Este conto foi transcrito do livro "Contos da Montanha," de Miguel Torga.
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"A PAGA"
Continuação.
Entrou Abril, passou Maio, principiou Junho, e o mesmo fado corrido.
- Estou varado! – desabafava o Rodrigo.- Palavra que estou varado!
Mas, em Agosto, no dia de S. Domingos, quando o Arlindo estava nas suas sete quintas
– ó Arlindo, toca lá isto, ó Arlindo toca lá aquilo! - chega-se o Rodrigo ao pé dele e segreda-lhe: - Os Justos de Litém estão aí. O pai e os filhos…
Os dedos do meliante até se pegaram às teclas da sanfona.
- E ela?
- Ela veio cá o ano passado, e bem lhe chegou…
Já tinha saído a procissão e quem rodeava a estúrdia enchia os ouvidos de som para o regresso a casa. E, como a música esmoreceu, foram debandando e descendo a serra. Agora a festa era para os que tivessem contas velhas a ajustar.Começou então no adro um drama surdo, só interior. Os dois companheiros do Arlindo, o Rodrigo e o Gaspar, embora estroinas também, não estavam dispostos a arriscar um cabelo naquele sarilho.
- Quem as faz que as desfaça – dizia o Rodrigo, sempre que lhe falavam no caso.
E o Arlindo, há medida que a roda ia diminuindo, tinha a estranha sensação de que todos fugiam dele e o deixavam sozinho no mundo.
Na ânsia de os reter, mudava de música. Pior. A instabilidade das melodias pegava-se à assistência. Os Justos, sentados no fundo da escadaria, como a impedir-lhe a retirada, não mexiam um dedo. E a rarefacção do povo era ainda mais opressiva.
Começava a cair a noite dos lados de Constantim. As últimas vendedeiras tinham partido já. A pipa de vinho, que o Pé-Tolo tivera à sombra do sobreiro, descia o monte vazia, aos solavancos no carro.
Ao fim de duas horas de suores frios, durante as quais o Arlindo puxara pelo harmónio como um galeriano, os Justos ergueram-se e deixaram a passagem livre. - Bem, vamos andando… - disse o Arlindo, exausto. – Os homens não querem nada…
- Parece que não…
Meteram-se os três a caminho, aliviados duma carga que pesava a vida do Arlindo. Só no fundo do monte, quando o Rodrigo olhou para trás, é que viu que os Justos vinham em cima deles, calados.
- Isto dá grande desgraça, eu seja cego – avisou o Gaspar, transido. – E se fosse por outra coisa, tinhas-me aqui. Assim, não. Lá te avém…
Iam já nas matas do Infantado, quando os perseguidores cortaram por um atalho e se chegaram.
- Queremos uma palavrinha em particular aqui ao senhor Arlindo… O Rodrigo, numa irresistível solidariedade humana que se tem com qualquer condenado no momento da expiação, ainda arranjou coragem para refilar:
- Três para dizerem uma palavra a um homem só?!
Mas, sem mais rodeios, um dos Justos deitou as mãos às abas do casaco do Arlindo, enquanto os outros dois, de pistola na mão, insistiam numa palavrinha muito em particular àquele cavalheiro.
O Rodrigo e o Gaspar, à vista de tais argumentos, foram andando.
E, no dia seguinte, de manhã, o Arlindo entrou em Vale de Mendiz, embrulhado numa manta e…capado!
FIM
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Escrito de uma forma que só Torga o sabia fazer!!!
ResponderEliminarCara amiga, tenha uma boa semana, por aqui as coisas não estão fáceis!!!
Bjs
o Arlindo ficou com um Ar feio...
ResponderEliminarFoi pior que a vingança do chinês.
A amiga Janita tem o dom de nos trazer, sempre, qualidade.
Já o disse: adoro o dizer cru e agreste de Miguel Torga.
Capado?
ResponderEliminarPodia o Torga ser mais tolerante
com o Arlinto, ccoitado...
Não poderia ter sido apenas
... sei lá... circuncidado?
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Venho aqui frequentemente.
Leio e releio e, quando comento,
faço-o porque algo mexeu comigo, por dentro.
Dou uma explicação para o que faço, porque o faço e
gostava que comentasse o efeito provocado
Capado por alinhar em algo que a mulher também desejou. Enfim, outros tempos!
ResponderEliminarBeijocas!
PS: quanto ao teu comentário, eu seria um cuco!
Olá querida amiga Janita!
ResponderEliminarEu também acho que o Arlindo, não merecia tanto, mas os tempos eram outros, e sabe-se lá o que é que a moça disse aos manos, mas se ele tem feito isso a uma cigana as coisas podiam ser bem piores.
Uma boa semana
e um beijinho grande,
José
Olá Janita, sempre gostei de Miguel Torga. Obrigada por recordar algo de táo belo. Beijos com carinho
ResponderEliminarCreo que eso de capar a la gente se le debía olvidar,y piensen que si has sido capaz de capar de la misma forma puedes ser tratado.
ResponderEliminarSaludos enteros
também venho aqui defender o Arlindo:
ResponderEliminarCapado, acho que foi demais.
gostei da história, Janita! Mas, sabe que as vezes é dificil de entender o portugues de Portugal? fui pelo sentido. Boa semana para você, um abraço
ResponderEliminarJanita Só podia ser de Miguel Torga,mas o que faria ele em Litem? Adorei sempre gostei e gosto das escritas de Torga,o primeiro livro que li de foi um com o titulo Os Esteiros.
ResponderEliminarBeijos
Santa Cruz