quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Partilhando Leituras # 4

    Foi só o Larry chegar, e a Emma ficou milagrosamente curada. É meia-noite e está pronta para começar o dia de novo, como se jamais tivesse tido dores nas costas.
    Começamos a dançar.
    Dançar deixa-me sempre inibido, como o Larry sabe perfeitamente, ao passo que ele se sente como peixe na água: ora um majestoso dançarino de fox-trot, ao melhor estilo colonial, ora um cossaco tresloucado, ou lá o que é, mãos nas ancas, descrevendo em torno dela círculos imperiais, matraqueando o soalho envernizado com os meus chinelos de quarto. Cantamos, apesar de eu não ter voz. Primeiro reunimo-nos num triângulo apertado a ouvir o relógio bater a meia-noite.
   Depois damos os braços, um braço macio e branco para cada um, e cantamos a plenos pulmões o «Auld Lang Syne» enquanto o Larry, menino de coro em Winchester, brilha no descanto e o colar saltita cintilante no pescoço da Emma. E embora o seu olhar e os seus sorrisos sejam para mim, não preciso de lições sobre o amor, para saber que cada saliência e reentrância do seu corpo, da cabeça de azeviche à castidade do cair da sua saia é para ele que existe.
E, quando às três e meia, chega pela segunda vez naquela noite a hora de irmos dormir, e o Larry está prostrado na cadeira de baloiço, morto de tédio a olhar para nós, e eu, de pé atrás dela, lhe massajo os ombros, sei que são as mãos dele e não as minhas que ela sente no seu corpo.
   Então, lá fizeste mais uma das tuas viagens  digo-lhe eu na manhã seguinte, quando o encontro já na cozinha, a fazer chá e torradas. Não pregou olho. Toda a santa noite tive de suportar o cheiro pestilento dos seus pavorosos cigarros russos.
    É verdade, lá fiz diz por fim, concordando. Está a ser invulgarmente reticente quanto à sua ausência, o que faz reviver em mim a esperança de que terá encontrado uma mulher que seja sua.
     Médio Oriente?  arrisco.
    — Não propriamente. 
    — Ásia?
  — Não propriamente. Estritamente europeia, de facto. O baluarte da civilização.
     Não sei se está a tentar fazer-me calar, se a encorajar-me a prosseguir, mas, seja lá o que for, não lhe dou esse prazer. Já não sou o seu guardião. Os operacionais recolocados e quando é que o Larry alguma vez se colocou? – são responsabilidade dos Serviços Sociais, a menos que sejam dadas por escrito instruções diferentes.
    — Enfim, foi qualquer coisa agradável e pagã  - arrisco novamente, disposto a mudar de assunto.
  — Disso não há dúvida. Foi agradável e pagão. Para uma experiência natalícia integral, nada melhor que um cheirinho a Grozni em dezembro, uma delícia. Uma escuridão de breu, um fedor insuportável a petróleo, os cães andam bêbedos e os adolescentes andam carregados de ouro e de Kalashnikov na mão.
   Olho-o, perplexo.
     —  Grozni, na Rússia?
  Chechénia, mais precisamente. No norte do Cáucaso. Tornou-se independente. Unilateralmente. Moscovo está um pouco ressabiado.


(Continua)




       


14 comentários:

  1. Já li, e como dizia o outro (sabe quem?), só tenho um adjectivo para qualificar o texto: gostei.
    (Um aparte: dos 38º já vou nos 37/37,5º.; nada mau).

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    1. :))) Agora deu-lhe para as adivinhas?

      Isso dos 38 graus à sombra e que passaram para 37, deve ser febre, será?
      Quanto ao outro - o dos adjectivos - só me ocorre o Alexandre O'Neill, neste poema:

      O adjectivo
      dá-me de comer.
      Se não fora ele
      o que houvera de ser?

      Vivo de acrescentar às coisas
      o que elas não são.
      Mas é por cálculo,
      não por ilusão.

      Eheheheh

      Um beijo e estimo-lhe as melhoras.

      :)

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    1. Grande responsabilidade a minha, amiga Papoila!
      A selecção tem de ser feita de modo a captar a vossa atenção...:)
      Os diálogos e informações acerca dos Serviços Secretos, têm de ser omitidos para que isto não se torne maçudo. :)

      Beijinhos

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  3. Aguardo o aproximo capitulo!

    Beijinho Amiga Janita

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    1. Aguardemos, então, Flor de Jasmim! :)

      Beijinhos, Amiga.

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    1. Agradecida, Elvira! Penso que irá gostar.

      Abraço!

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    1. Certamente, Pedro! Obrigada!
      Devagar chegaremos ao fim. :)

      Beijinhos.

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  6. Vou lendo, diria recordando, pois John Le Carré "fez-me" companhia durante algum tempo, faz muito tempo.
    É curioso que eu tenha lido mais do que uma vez o mesmo livro, porém nunca tive vontade de o fazer com livros deste autor. E não foi por não gostar das leituras.
    Coisas...
    Beijokas emparelhadas a sorrisos

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    1. Eu sou suspeita, mas sabes que dou por mim a reler aqui, apesar de ter o livro e já o ter lido?
      Lá está, coisas!! :)

      Beijokas, reiteradas!

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  7. Ola Janita,

    Estive a ler todas as " leituras" que colocaste aqui, apeteceu- me!

    Aberaco grande

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    1. Olá, Ricardo.

      Não me admiro porque eu faço o mesmo! :)

      Leio, transcrevo e releio! Apetece-me. Sabe-me bem!! :)

      Beijinhos

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