CRÓNICA DE NATAL
Todos os anos, por esta altura, quando me pedem que escreva alguma coisa
sobre o Natal, reajo de mau modo. «Outra vez, uma história de Natal! Que
chatice!» — digo. As pessoas ficam muito chocadas quando eu falo assim. Acham
que abuso dos direitos que me são conferidos. Os meus direitos são falar bem,
assim como para outros não falar mal.
Uma vez, em Paris, um chauffeur de táxi, desses que se fazem castiços e dizem palavrões para corresponder à fama que têm, aborreceu-me tanto que lhe respondi com palavrões. Ditos em francês, a mim não me impressionavam, mas ele levou muito a mal e ficou amuado. Como se eu pisasse um terreno que não era o meu e cometesse um abuso. Ele era malcriado mas eu - eu era injusta. Cada situação tem a sua justiça própria, e isto é duma complexidade que o código civil não alcança.
Uma vez, em Paris, um chauffeur de táxi, desses que se fazem castiços e dizem palavrões para corresponder à fama que têm, aborreceu-me tanto que lhe respondi com palavrões. Ditos em francês, a mim não me impressionavam, mas ele levou muito a mal e ficou amuado. Como se eu pisasse um terreno que não era o meu e cometesse um abuso. Ele era malcriado mas eu - eu era injusta. Cada situação tem a sua justiça própria, e isto é duma complexidade que o código civil não alcança.
Mas dizia eu: «Outra vez o Natal, e toda essa boa vontade de encomenda!»
Ponho-me a percorrer as imagens que são de praxe, anjos trombeteiros, pastores
com capotes de burel e meninos pobres do tempo da Revolução Industrial inglesa.
Pobres e explorados, mas, entretanto, não excluídos do trato social através dos
seus conflitos próprios, como se pode observar nos livros de Dickens.
Actualmente as crianças estão mais isoladas dum processo de libertação adequada
à sua normalidade. Não há qualquer lógica entre o pensamento que elas sugerem e
a acção que lhes é imposta. Mas isto são considerações de Natal? Confessem que
preferem uma história, uma coisa leve, talvez um pouco insensata e graciosa. Pois
bem, falemos de pastores.
Um
amigo meu passou uns dias na serra da Estrela para se curar duma depressão, uma
dessas doenças que são produzidas pela sociedade burocrática onde todos se
destroem em boa paz. Cuidou ele que a solidão e a vida rude o haviam de
transformar. Mas o sofrimento, que não é disciplina nem necessidade, torna-se
em crítica mesquinha. Ele andava pelos montes, com ar de censura e escândalo,
perguntando às pessoas como podiam viver sem ir ao teatro e sem comer costelas
panadas. Alumiando-se com azeite e deitando-se
ao sol-pôr para não o gastar. Sobressaltava-o muito aquela imobilidade da serra
com os rebanhos que pareciam pedras e os pastores com o cão de pêlo assanhado.
Sentava-se ao lado deles e travava conversa.
— Olhe lá: você nunca sai daqui? — perguntava. E o pastor respondia:
— Eu, não senhor.
— E então, não se aborrece?
— Eu, não senhor — tornava o homem.
— Mas não se aborrece mesmo, sempre sozinho, a ver só ovelhas, aqui no cimo da serra? — insistia o meu amigo.
Então o pastor, apertado naquele inquérito, fez um esforço para compreender a desordem que provocava no espírito do homem da cidade, e disse, apontando, com um ligeiro movimento do queixo, as ovelhas:
— Ah! Elas às vezes bolem...
Queria desculpar-se, se o conseguiu ou não, não sei. O meu amigo não andou muito tempo por lá. Deu um jeito a um tornozelo e tiveram que o levar de padiola até à localidade, onde arranjou melhor transporte para o hospital. Disse daquilo cobras e lagartos. Também é preciso ver que não era homem para grandes descobertas. Até acha que as descobertas foram um erro histórico. Mas que tem o Natal a ver com isto? – direis. Descubram.
— Olhe lá: você nunca sai daqui? — perguntava. E o pastor respondia:
— Eu, não senhor.
— E então, não se aborrece?
— Eu, não senhor — tornava o homem.
— Mas não se aborrece mesmo, sempre sozinho, a ver só ovelhas, aqui no cimo da serra? — insistia o meu amigo.
Então o pastor, apertado naquele inquérito, fez um esforço para compreender a desordem que provocava no espírito do homem da cidade, e disse, apontando, com um ligeiro movimento do queixo, as ovelhas:
— Ah! Elas às vezes bolem...
Queria desculpar-se, se o conseguiu ou não, não sei. O meu amigo não andou muito tempo por lá. Deu um jeito a um tornozelo e tiveram que o levar de padiola até à localidade, onde arranjou melhor transporte para o hospital. Disse daquilo cobras e lagartos. Também é preciso ver que não era homem para grandes descobertas. Até acha que as descobertas foram um erro histórico. Mas que tem o Natal a ver com isto? – direis. Descubram.
Agustina Bessa-Luís, in “Crónica da Manhã”- Dez 1978 -
Gostei da crônica e ovelhas
ResponderEliminarQue enfeitam também o espaço,
Ela tem lição por traço
E elas belezas parelhas.
Se são brancas ou vermelhas
Pouco importa e sem percalço
Representam sem embaraço
Agnus Dei - mil centelhas
A iluminar o Natal
Do Brasil, de Portugal
Ou quiça do mundo inteiro.
Viva o Natal e o Ano Novo
Viva às ovelhas e ao povo
Cheio de amor verdadeiro.
Grande abraço. Laerte.
O Natal é uma chatice e a culpa é nossa , que assim o quisemos.
ResponderEliminarAcredita que é primeira vez que leio uma crónica de Agustina?
ResponderEliminar...mas eu, ao contrário dela, não perderia nunca a oportunidade de falar da ovelha que se apaixonou pelo seu pastor... aliás, não há presépio cá em casa em que falte o rebanho...
Uma crónica deveras interessante que desconhecia.
ResponderEliminarJá eu se estivesse na serra no meio das ovelhas e do pastor , iria adorar, pelo menos lá talvez sentisse que o Natal é mais genuíno.
Beijinhos Janita
Beijinhos
Janita, Gostei muito!
ResponderEliminarMuitas vezes sinto-me como o pastor....
Eu tranquila e os outros a teimar que bom, bom é ter um jactinho....
Beijinhos
Tudo pelo melhor
ResponderEliminarmesmo no Natal
Bj
A minha gratidão a todos os Amigos que me acompanharam, nesta croniqueta de Agustina Bessa-Luís.
ResponderEliminarAntes da festividades natalícias, ainda aqui virei para vos desejar Bom Natal.
Um beijinho e abraços para todos.