sexta-feira, 6 de maio de 2011

DESAFIOS.





"Vicente"


Naquela tarde, à hora em que o céu se mostrava mais duro e mais sinistro, Vicente abriu as asas negras e partiu. Quarenta dias eram já decorridos desde que, integrado na leva dos escolhidos, dera entrada na Arca. Mas desde o primeiro instante que todos viram que no seu espírito não havia paz.
Calado e carrancudo, andava de cá para lá numa agitação contínua, como se aquele grande navio onde o Senhor guardara a vida fosse um ultraje à criação.
Em semelhante balbúrdia – lobos e cordeiros irmanados no mesmo destino – apenas a sua figura negra e seca se mantinha inconformada com o procedimento de Deus.
Numa indignação silenciosa, perguntava: - a que propósito estavam os animais metidos na confusa questão da torre de Babel? Que tinham que ver os bichos com a fornicação dos homens, que o Criador queria punir? Justos ou injustos, os altos desígnios que determinavam aquele dilúvio batiam de encontro a um sentimento fundo, de irreprimível repulsa. E, quanto mais inexorável se mostrava a prepotência, mais crescia a revolta de Vicente.
Quarenta dias, porém, a carne fraca o prendeu ali. Nem mesmo ele poderia dizer como descera do Líbano para o cais de embarque e, depois, na Arca, por tanto tempo recebera das mãos servis de Noé a ração quotidiana. Mas pudera vencer-se. Conseguira, enfim, superar o instinto da própria conservação, e abrir as asas de encontro à imensidão terrível do mar.





A insólita partida foi presenciada por grandes e pequenos num respeito calado e contido. Pasmados e deslumbrados, viram-no, temerário, de peito aberto, atravessar o primeiro muro de fogo com que Deus lhe quis impedir a fuga, sumir-se ao longe nos confins do espaço. Mas ninguém disse nada. O seu gesto foi naquele momento o símbolo da universal libertação. A consciência em protesto activo contra o arbítrio que dividia os seres em eleitos e condenados.
Mas ainda no íntimo de todos aquele sabor de resgate, e já do alto, larga como um trovão, penetrante como um raio, terrível, a voz de Deus:
- Noé, onde está o meu servo Vicente?
Bípedes e quadrúpedes ficaram petrificados. Sobre o tombadilho, desceu pesada, uma mortalha de silêncio.
Noé, porém, era homem. E, como tal, aprestou as armas de defesa.
- Deve andar por aí…Vicente! Vicente! Que é do Vicente?!...
Nada.
- Vicente!...Ninguém o viu? Procurem-no!
Nem uma resposta. A criação inteira parecia muda.
Até que alguém, compadecido da mísera pequenez daquela natureza, pôs fim à comédia.






- Vicente fugiu…
- Fugiu?!  Fugiu como?
- Fugiu…Voou…
Bagadas de suor frio alagaram as têmporas do desgraçado. De repente, bambearam-lhe as pernas e caiu redondo no chão.
Na luz pardacenta do céu houve um eclipse momentâneo. Mas a divina autoridade não podia continuar assim, indecisa, titubeante, à mercê da primeira subversão. O momento de perplexidade durou apenas um instante. Porque logo a voz de Deus ribombou de novo pelo céu imenso.
- Noé, onde está o meu servo Vicente?
Acordado do desmaio poltrão, trémulo e confuso, Noé tentou justificar-se.
- Senhor o teu servo Vicente evadiu-se. Ninguém o maltratou aqui. Foi a sua pura insubmissão que o levou…Mas perdoa-lhe, e perdoa-me também a mim…
- Noé!...Noé!...
Depois seguiu-se um silêncio terrível. E, no vácuo em que tudo pareça mergulhado, ouvia-se infantil, o choro desesperado do Patriarca, que tinha então seiscentos anos de idade.




Na consciência de todos a mesma angústia e a mesma interrogação. A que represálias recorreria agora o Senhor? Qual seria o fim daquela rebelião.
Teria Vicente resistido à fúria do vendaval, à escuridão da noite e ao dilúvio sem fim? E, se vencera tudo, a que paragens arribara?
Subitamente, um lince de visão mais penetrante viu terra. Toda aquela fauna desiludida e humilhada subiu acima, ao convés, no alvoroço grato e alentador de haver anda chão firme neste pobre universo.
Terra! Apenas a crista de um cerro a emergir das vagas. Mas bastava.
Terra!...Sim , existia ainda o ventre quente da mãe. Mas Vicente, o legítimo fruto daquele seio?
Vicente, porém, vivia. À medida que a barca se aproximava, foi-se clarificando na lonjura a sua presença esguia, que era ao mesmo tempo um perfil de vontade.
Chegara!... Conseguira vencer! E todos sentiram na alma a paz da humilhação vingada.
Ah, mas estavam «rotas as fontes do grande abismo e abertas as cataratas do céu»!
Ninguém podia lutar contra a determinação de Deus.





Transida, a turba sem fé fitava o reduzido cume e o corvo pousado em cima. Como um espectador impessoal, seguia a Arca que vinha subindo com a maré. Escolhera a liberdade e aceitara desde esse momento todas as consequências da opção.
Noé e o resto dos animais assistiam mudos àquele duelo entre Vicente e Deus. A significação da vida ligara-se indissoluvelmente ao acto de insubordinação.
Sangue, respiração, seiva de seiva, era aquele corvo negro, molhado da cabeça aos pés, que, calma e obstinadamente, pousado na derradeira possibilidade de sobrevivência natural, desafiava a omnipotência.
Três vezes uma onda alta, num arranco de fim, lambeu as garras do corvo, mas três vezes recuou. A cada vaga, a Arca estremeceu de terror, dependente do coração resoluto de Vicente. A morte temia a morte.
Mas em breve se tornou evidente que o Senhor ia ceder. Para salvar a sua própria obra, fechava, melancolicamente, as comportas do céu…
Que nada podia contra àquela vontade inabalável de ser livre…




Conto de Miguel Torga

Imagens recolhidas da Net

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31 comentários:

  1. Bonito post y bello blog, es un placer pasar por tu casa.
    que tengas un feliz fin de semana.
    un abrazo.

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  2. Adorei este texto onde entra a história de Noe. Muito bom mesmo!

    Um abraço e bom fim de semana.

    transpondo-barreiras.blogspot.com

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  3. Janita querida, sem palavras eu fico para descrever este belo texto
    beijos

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  4. Me ha gustado mucho el relato.
    Te deseo un feliz fin de semana.
    Un abrazo.

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  5. Belissimo!!!

    Bom fim de semana para si, minha amiga!

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  6. Belissimo!!!

    Bom fim de semana para si, minha amiga!

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  7. Hermoso texto, sobre la historia de Noé, me ha gustado, su estilo y su contenido.
    Que tengas un feliz fin de semana.
    Besos.

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  8. Janita: lindo conto de Miguel Torga adorei, mas não conhecia.
    Beijos
    Santa Cruz

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  9. Uma leitura que encanta essa.Bela escolha,Janita!

    um beijo,tuido de bom,chica

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  10. Gran escrito para una gran historia que nunca se olvidará a Noé y su arca jamás.

    Un saludo

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  11. que o conto de Miguel Torga. Adorei o post, Janita! Obrigada e um bom fim de semana. beijinhos

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  12. Miguel Torga podia ter trocado impressões com Saramago. Talvez assim a versão de Caim fosse menos herege, logo menos polémica.
    Como o Vicente era danado para a brincadeira e vai daí voou do Ararat directamente para a Peninsula Ibérica vindo a fundar a minha cidade, Lisboa.
    São as loucuras da passarada.
    Beijinho amiguita

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  13. ...traigo
    sangre
    de
    la
    tarde
    herida
    en
    la
    mano
    y
    una
    vela
    de
    mi
    corazón
    para
    invitarte
    y
    darte
    este
    alma
    que
    viene
    para
    compartir
    contigo
    tu
    bello
    blog
    con
    un
    ramillete
    de
    oro
    y
    claveles
    dentro...


    desde mis
    HORAS ROTAS
    Y AULA DE PAZ


    COMPARTIENDO ILUSION
    JANITA

    CON saludos de la luna al
    reflejarse en el mar de la
    poesía...




    ESPERO SEAN DE VUESTRO AGRADO EL POST POETIZADO DE MEMORIAS DE AFRICA , CHAPLIN MONOCULO NOMBRE DE LA ROSA, ALBATROS GLADIATOR, ACEBO CUMBRES BORRASCOSAS, ENEMIGO A LAS PUERTAS, CACHORRO, FANTASMA DE LA OPERA, BLADE RUUNER ,CHOCOLATE Y CREPUSCULO 1 Y2.

    José
    Ramón...

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  14. Minha amiga:
    Miguel Torga para mim é um dos mais importantes escritores portugueses do século XX.
    E este belíssimo texto, que é um hino à liberdade prova isso mesmo.
    "Naquela tarde, à hora em que o céu se mostrava mais duro e mais sinistro, Vicente abriu as asas negras e partiu."
    Acho que os escolheste propositadamente, nesta altura em que parece que o céu está contra nós!

    Beijinhos

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  15. Olá, Janita!

    É a clara apologia da troca da segurança da prisão pela liberdade arriscada, de desfecho incerto, mesmo que arriscando a ira de quem, no fundo, só queria sua sobrevivência.

    O pão tem melhor sabor quando comido em liberdade ...como bem sabia o Vicente.

    Bom resto de fim de semana.
    beijinhos.
    Vitor

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  16. Trazer este conto desse magnifico escritor, que tanto me marcou, é um sinal de muita inteligência.
    Parabéns Janita.

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  17. Depois deste belo texto,só tenho a agradecer-te o carinhoso comentário que me enviaste,que adorei e desejar-te um bom fim de semana.
    Um grande beijinho...Miuíka

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  18. A irreverência dos livres
    Num conto tão bem contado
    fazendo lembrar
    o meu pensar
    fora do paradigma do quadrado.

    As verdades tocam-se
    e eu comovo-me

    Obrigado

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  19. Amiga Janita; gracias por tu visita y comentario.
    Tiene un blog precioso, lleno de contenido importantisimo. Las imágenes son muy buenas y de trofeos estás hasta la envidia mía, y eso solo se da cuando satisfaces al lector. Saludos a Ines.
    Amiga, ha sido un placer visitarte, y desde ahora seré un lector tuyo.
    Un abrazo. Jecego,

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  20. E o Vicente abandonou assim a sua fêmea?!? Na volta disse que ia comprar cigarros. Beijoca!

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  21. Querida Janita,

    Pela liberdade, valem a pena todos os riscos que se correm.
    Infelizmente à sombra dela há quem se aproveite para a desvirtuar e pisar o risco.
    Neste conto, Deus respeita Vicente pela sua vontade inabalável de ser livre, enquanto nós assistimos diariamente ao desrespeito que o Homem tem para com o Outro e pela sua própria natureza.

    Uma óptima semana, beijos e kandandos meus, amiga. Inté...

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  22. Querida Amiga Janita,
    Li e registei com atenção redobrada os comentários de: KIM, Fê-bluebird,vitorchuvashortstories e... Kimbanda, que gostaria de ter subscrito [sem menosprezo pelos demais], mas por falta de inspiração e talento, fico-me por aqui...
    Beijo com muita amizade,
    J

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  23. É um dos (muitos) belos contos de Torga que gostei de recordar. Estou de regresso, mas em trânsito, porque Cannes espera-me daqui a poucos dias.

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  24. Bichos é uma colectânea de contos absolutamente incomparável. Não vou dizer que são os melhores porque dos contos de Miguel Torga, não consigo distinguir os piores. Mas todos os bichos nos trazem lições que deveríamos reter. Vicente não é apenas mais um conto da arca de Noé. Vicente é um hino à liberdade. E Torga é eterno, tão eterno como a memória.

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  25. Que desafio hein! Conto fantástico e muito bom de ler. Quero mais assim! Bj

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  26. Siempre es un placer visitarte.Hermoso blog.Un abrazo.J.R.

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  27. A liberdade é o grito da alma aprisionada, ninguém nasce para ser cativo mas todos querem cativar.
    Adorei o texto também sou fã de Miguel Torga, beijinhos de luz e muita paz.

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