do senador.
Na
última esquina, por entre as estacas do pátio, viu Nelson Farina na rede e
pareceu-lhe cinzento e murcho, mas cumprimentou-o sem afecto:
- Como está?
Nelson Farina virou-se na rede e deixou-o ensopado no âmbar triste do
seu olhar.
- Moi, vous savez – disse.
A
sua filha apareceu no pátio ao ouvir a troca de palavras. Trazia vestida uma
bata cubana vulgar e usada e tinha a cabeça enfeitada com laços de fitas. Mesmo
naquele estado de negligência era possível imaginar que não havia outra mais
bela no mundo. O senador ficou sem alento.
- Porra – suspirou assombrado – as tolices
que Deus se lembra!
Nessa noite Nelson Farina vestiu a filha com as suas melhores roupas e
mandou-a ao senador. Dois guardas armados de rifles, que cabeceavam de calor na casa emprestada, mandaram-na esperar
na única cadeira do vestíbulo.
O
senador estava no quarto contíguo, reunido com os principais do Rosal del
Virrey. Tinha a camisa ensopada de suor e tentava secá-la sobre o corpo com a
brisa quente do ventilador eléctrico, que zumbia como um moscardo na modorra do
quarto.
Enquanto falava, o senador tinha arrancado um
cromo do calendário e tinha feito com as mãos uma borboleta de papel. Pô-la na
corrente do ventilador, sem nenhuma intenção, e a borboleta revoluteou dentro
do quarto e depois saiu pela porta entreaberta.
Laura Farina viu sair a borboleta de papel. Depois de ter dado várias
voltas, a enorme borboleta litografada desdobrou-se completamente,
esborrachou-se contra a parede e ali ficou pegada. Laura tentou arrancá-la com
as unhas e um dos guardas reparou na sua tentativa inútil.
-- Não se pode arrancar – disse entre sonhos –
está pintada na parede!
Laura
voltou a sentar-se quando começaram a sair os homens da reunião.
O senador permaneceu na porta do quarto com
a mão na aldraba e só reparou em Laura quando o vestíbulo ficou desocupado.
- Que fazes aqui?
- C’est de la part de mon père – disse ela.
O senador compreendeu. Observou atentamente Laura Farina,
cuja beleza inverosímil era mais imperiosa que a sua dor, e então decidiu que a
morte decidisse por ele.
- Entra
– disse-lhe.
Laura ficou maravilhada na porta do quarto: milhares de notas de banco
flutuavam no ar, esvoaçando como a borboleta. Mas o senador apagou o
ventilador, e as notas ficaram sem ar, e pousaram-se sobre as coisas do quarto.
- Já vês – sorriu – até a merda voa.
O
senador sentou-se numa cama de campanha falando de rosas, enquanto desabotoava
a camisa. Atirou para o chão a camisa molhada e pediu a Laura que o ajudasse a
tirar as botas.
Ela
ajoelhou-se diante do catre. O senador continuou a estudá-la, pensativo, e,
enquanto lhe desapertava os atacadores, perguntou-se para qual dos dois seria a
má sorte daquele encontro.
- És uma criança – disse.
- Não acredite – disse ela – vou completar
dezanove em Abril.
O
senador interessou-se.
-
Em que dia?
- A onze – disse ela.
O
senador sentiu-se melhor.
- Somos Aries – e acrescentou sorrindo: - É o signo da solidão.
Laura
não lhe prestou atenção, pois não sabia o que fazer com as botas. O senador,
por seu lado, não sabia o que fazer com Laura, porque não estava habituado aos
amores imprevistos, e, além disso, estava consciente de que aquele tinha origem
na indignidade.
Só
para ganhar tempo para pensar, prendeu Laura entre os joelhos, abraçou-a pela
cintura e estendeu-se de costas no catre. Então compreendeu que ela estava nua
por baixo do vestido, porque o corpo exalou uma fragrância obscura de animal de
monte, mas tinha o coração assustado e a pele aturdida por um suor glacial.
- Ninguém gosta de nós – suspirou ele.
Deitou-a a seu lado, para a ajudar, apagou a luz e o aposento ficou na
penumbra da rosa. Ela abandonou-se à misericórdia do seu destino. O senador
acariciou-a lentamente, procurou-a com a mão, mal lhe tocando, mas onde
esperava encontrá-la topou com um estorvo de ferro.
- Que tens aí?
- Um aloquete – disse ela.
- Que disparate! – Disse ele, furioso, e
perguntou o que sabia de sobra: - Onde
está a chave?
Laura Farina respirou, aliviada.
- Tem-na o meu pai – respondeu – Disse-me que lhe dissesse a si que a mande
buscar por um mensageiro e que lhe mande com ele uma promessa escrita de que
lhe vai resolver a situação.
O
senador pôs-se tenso. «Francesote cabrão»,
murmurou, indignado. Depois cerrou os olhos para relaxar-se e encontrou-se
consigo próprio na obscuridade.
Recorda
– lembrou – que sejas tu ou outro qualquer, estarás morto dentro de um tempo muito
breve e que pouco depois não restará de vós, nem o nome.
Esperou que passasse o calafrio.
- Diz-me uma coisa – perguntou então – o que ouviste dizer de mim?
- A verdade, verdadinha?
- A verdade, verdadinha.
- Bem – atreveu-se Laura farina – dizem que o senhor é pior do que os outros,
porque é diferente.
O
senador não se perturbou. Manteve um silêncio grande, com os olhos fechados, e
quando voltou a abri-los parecia regressar dos seus instintos mais recônditos.
- Que merda! – decidiu – diz ao cabrão do teu pai que lhe vou
resolver o assunto.
- Se quer, vou eu mesma buscar a chave –
disse Laura Farina.
O
senador reteve-a.
- Esquece a chave – disse – e dorme um bocado comigo. É bom estar com
alguém quando se está só.
Então
ela deitou-o no seu ombro. O senador abraçou-a pela cintura, escondeu a cara na
sua axila de animal de monte e sucumbiu ao terror.
Seis meses e onze dias
depois havia de morrer nessa mesma posição, pervertido e repudiado pelo
escândalo público de Laura Farina e chorando com a raiva de morrer sem ela.
Conto de Gabriel García Márquez - transcrito de uma colectânea composta por sete contos, um dos quais já aqui publicado no ano passado.