sábado, 31 de maio de 2014

Só Para Românticos Que Gostem de Recordar....



...SEM SAUDOSISMO, MAS COM SAUDADE.





Entreguei-te o coração,
E que tratos tu lhe deste!
É talvez por estar estragado
Que ainda não mo devolveste... 

      

                        Qual de vós adivinha quem é o autor desta quadra?


 Vá lá, tentem, não é difícil! :)

Tenham um Feliz Fim-de-Semana,
 
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quarta-feira, 28 de maio de 2014

As Minhas Rosas São Vossas...Não As Deixeis Perecer! :)



 
 
AS ROSAS
 
 
Rosas que desabrochais,
Como os primeiros amores,
Aos suaves resplendores 
   Matinais
    (…)
Tal é o vosso destino
  Ó filhas da natureza;
  Em que vos pese à beleza,
     Pereceis
   Mas, não... Se a mão de um poeta
        Vos cultiva agora, ó rosas,
          Mais vivas, mais jubilosas,
                Floresceis.

Machado de Assis, in "Crisálidas"
 
 
SÃO PARA TODOS VÓS; COM UM BEIJINHO MEU!
:)
 
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domingo, 25 de maio de 2014

"O Vagabundo na Esplanada."


A surpresa, de mistura com um indefinido receio e o imediato desejo de mais acautelada perspectiva de observação, levava os transeuntes a afastarem-se de esguelha para os lados do passeio. Pela clareira que se abria, o vagabundo, de mãos nos bolsos das calças, vinha, despreocupadamente, avenida abaixo.

Cerca de cinquenta anos, atarracado, magro, tudo nele era limpo, mas velho e cheio de remendos. Sobre a esburacada camisola interior, o casaco, puído nos cotovelos e demasiado grande, caía-lhe dos ombros em largas pregas, que ondulavam atrás das costas ao ritmo lento da passada. Desfiadas nos joelhos, muito curtas, as calças deixavam à mostra as canelas, nuas, finas de osso e nervo, saídas como duas ripas dos sapatos cambados. Caído para a nuca, copa achatada, aba às ondas, o chapéu semelhava uma auréola alvacenta.

Apesar de tudo isso, o rosto largo e anguloso do homem, de onde uns olhos azuis-claros irradiavam como que um sorriso de luminosa ironia e compreensivo perdão, erguia-se, intacto e distante, numa serena dignidade. Era assim, ao que se via, o seu natural comportamento de caminhar pela cidade.

Alheado, mas condescendente, seguia pelo centro do passeio com a distraída segurança de um milionário que obviamente se está nas tintas para quem passa. Não só por educação mas também pelo simples motivo de ter mais e melhor em que pensar. O que não sucedia aos transeuntes. Os quais, incrédulos ao primeiro relance, se desviavam, oblíquos, da  ambulante causa do seu espanto. E à vista do que lhes parecia um homem livre de sujeições, senhor de si próprio em qualquer circunstância e lugar, logo, por contraste, lhes ocorriam todos os problemas, todos os compadrios, todas as obrigações que os enrodilhavam. E sempre submersos de prepotências, sempre humilhados e sempre a fingir que nada disso lhes acontecia. Num instante, embora se desconhecessem, aliava-os a unânime má vontade contra quem tão vincadamente os afrontava em plena rua. Pronta, a vingança surgia. Falavam dos sapatos cambados, do fato de remendos, do ridículo chapéu. Consolava-os imaginar os frios, as chuvas e as fomes que o homem havia de sofrer. No entanto, alguém disse:

- Devia ser proibido que indivíduos destes andassem pela cidade.

E assim, resmungando, se dispersavam, cada um às suas obrigações, aos seus problemas. Sem dar por tal, o homem seguia adiante. Junto dos Restauradores, a esplanada atraiu-lhe a atenção. De cabeça inclinada para trás, pálpebras baixas, catou pelos bolsos umas tantas moedas, que pôs na palma da mão. Com o dedo esticado, separou-as, contando-as conscienciosamente. Aguardou o sinal de passagem, e saiu da sombra dos prédios para o Sol da tarde quente de Verão.
 
 
 
 
 
A meio da esplanada havia uma mesa livre. Com o à vontade de um frequentador habitual, o homem sentou-se. Após acomodar-se o melhor que o feitio da cadeira de ferro consentia, tirou os pés dos sapatos, espalmou-os contra a frescura do empedrado, sob o toldo. As rugas abriram-lhe no rosto curtido pelas soalheiras um sorriso de bem-estar. Mas o fato e os modos da sua chegada haviam despertado nos ocupantes da esplanada, mulheres e homens, uma turbulência de expressões desaprovadoras. Ao desassossego de semelhante atrevimento sucedera a indignação. Ausente, o homem entregava-se ao prazer de refrescar os pés cansados, quando um inesperado golpe de vento ergueu do chão a folha inteira de um jornal, e enrolou-lha nas canelas. O homem apanhou-a, abriu-a. Estendeu as pernas, cruzou um pé sobre o outro.
Céptico, mas curioso, pôs-se a ler. O facto, de si tão discreto, pareceu constituir a máxima ofensa para os presentes. Franzidos, empertigaram-se, circunvagando os olhos, como se gritassem:
 «Pois, não há um empregado que venha expulsar daqui este tipo!»
 Nas caras, descompostas pelo desorbitado melindre, havia o que quer que fosse de recalcada, hedionda raiva contra o homem mal vestido e tranquilo, que lia o jornal na esplanada.

Um rapaz aproximou-se. Casaco branco, bandeja sob o braço, muito senhor do seu dever. Mas, ao reparar no rosto do homem, tartamudeou:

- Não pode...
E calou-se. O homem olhava-o com atenta benevolência.
- Disse?
- É reservado o direito de admissão - tornou o rapaz, hesitando. - Está além escrito.

Depois de ler o dístico, o homem, com a placidez de quem, por mera distracção, se dispõe a aprender mais um dos confusos costumes da cidade, perguntou:

- Que direito vem a ser esse?

- Bem...- volveu o empregado. - A gerência não admite... Não podem vir aqui certas pessoas.

- E é a mim que vem dizer isso?

O homem estava deveras surpreendido. Encolhendo os ombros, como quem se presta a um sacrifício, deu uma mirada pelas caras dos circunstantes.
O azul-claro dos olhos embaciou-se-lhe.

-Talvez que a gerência tenha razão -concluiu ele, em tom baixo e magoado. - Aqui para nós, também me não parecem lá grande coisa.

O empregado nem podia falar.
Conciliador, já a preparar-se para continuar a leitura do jornal, o homem colocou as moedas sobre a mesa, e pediu, delicadamente:

-Traga-me uma cerveja fresca, se faz favor. E diga à gerência que os deixe ficar. Por mim, não me importo.

Manuel da Fonseca in Tempo de Solidão.
 
Nota: A pedido de Amigos que sentiram a minha falta, voltei. A criança que ficou pelo caminho, não a consegui encontrar. Não onde e como a deixei... Talvez, um dia, mais tarde...
 
                                 BEIJINHOS E BOA SEMANA PARA TODOS.
 

 
 

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Ventos de Mudança.




"A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou.
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou."
( Fernando Pessoa)

 
Vou ali e já venho. Prometo não demorar!
 
 
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sexta-feira, 16 de maio de 2014

Voo de Andorinhas.





QUE VOZ!  O ANTÓNIO ZAMBUJO ATÉ ESTÁ DE QUEIXO CAÍDO!!

GRANDES BUBEDANAS!

ANDORINHA ASSIM O FEZ...ANDORINHA AQUI O FAZ.

APRECIEM ESTAS  VOZES E DIGAM LÁ SE O  CANTE ALENTEJANO É PARA

ADORMECER PREGUIÇAS!! 



DEDICO ESTE POST AO MEU AMIGO  ARGOS, COM MUITA AMIZADE! :)


                                                                    

                                 BEIJINHOS E VOTOS DE BOM FIM-DE-SEMANA!

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terça-feira, 13 de maio de 2014

O Primeiro Beijo




O dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.
- Está bem, acredito que sou a tua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar? Ele foi simples:
- Sim, já beijei antes uma mulher.
- Quem era ela? perguntou com dor.

Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.
O autocarro da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir – era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.

E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.
E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engolia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.
A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.

E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, enquanto sua sede era de anos.
Não sabia como e porquê mas agora sentia-se mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e os seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.

O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava… o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O autocarro parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.
De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga. Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos.

Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.
E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.

Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador da vida… Olhou a estátua nua.
Ele a havia beijado.
Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atónito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.

Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.
Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele…Ele se tornara homem!...

                                                            Clarice Lispector "in Felicidade Clandestina"

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segunda-feira, 12 de maio de 2014

Foi Aqui Que Falaram de Mim?...E eu sem saber!!!...



«(…) o actor João Ricardo falar sobre o livro, no dia do lançamento, e fiquei apaixonada pela história que surgiu a partir de conversas, enternecedoras, que mantinha com o filho. As ilustrações estão simplesmente fabulosas.»
Os melhores elogios a uma obra são os escritos pelos seus leitores, como acontece aqui com o livro infantil «Queres namorar comigo?»
http://francis-janita.blogspot.pt/2013/11/queres-namorar-comigo.html
francis-janita.blogspot.com



 
Ainda alguém se lembra daquele meu post  do ano passado, em que falei acerca desta história, linda, a propósito da entrevista que ouvi na televisão, feita ao actor João Ricardo?
Pois a Book House teve conhecimento disso - coisa espantosa - aproveitou e achou por bem publicitar o lançamento do livro fazendo a apresentação no FB com esta alusão ao meu singelo blog.
Como já referi, há uns tempos atrás, fechei a minha conta no facebook, mas alguém viu e se encarregou de me dar conhecimento desse facto.

Não é sem alguma perplexidade que aqui vos trago a prova de que quando partilhamos o talento de quem trabalha e cria algo com carinho, também acabamos por receber o retorno. Mesmo que isso nos surpreenda e nos deixe incrédulos, por termos feito tão pouco e recebermos tanto. 
Chamar-se-á a isto reconhecimento recíproco ou publicidade nua e crua?
Sabem de uma coisa? Não sei nem quero saber! Mas lá que gostei de ver o meu blog ser citado pelas Livrarias Book House, lá isso gostei!:)

TENHAM UMA EXCELENTE SEMANA!
   

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Gabriel García Márquez.



Nunca é tarde para homenagear Gabriel García Márquez, contudo,
não irei alongar-me, agora, formulando opiniões sobre este escritor colombiano que levou a literatura da América Latina aos quatro cantos do mundo, como é do conhecimento geral.

Apenas irei referir este livro.
Uma colectânia de sete contos, curtos, mas qual deles o mais interessante. O último, com um título enorme, é o que empresta o nome ao livro e, como sugere, relata a história de uma avó, cruel, que resolve iniciar a neta adolescente no mundo da prostituição.

Uma história rocambolesca, com momentos de tristeza e alguma ternura que, como não poderia deixar de ser, não termina com um final feliz.

"Sem tom nem som, como só é possível cantar nos sonhos, cantou as linhas da sua amargura"

"Senhor, Senhor, devolve-me a minha antiga inocência, para gozar o seu amor outra vez desde o princípio"  


Se algum de vós já o leu, gostaria de saber a vossa opinião.:)

Como a poesia é uma constante, neste espaço, termino com um belo soneto de sua autoria:



Si alguien llama a tu puerta, amiga mía,
y algo en tu sangre late y no reposa
y en su tallo de agua, temblorosa,
la fuente es una líquida armonía.

Si alguien llama a tu puerta y todavía
te sobra tiempo para ser hermosa
y cabe todo abril en una rosa
y por la rosa se desangra el día.

Si alguien llama a tu puerta una mañana
sonora de palomas y campanas
y aún crees en el dolor y en la poesía.

Si aún la vida es verdad y el verso existe.
Si alguien llama a tu puerta y estás triste,
abre, que es el amor, amiga mía.

 
BOM FIM DE SEMANA PARA TODOS!
 
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segunda-feira, 5 de maio de 2014

Nem Tudo São Flores...No Meu Jardim...

...Também há algumas ervas...



Neste Maio quente, tudo cresce e floresce
e faz parte de mim...







A cameleira dobrada, junta-se à folhagem da magnólia já sem flor.








 
Há uma miscelânea de cores e perfumes um pouco selvagens...por falta de trato...mas, ainda assim, hoje me encantaram e quis partilhar convosco. 


 
Finalmente, consegui descobrir uma rosa vermelha
 mais viçosa que
as demais.
 
Gostava que gostassem...é para vós!
 
 


 
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domingo, 4 de maio de 2014

MÃES E FILHOS.


Mãe!  Passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens! Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar!
Quando voltar, é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me a teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.
Mãe! Ata as tuas mãos às minhas e dá um nó cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.
Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça, é tudo tão verdade!

A Invenção do Dia Claro, de Almada Negreiros.
 
 
                  A TODAS AS MÃES E FILHOS DESEJO UM FELIZ DIA
COM MUITOS MIMOS E TERNURAS!
 
:) :)
 
                                                  

sexta-feira, 2 de maio de 2014

"POEMA DOS PASSARINHOS ANTIGOS".



UM MIMINHO DA QUERIDA AMIGA FÊ BLUE BIRD.
O PASSARINHO AZUL MAIS ENCANTADOR
DE TODA A BLOGOSFERA!
A ELA, DEDICO ESTE POEMA.



                 
Era um par de jovens. Ela e ele. Ambos jovens.
Alegremente cantavam as canções dos jovens
e tinham orgulho em dançar as danças ruidosas dos jovens.
Como jovens que eram riam-se das pessoas antigas
por já não serem jovens,
por não saberem dançar as suas danças de jovens,
por não saberem cantar as suas canções de jovens.
Mas num dia em que os seus olhos se encontraram de certo modo,
sentiram nos seus corpos um estremecimento antigo.
As células antigas dos seus corpos jovens
estremeceram.
As palavras de amor saíram-lhes da boca
pressurosas e múltiplas,
como as pequenas bolas de sabão
quando num tubo estreito são sopradas.
E juntamente com elas saíam passarinhos leves,
passarinhos antigos,
tão leves como as bolas de sabão,
e os passarinhos iam debicar nos lábios de ambos,
e os lábios intumesciam-se, vermelhos e macios como polpas,
e os passarinhos roçavam a penugem do peito pelas pálpebras deles
com os bicos alisando as sobrancelhas,
e aninhavam-se entre a carne e a roupa
batendo as asas num saber antigo.
Quando acordaram e quiseram sacudir o pó do tempo
ouviram o riso dos jovens que se riam das pessoas antigas,
e alegremente cantavam as suas canções de jovens
e tinham orgulho em dançar as danças ruidosas dos jovens.

António Gedeão, in Obra Poética, 2001
 
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quinta-feira, 1 de maio de 2014

Engrenagens...

 
O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO
 
Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as asas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.


De facto como podia
Um operário em construção
Compreender porque um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento


Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse eventualmente
Um operário em construção.
Mas ele desconhecia
Esse facto extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão
Era ele quem fazia
Ele, um humilde operário
Um operário em construção.
Olhou em torno: a gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.


Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.


Foi dentro dessa compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.


E um facto novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia "sim"
Começou a dizer "não"
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o whiskie do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.


E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução


Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação.
- "Convençam-no" do contrário
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isto sorria.


Dia seguinte o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu por destinado
Sua primeira agressão
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!


Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.


Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo contrário
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher
Portanto, tudo o que ver
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.


Disse e fitou o operário
Que olhava e reflectia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria
O operário via casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objectos
Produtos, manufacturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!


- Loucura! - Gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - Disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.


E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fracturas
A se arrastarem no chão
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção…
Este poema foi escrito por Vinícius de Moraes em 1956 e  descreve o trabalho como base da vida humana, o processo de tomada de consciência de alguém que resiste à exploração e aprende a dizer NÃO.
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