segunda-feira, 7 de novembro de 2016

SONHANDO SE ENSAIAM VOOS DE SOBREVIVÊNCIA.

Carta de Ronaldinho

    Uns aprendem a andar. Outros aprendem a cair. Conforme o chão de um é feito para o futuro e o do outro é rabiscado para sobrevivências. Filipão pisava ou era pisado pelo chão?  O mundo do velho Filipão já semelhava com o relvado de futebol: ali ele fintava o tempo, esticando para prolongamento a partida com a vida. Restam-me duas, sorria ele, ou perder ou ser vencido. E o dente avulso, já de tão solto, abanava com riso.
    Ali, no bar da Munhava, o velho não apenas insistia no riso. O que ele mais fazia era retorcer a volta ao destino. No meio do cervejeiral, Filipão vingava-se. A prova era o salto fantástico e o grito que, de quando em quando, se escutava na rua: « Gooloo!».
    O pulo é o desajeito humano de ensaiar um voo. A alegria de Filipão só podia ser medida em asas, tanto de céu eram seus brados. Sozinho, no salão do decrépito bar, o velho celebrava o golo da sua equipa. As pessoas passavam e, pelo vidro, espreitavam Filipão aos saltos festejando vitórias.
    As pessoas sabiam: não havia rádio, não havia televisor. O bar era pobre e, para além do balcão, não sobrava apetrecho. O que havia na parede era um desenho de um ecrã rabiscado a carvão. Filipão desenhava o televisor com detalhe de engenheiro. E ali estavam compostos com perfeição os botões, a antena, os fios. Pobre não festeja por causa da alegria. A alegria é que se instala, sem convite, e faz a festa ter causa.
    O reformado chegava manhã cedo, carregava no falso botão e sentava-se na habitual mesa ao fundo da sala. Pedia a habitual cerveja e sorvia o líquido como se bebesse pelos olhos lentos. Bebia todo ele, a alma era uma boca. Estalava a língua no único dente, ruidosamente. Depois rabiscava num velho e seboso papel uns desenhos: as tácticas do jogo. Filipão organizava, sentenciava as tácticas, arquitectava a força anímica. Que se estava em pleno Mundial e a distracção é a morte do guarda-redes. Depois, já deitadas as instruções, o velho vinha à porta da taberna e gritava para o exterior: «Já começou!»


  E adentrava-se para assistir a mais um jogo de futebol que só ele testemunhava na sua imaginação. Até que, um dia, vieram buscá-lo. Eram os filhos que viviam na cidade. O mais velho disse:
    --  Venha pai, não queremos que continue sozinho aqui na vila.
    --  Já todos se riem, pai. – Confirmava o mais novo.
     Filipão ajustou o aparelho auditivo como se não estivesse ouvindo bem. Não iria nem arrastado. Que ali estava seguindo o Campeonato Mundial. Ele, o Mister, o senhor sem anéis.
    --  Desde quando, pai? Desde quando é que esse Mundial se arrasta?
     Os outros fizeram sinal para que não se argumentasse com a realidade. Seria pior. Deixassem-no crer que nesse imaginário televisor desfilavam verdadeiros jogos, capazes de fabricar alegrias.
     Um dia, o filho mais novo trouxe uma carta. Era um papel sério, com carimbo e redigido em máquina.
     --  O que é isso?
     --  Isto é para o senhor, meu pai.
     --  Não sabe que eu não leio letras?
     O filho ajustou os óculos e leu em voz alta. Era uma convocatória da Federação Nacional de Futebol. Congratulando-o pelo contributo de sua vida e pelos galardões alcançados. Chamavam-no para ir para a capital. Para descansar junto da família.
     --  Essa carta é falsa!
     --  Como falsa?! Tem carimbo, tem assinatura, tem tudo.
     --  Veja esta outra carta!
     E o pai estendeu o envelope ao filho. Tinha selo do Brasil e estava endereçada a Filipão Timóteo, Bar da Munhava. Assim, sem emenda nem gatafunho. Em baixo, a assinatura bem desenhada: Ronaldinho Gaúcho.
     O moço foi saindo, sem fôlego para palavra, quando a voz do pai o fez parar:
     --  E já agora, meu filho, pode-me trazer, lá da cidade, um pau de giz para desenhar um televisor novinho?!


Crónica de:  Mia Couto in “Pensageiro Frequente”   

 (Outubro de 2002)


                                                                      
Nota: O Mia Couto que me perdoe, isto não faz parte da história, mas para o velho Filipão Timóteo que ainda deve andar lá pelo bar da  Munhava, delirando, às voltas com as estratégias e as tácticas futebolísticas,  ofereço este vídeo para que ele possa apreciar o golo do seu ídolo. No fundo, no fundo, é uma lembrança, também, para os meus amigos e amigas que gostam de futebol...:))

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18 comentários:

  1. Querida Janitamiga

    Alzira (segunda parte)
    Na sequência de pedidos diversos publica-se hoje a segunda parte da séria Alzira, que tem por título Alzira: vida e obras. Mais se informa que a série não deve ficar por aqui…
    Entretanto o mistério do feed continua sem solução, ainda que tudo esteja a ser feito para ultrapassar esta chatice. Desculpa, mas ela não é minha


    Henrique, o Leãozão

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    1. Caro Henrique amigo.

      Fica aqui provado e comprovado que a ninguém apraz ler textos com mais de dois ou três parágrafos, se for letra miudinha pior!
      Vim agora do teu blog, li, um pouco na horizontal, mas li, o teu relato lá da vida da Alzira. Porém, não comentei!!
      Não penses que foi por revanchismo ao facto de tu não te dares sequer ao trabalho de fazer uma leve referência a esta crónica do Mia, nada disso.
      É que já começa a ser saturante essa tua insistência para que se leia e comentem os teus textos.
      Ó Henrique, escreve lá o que te der na real gana, que jeito para a escrita tens tu com fartura, publica, e deixa que cada um faça o que bem entender.
      Se escreves para teu bel-prazer, porque motivo fazes tanta questão que te comentem?
      Há blogues, bons blogues, aqui neste nosso blogobairro, alguns até de escritores de renome e nem sequer têm a caixa de comentários aberta ao público!!

      Eu tenho três ou quatro na minha lista de leitura e nunca deixo de os ler. Ah, e como me saberia bem, por vezes, deixar lá uma palavrinha minha, uma opinião, um alvitre até. Mas se eles não querem, que se há-de fazer? Deixar de os ler? Jamais!! Quem perdia era eu!

      E agora vou fazer a minha sopa de feijão manteiga, mas não é para a Alzira, não, é para a Janita!

      Um abraço Henrique!

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  2. Janita, um abraço, estava com saudades!

    ;)

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    1. :))) E eu com saudades estava, querido Ricardo!!

      Beijinhos!!

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    2. Também gosto da forma como Mia Couto brinca com as palavras!

      Outro abraço

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    3. Saber brincar com as palavras é uma Arte. Sem recorrer à vulgaridade, fazem-se trocadilhos, inventam-se palavras e criam-se textos de uma subtileza tão graciosa e verosímil, que parecem bocados de vida verdadeira.
      Não é apenas o Mia Couto que o sabe fazer, conheço alguém, aqui nesta coisa das internetes que, quando está para aí virado, o faz com um talento excepcional.

      Um abraço grande.

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  3. Mia Couto, sempre.
    Ca ganda pancada no HAF!

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    1. Nem sempre nem nunca, meu querido Amigo!! :)

      Se eu fosse a si substituía o "no" por "do"...Experiente e, depois de ler, verá a grande diferença!!

      Beijinhos, boa semana! :-)

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  4. Gosto tanto do Mia Couto. Em prosa ou em poesia, emociona-me sempre.
    E Ronaldinho Gaúcho foi um grande jogador. Agora já deve estar no fim da carreira. Se é que ainda joga, não tenho ouvido falar nele.
    Um abraço e boa semana

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    1. Amiga Elvira, este texto foi escrito por Mia Couto corria o ano de 2002. Pouco meses depois de ter terminado o Mundial de Futebol, creio eu.
      Por essa altura o Ronaldinho era o craque do momento. Penso que já se retirou, até porque já passaram 14 anos.
      Não faria muito sentido, em relação à história, se eu colocasse aqui um vídeo do CR7, por exemplo. Tinha mesmo de ser este! :)

      Um abraço e obrigada.

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  5. Bastou ler meia dúzia de palavras para perceber quem era o autor.
    Ninguém escreve assim.
    Só o Mia Couto.
    Beijinhos

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    1. Penso precisamente como o Pedro.:) A escrita de Mia Couto tem a sua assinatura em cada palavra...

      Beijinhos e obrigada, Pedro!

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  6. Mia Couto, não 5 nem 10 nem 20 estrelas. Muitas mais.

    Há aqui uma maldade tua, Janita. Ao falares em Ronaldinho, assustaste-me. Só depois percebi que era do verdadeiro craque que falavas.
    Ronaldinho Gaúcho, o menino que jogava com um sorriso nos lábios.
    Beijinhos

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    1. Mas, antes de eu falar, falou o escritor, António. :)

      Viste como o 'velho' Filipão sabia que o televisor era desenhado a carvão?

      Por vezes pensamos que os outros são 'trouxas' avaliando-os pelo seu comportamento estranho, mas não! Eles são é sábios fazedores de sonhos felizes.

      Um beijinho, António. Obrigada!:)

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  7. A escrita de Mia Couto seduz-me, adoro lê-lo.
    Este texto assim o atesta.

    Beijinhos Janita

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    1. Já somos duas (ou muitos) a gostar da escrita de Mia. Caso não gostasse, não o publicaria aqui tantas vezes.
      É um prazer enorme, o que sinto, quando transcrevo, palavra a palavra as suas histórias, dos livros, para o blog.

      Beijinhos e obrigada, Manu.

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  8. Querida Janita, acredita que hoje, em cada blogue que passei fiquei emocionada, há gente "por aqui" que escreve tão bem que as palavras não chegam para comentar, só as emoções
    Este brilhante texto de Mia Couto é outro para somar à lista das emoções de hoje.
    O final então, bateu mesmo no meu peito.

    Um beijinho grato por me fazeres feliz.

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    1. Querida Fê.
      Nem sempre são os grandes feitos nem a alegria esfusiante, nem as coisas divertidas que nos deixam felizes. São aqueles pequenos nadas que são tudo na vida de quem com pouco se contenta. É disso que as crónicas e contos de Mia Couto e tantos outros escritores - bem como alguns escrevinhadores da blogo - falam e nos comovem. A ti, a mim, e a muitas outras pessoas, que sabem ler com os olhos da alma!

      Um beijinho, querida Fê.

      ( neste dia tão triste )

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