terça-feira, 13 de maio de 2014
O Primeiro Beijo
O dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.
- Está bem, acredito que sou a tua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar? Ele foi simples:
- Sim, já beijei antes uma mulher.
- Quem era ela? perguntou com dor.
Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.
O autocarro da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir – era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.
E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.
E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engolia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.
A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.
E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, enquanto sua sede era de anos.
Não sabia como e porquê mas agora sentia-se mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e os seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.
O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava… o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O autocarro parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.
De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga. Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos.
Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.
E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.
Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador da vida… Olhou a estátua nua.
Ele a havia beijado.
Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atónito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.
Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.
Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele…Ele se tornara homem!...
Clarice Lispector "in Felicidade Clandestina"
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Quero o teu primeiro beijo
ResponderEliminarLembra-se da música do Rui Veloso??
Beijinhos
Claro que me lembro, Pedro!
EliminarDa música e da letra! :) Quem pode esquecer esse beijo?
Todos sabem que ' muito mais é o que nos une que aquilo que nos separa' :)
Beijinhos .
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ResponderEliminarFiquei enternecida a ler esta passagem que escolheste para nós do conto da Clarice Lispector.
Gosto imenso da forma de escrever desta autora, aprecio a sua sabedoria e sensibilidade... mas acreditas que nunca li nenhuma obra completa dela? Este livro de contos deve ser uma delícia.
A propósito de beijos, vou-te confidenciar uma coisa que se passou comigo há apenas uns minutos: no fim do meu almoço de hoje comi cerejas fresquinhas do frigorífico... e ao colocá-las nos lábios, fazendo uma ligeira pressão para sentir a sua frescura, tive a sensação de estar com os meus lábios colados a outros lábios! :D
Hás-de experimentar... é altamente revelador... :)))))
Beijinhos e abraços dos nossos
(^^)
Eliminarp.s. a imagem que colocaste com um pormenor do "Gigante de Bolonha", ela própria merecia um post! Quando arranjar um tempinho vou seguir esta ideia.
(^^)
Este conto tem a particularidade de expor, de uma forma muito especial, o despertar para a vida de um adolescente, através da necessidade de matar a sede. O erotismo pode estar subjacente nesta descoberta, mas a meu ver é algo muito belo e com uma enternecedora dose de inocência.
EliminarQuanto à tua sensação de beijar outros lábios, quando esmagaste a cereja fria com a tua boca, podes crer que é sensação que nunca terei.:)
1º - Não gosto de cerejas geladas! Acho que o frio tira o sabor aos frutos vermelhos.
2º- Gosto de beijos cálidos que transmitam desejo e vida. Pensar em bocas geladas é algo que me lembra a morte e me arrepia toda!:))
Lembra-te que o jovem estava sequioso e só viu que havia colado a boca aos lábios da estátua, nascente de água fresca, quando se saciou. O êxtase foi, inevitavelmente, uma dupla descoberta....para ele e para ti. lol
A imagem mostra uma das ninfas, que jorram águas pela boca e seios, e fazem parte da Fontana del Nettuno em Bologna.
Sim, sem dúvida que merece um post no teu blog. As estátuas revestem-se de uma certa carga erótica. Sobretudo a principal...que não pode ficar como o projectista queria, porque a Igreja proibiu.
Imagina porquê!
Beijinhos, Afro...
O Espírito de Clarisse Lispector parce querer dizer-nos, explicar-nos, como é o Amor.
ResponderEliminarFizeste uma excelente escolha.
Há demasiada gente a confundir este nobre sentimento.
Parabéns.
Beijos
SOL
Olá, SOL.
EliminarSem dúvida, que a Clarice deu a este texto uma versão da descoberta dos mistérios da vida, através de uma necessidade básica e essencial à mesma: Matar a sede!
Concordo com a tua última frase, meu Amigo!
Beijos.
Olá Janita,
ResponderEliminarcada um de nós "guarda" o seu primeiro beijo e alguns até conseguem rir!
Abraço grande
Olá, Argos.
EliminarGuardar, todos guardamos, mas nem sempre essa é a melhor recordação.
Alguns conseguem rir e outros chorarão. Nem sempre 'a primeira vez' nos deixa as melhores lembranças!
Beijinhos e abraços grandes.
Amiga Janita:
ResponderEliminarClarice Lispector tinha um talento e uma sensibilidade única, este texto (que desconhecia e adorei) revela de forma espantosa o desabrochar para a vida e para o amor.
Há uma frase dela que diz muito sobre o seu carácter.
"Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro..."
beijinho
Fê
Minha querida Fê.
EliminarEste teu comentário é o melhor tributo que alguém poderia prestar ao talento e sensibilidade de Clarice Lispector.
Esplendida frase, e bem reveladora da sua ausência de pretensiosismo.
Obrigada, Fê.
Beijinhos.
JANITA
ResponderEliminarsaudade e um beijo
Olá, Lili!
EliminarQue surpresa boa ter-te aqui no meu modesto cantinho!
Temos de encurtar a distância e mitigar a saudade!
Beijinhos, amiga. Bem-hajas pela visita. :)
Olá, Janita!
ResponderEliminarHistória curiosa, esta, acerca dum primeiro beijo;e também sensível e delicada na forma ,certamente porque contada por uma mulher, descrevendo como ele num dia quente transformou um rapaz em homem.
Bonito texto!
Beijinhos amigos
Vitor
Olá, Vitor.
EliminarUma forma diferente e deliciosa de abordar um tema tão antigo como a Humanidade: a descoberta e o deslumbramento do prazer e do amor.
Bonita a tua maneira de entenderes o texto.
Beijinhos amigos e o desejo que tudo esteja bem contigo.
Janita.
Esse beijo foi uma grande pedrada... ;)
ResponderEliminar:)) E que pedrada!!
EliminarFoi assim a modos que tiro e queda, Daniel! :))
Beijinhos...
;)
E a Afrodite apanhou a deixa! :)
ResponderEliminarAbraço
E, como sempre, muito bem apanhado, Rosa dos Ventos!:)
EliminarA nossa deusa não deixa os créditos por mãos alheias...já lá passei de raspão, mas irei ver com mais tempo!
Abraço!
Olá, Janita!!
ResponderEliminarO primeiro beijo transporta consigo uma certa candura e ingenuidade. É uma saborosa descoberta, que desperta a sede para mais e não há saciedade que nos valha.
Um abraço amigo,
Jorge
Há sempre um primeiro beijo...
ResponderEliminarAté pode ser de uma pedra nua feita mulher...ou pode ser de...tanta coisa...