Asilo
Sou velho e como tal não
preciso de dormir muito. Acordo ainda de noite.
Ouço ao longe os primeiros
acordes da alvorada no assobio dos melros que fizeram da cidade o seu bosque.
“Aquela triste e leda
madrugada,
cheia toda de mágoa e de piedade,
enquanto houver no mundo saudade
quero que seja sempre celebrada.”
enquanto houver no mundo saudade
quero que seja sempre celebrada.”
Faço um esforço para me recordar dos outros versos. No silêncio da minha memória, quando termino de declamar, já é dia.
Regresso ao presente com o
ruído da porta do quarto a abrir e com um sonoro bom dia que me faz estremecer.
Porque grita?
A sua primeira tarefa
consiste em abrir as janelas, de par em par, para renovar o ar do aposento.
Traz a seguir uma esponja e começa a higiene do meu corpo frágil e dorido. Compõe
a roupa da cama.
Não fala, só o
indispensável. Porque haveria de desperdiçar o seu discurso com alguém que
nunca se sabe quando esta lúcido?
Rezo para que tudo termine
rapidamente para voltar a ficar sozinho.
Rezo, que ironia! Deixei
de rezar em criança e agora volto a fazê-lo!
Quem me visita ao longo do
dia, ou melhor, quem espreita pela porta entreaberta, vê sempre o mesmo cenário
(peça de teatro inacabada à espera que o pano
caia):
Um quarto espartano, de paredes brancas salpicadas
de humidade em vários lugares e janelas pintadas de verde, com a tinta estalada
a propagar-se em todas as direcções como teias de aranha. Pousam os olhos no
leito e no corpo envelhecido, retesado como uma árvore ressequida que morre aos
poucos; um monte de ossos que parece querer perfurar a pele (que se assemelha a
um mapa-múndi de rugas entrecruzadas).
Desviam os olhos - não
vale a pena - eu também desvio os meus.
Procuro nas gavetas
da memória e encontro: Uma velha foto de mulher. Apesar dos anos ainda
vislumbro o cintilar do sol, o jogo das sombras na sua pele e o vento
despenteando os seus cabelos.
Visito todos os pormenores
da fotografia ao compasso de fragmentos de uma melodia romântica:
“Sei de cor cada traço do teu rosto, do teu olhar
Cada sombra da tua voz e cada silêncio,
Cada gesto que tu faças
Meu amor sei-te de cor”
Um leve rumor faz-me olhar
para a janela. Lá está a pomba que costumava pousar na janela do quarto ao lado
do meu e que comia, sem medo, as migalhas de pão que a velhota deixava no
peitoril. Agora vens até à minha, pareces perguntar porque razão aquela janela
nunca mais se abriu.
Não te posso dar de comer,
amiga, mas posso contar-te uma história. Tens tempo para ouvir um alienado como
eu? Ora escuta:
Eu era jovem, talvez um
pouco inocente…um dia conheci o amor, uma paixão que…
Atenta neste pedacinho de
poema que nos diz que amar:
“É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.”
Espera, não te vás embora, ainda agora comecei, por favor!
Voaste…
Sinto um ardor mas as
lágrimas já não me surpreendem como antigamente.
Quem tiver coragem de
olhar para dentro dos meus olhos só verá um abismo, um requiem de emoções que
ninguém poderá entender, uma cegueira para este mundo, uma noite escura.
“Noite, irmã da Razão e irmã da Morte,
Quantas vezes têm eu interrogado
Teu verbo, teu oráculo sagrado,
Confidente e intérprete da Sorte”
O pano tarda em cair...
Quantas vezes têm eu interrogado
Teu verbo, teu oráculo sagrado,
Confidente e intérprete da Sorte”
O pano tarda em cair...
Autor: Ricardo Rodrigo
Este é o mais belo e comovente texto que já tive oportunidade de ler na blogosfera. O seu Autor, de quem tenho o privilégio de ser amiga, aniversaria hoje. Quero presenteá-lo com algo que eu jamais conseguiria escrever. O retalho de uma realidade que todos sabemos existir e vamos tentando não pensar.
PARABÉNS, QUERIDO RICARDO, QUE A TUA VIDA SEJA O SOMAR DE BONS MOMENTOS QUE, COMO SEMPRE ME DIZES, CONSTITUEM A TAL FELICIDADE.
Um abraço Grande, grande, e muitos beijinhos.
:)
Parabéns ao Ricardo. Pelo aniversário e pelo belíssimo texto. Parabéns para si Janita. Por ser capaz de sentir essa bela amizade.
ResponderEliminarUm abraço e bom fim de semana
Obrigada, amiga Elvira, em meu nome e do Ricardo.
EliminarUm abraço
Bom dia
ResponderEliminarhá realmente muita sabedoria neste texto. PARABENS. e obrigado a quem o escreveu e a quem o publicou.
B.F.S.
JAFR
Bem-vindo, Joaquim Rosa.
EliminarHá muita sabedoria e uma imensa sensibilidade, sim.
Muito obrigada, em meu nome e do meu amigo.
Bom fim-de-semana
Parabéns ,maravilhoso sábado ,beijinhos muitas felicidades
ResponderEliminarObrigada, Emanuel, igualmente para si.
EliminarQue texto comovente e que revela sentimentos e sentires tão reais.
ResponderEliminarParabéns para o teu amigo e para ti que partilhaste este maravilhoso momento.
Beijinhos Janita
Este texto já foi escrito em dois mil e treze e não me tenho cansado de o ler. Há medida que o tempo passa mais o sinto e me comovo.
EliminarEm nome de ambos, o meu muito obrigada, Manu.
Beijinhos.
Duplos parabéns ao se Amigo Ricardo.
ResponderEliminarAgradeço, em seu e meu nome, José.
EliminarMuito obrigada.
Janita,
ResponderEliminarO teu amigo tem muita sorte em ter uma amiga co o tu!
Abraço grande
Somos ambos uns sortudos, Ricardo! :)
EliminarUm beijinho
Parabéns ao teu amigo!
ResponderEliminarA amizade é um dos sentimentos mais fortes que existe, mas infelizmente há quem não lhes dê valor.
Beijinho Janita e bom fim de semana.
Uma boa e verdadeira Amizade é de valorizar e preservar, embora por vezes surjam desaguisados, Adélia. Acho isso tão natural...Eu, e o Ricardo, já temos tido as nossas questiúnculas. :) Mas tanto ele, como eu, sabemos separar as águas, e voltar a uni-las...
EliminarBeijinhos, Adélia.
Bom, lá terei de ir conhecer esse teu amigo...
ResponderEliminarO Ricardo já não escreve em blogues, Rogério.
EliminarObrigada na mesma. :)
Uma realidade muito dura. Um excelente texto. É como dizes, uma realidade em que tento não pensar.
ResponderEliminarUma triste realidade, tão bem descrita, que nos rasga a alma, Luísa.
EliminarAlgo que não quero pensar, mas penso, e temo tanto...
Um beijo e obrigada.
Parabéns ao teu amigo, Janita
ResponderEliminarO seu texto tocou-me, não devia ser assim
um beijinho
Gábi
O Ricardo vai gostar de ver o quanto foi apreciado o seu dom para escrever, com tanto sentimento, estes retalhos da Vida, Gábi. Obrigada.
EliminarÉ um texto que não deixa ninguém indiferente.
Um beijinho.
Um beijinho
Não sei como este comovente texto me passou despercebido.
ResponderEliminarConvivo muito perto com a velhice e querida Janita, não é fácil ser velho.
Um beijinho comovido
O Toque do coração
É natural que não te tenhas apercebido deste texto, Amiga Fernanda. Com tantos afazeres, o tempo para 'vadiar' pela blogo fica reduzido, mas ainda bem que o leste. Sabia que irias apreciar, precisamente, por estares perto desta realidade.
EliminarUm beijinho e boa semana, amiga.
Quanta tristeza e amargura ressalta deste texto, quanto desejo de alcançar outras vidas, de ser diferente.
ResponderEliminarNão sei se é ficção ou se é realidade. Mas sei (acredito saber) que é obra de um sonhador, dos que sonham com os olhos bem abertos para a realidade.
Parabéns Ricardo Rodrigo pelo teu aniversário. Decerto que voltaremos ao mesmo assunto no próximo ano!
Grande abraço pah!
E para a amiga Janita: uma remessa de beijos *_ó
Comoveste-me, Kok, meu Amigo. Também tu és uma alma sensível e sonhadora, pois só o sendo poderias ter escrito este comentário.
EliminarO Ricardo é um sonhador sim, mas atento às duras realidades da vida. Se ele não vier aqui não leves a mal, é muito tímido e não gosta de dar nas vistas. Este seu texto coloquei-o aqui sem lhe dizer nada, foi uma surpresa que lhe quis fazer e o deixou "sem jeito", como me disse.
Obrigada amigo. Também, para ti, vai uma remessa de abraços e beijinhos...Ò.Ó
:)