O consultor ajeitou os ombros a mostrar o
seu desconforto. Sabia português suficientemente para lhe mostrar estranheza.
Uma terra chamada Galinha? E como se chamavam os naturais? Galinheiros?
Galinhenses?
Mas não era apenas o nome da terra que o incomodava. Havia algum
desconforto em tudo. Primeiro, o percurso de avião da capital até à Beira.
Chegados ao destino, o homem respirou fundo, surpreso pelo tratamento e pelos
serviços.
Depois, veio a aflição do estado dos automóveis de aluguer. Quis ser
ele a conduzir, o que me deixou, dessa vez, a mim, incomodado. Gosto de
conduzir, mais ainda fora das cidades. Ele percebeu e passou-me o volante.
Na
primeira parte do percurso, uma vez mais, ele foi cedendo, relaxado. Era melhor
do que pensava. Não precisei de lhe adivinhar o pensamento. Ele mesmo exclamou:
-- Estou impressionado, é bem melhor do que
eu pensava!
Viajávamos para Galinha, uma pequena localidade a noroeste da minha
terra natal, a Beira. Para mim, era uma reincidência. Os meus trabalhos
obrigavam-me a visitar aquela região, no centro do país. Mas para o
estrangeiro, tratava-se de uma estreia absoluta. Ele conhecia outras Áfricas.
Não esta. A nossa.
Desde que chegara, o consultor ia abandonando a tentação de generalizar.
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Imagens recolhidas na Net e agrupadas por mim. |
Nos primeiros dias ele falava em África como se de uma entidade única e fácil
se tratasse. Eu conheço África, repetia com insistência. «Qual África?», perguntei-lhe. Franziu o sobrolho, suspeitando da
intenção da pergunta. Passou-se o tempo e o consultor foi ficando desarmado.
Este era um lugar que ele, afinal, desconhecia. Mais do que a geografia e a
paisagem, eram as pessoas que o deixavam surpreendido. Recebiam-no bem,
escutavam com simpatia, tinham tempo, gentileza e paciência.
Aconteceu com ele
o que sucede ao açúcar no chá: o consultor foi-se dissolvendo.
Perdeu medos,
barreiras, preconceitos. Começava nele a verdadeira e única viagem: a que se
faz por dentro das pessoas.
Ao desembarcar na Beira, o enamoramento agravou-se. Máquina fotográfica
em punho, o homem aventurava-se por bairros e recantos.
A
meu ver, ele começava a arriscar-se e não tardaria que a paixão se convertesse
em susto. Um anjo o protegia e, à noite, no hall
do hotel, ele relatava-me os lugares percorridos. Alguns não muito aconselhados
para um estrangeiro exibindo uma máquina fotográfica. Quando o alertei, ele
encolheu os ombros sacudindo a máquina como se de uma caixa de tesouros se
tratasse e disse:
-- Quando eu chegar ao meu país eles vão
ficar admirados!
Nessa caixa mágica o visitante guardaria depois imagens do Parque da
Gorongosa. Coroa de louros, para ele. Mesmo não tendo visto muitos bichos, o que
vimos bastou-lhe. Em pleno tando do Urema espraiou a vista como se ocupasse o
centro do Planeta. Aquele era uma espécie de umbigo do mundo e, pela primeira
vez, o meu companheiro de viagem, cientista de renome, escorregou numa
metáfora:
-- É pena, não consigo fotografar tudo.
O mais importante nunca se pode fotografar, poderia eu ter dito. O que
fica para sempre, o que nos revolve a alma é o que não pode ser capturado pela
moldura. E lá veio a metáfora:
«Este
silêncio tão vasto, como o posso fotografar?»
Ele fotografava e corria na minha direcção a mostrar a imagem no visor.
Parecia uma criança apressada a exibir as conchinhas que recolhia na margem da
praia.
Agora, quase a chegarmos a Galinha, o cientista aperta a máquina de
fotografias contra o peito. Passado um tempo, ele se confessa. Queria levar
para o seu país essa imagem de glória que os europeus coleccionam quando cruzam aventuras. Mas eu que entendesse e descontasse o que ele iria dizer a seguir. É
que ele, já na Europa, diria aos amigos que esteve numa localidade chamada
«Búfalo». Ou quem sabe «Elefante». Mas «Galinha», não. Tudo menos Galinha. Que
a ave doméstica lhe desprestigiaria o exótico relatório de viagens. E ali
mesmo, junto ao rio Sangussi, me fiz cúmplice do rebatizar de terras.
-- E se for galinha-do-mato?
-- Aceito, é bonito.
Galinha, estou certo, não se irá ofender. Somos todos de algum mato.
(Outubro de 2007)
Nota: Como alguns leitores deste Cantinho já conhecem de postagens anteriores, esta é mais uma crónica transcrita do livro de textos do escritor moçambicano - que adoro ler - Mia Couto.
Talvez, numa próxima publicação, transcreva a nota introdutória, onde o escritor explica a razão de ser da edição destes textos, crónicas e pequenos contos. E, daí, talvez não. Já que a última frase do escritor é esta: "Espero que, no final, este livro dispense esta e qualquer outra explicação"
Por mim, está mais que dispensado. Porém, se houver interesse, por parte de quem aqui vier, publicá-la-ei.
Obrigada a todos. :)
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