sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Até Os Aracnídeos Sonham!...

Tela de  Nicoletta Ceccoli


A aranha, aquela aranha, era única: não parava de fazer teias! Fazia-as de todos os tamanhos e formas. Havia, contudo, um senão: ela fazia-as, mas não lhes dava utilidade. O bicho repaginava o mundo. Contudo, sempre inacabava as suas obras. Ao fio e ao cabo, ela já amealhava uma porção de teias que só ganhavam senso no rebrilho das manhãs.
E dia e noite: dos seus palpos primavam obras, com belezas de cacimbo gotejando, rendas e rendilhados. Tudo sem nem finalidade. Todo bom aracnídeo sabe que a teia cumpre as fatias funções: lençol de núpcias, armadilha de caçador. Todos sabem, menos a nossa aranhinha, em suas distraiçoeiras funções.
Para a mãe-aranha aquilo não passava de mau senso. Para quê tanto labor se depois não se dava a devida aplicação? Mas a jovem aranhiça não fazia ouvidos. E alfaiatava, alfinetava, cegava os nós. Tecia e retecia o fio, entrelaçava e reentrelaçava mais e mais teia. Sem nunca fazer morada em nenhuma. Recusava a utilitária vocação da sua espécie.
– Não faço teias por instinto.
– Então, fazes porquê?
– Faço por arte.
Benzia-se a mãe, rezava o pai. Mas nem com preces. A filha saiu pelo mundo em ofício de infinita teceloa. E em cantos e recantos deixava a sua marca, o engenho da sua seda. Os pais, após concertação,  mandaram-na chamar. A mãe:
– Minha filha, quando é que assentas as patas na parede?
E o pai:
– Já eu me vejo em palpos de mim…
Em choro múltiplo, a mãe limpou as lágrimas dos muitos olhos enquanto disse:
– Estamos recebendo queixas do aranhal.
– O que é que dizem, mãe?
– Dizem que isso só pode ser doença apanhada de outras criaturas.
Até que se decidiram: a jovem aranha tinha que ser reconduzida aos seus mandos genéticos. Aquele devaneio seria causado por falta de namorado. A moça seria até virgem, não tendo nunca digerido um machito. E organizaram um amoroso encontro.
– Vai ver que custa menos que engolir mosca – disse a mãe.
E aconteceu. Contudo, ao invés de devorar o singelo namorador, a aranha namorou e ficou enamorada. Os dois deram-se os apêndices e dançaram ao som de uma brisa que fazia vibrar a teia. Ou seria a teia que fabricava a brisa?
A aranhiça levou o namorado a visitar sua coleção de teias, ele que escolhesse uma, ficaria prova do seu amor.
A família desiludida consultou o Deus dos bichos, para reclamar da fabricação daquele espécime. Uma aranha assim, com mania de gente? Na sua alta teia, o Deus dos bichos quis saber o que poderia fazer. Pediram que ela transitasse para humana. E assim sucedeu: num golpe divino, a aranha foi convertida em pessoa. Quando ela, já transfigurada, se apresentou no mundo dos humanos logo lhe exigiram a imediata identificação. Quem era, o que fazia?
– Faço arte.
– Arte?
E os humanos entreolharam-se, intrigados. Desconheciam o que fosse arte. Em que consistia? Até que um, mais-velho, se lembrou. Que houvera um tempo, em tempos de que já se perdera memória, em que alguns se ocupavam de tais improdutivos afazeres. Felizmente, isso tinha acabado, e os poucos que teimavam em criar esses pouco rentáveis produtos – chamados de obras de arte – tinham sido geneticamente transmutados em bichos. Não se lembrava bem em que bichos. Aranhas, ao que parece.

“A Infinita Fiandeira” 

conto de Mia Couto    in “Fio de Missangas”






20 comentários:

  1. Gostei querida amiga ,desejo-lhe um fim de semana muito feliz beijinhos

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    1. É um conto 'quase' infantil, Emanuel, mas muito ternurento, na minha opinião, claro.
      Ainda bem que gostou.
      Beijinho e bom Domingo

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  2. Não conhecia o conto!

    Bom fim de semana Janita.

    Beijinho enorme

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    1. E gostaste, Adélia? :)

      Beijinhos, bom fim de semana

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  3. Boa noite, Janita!
    Desconhecia por completo este conto, lool. Digamos que até achei piada ao conto, lool

    Beijo. bom fim de semana.

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    1. Tem piada pela singeleza com que é escrito e pela metáfora que envolve as 'personagens', mas, no fundo, se for lido com atenção, conseguimos ver lá a mensagem, Cidália. :)

      Abraço, bom Domingo

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  4. Simplesmente maravilhoso.
    Nunca li nada do Mia Couto, mas a minha curiosidade pela leitura do "Fio de Missangas" é enorme.

    Muitíssimo obrigada, JANITA 😘

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    1. Para além dos livros que tenho de Mia Couto, há muito da sua obra pela Internet, Teresa. Quando te dispuseres a isso, vais encontrar muita coisa e vais adorar.:)
      Adoro em Mia Couto a sua predisposição para inventar palavras. Neste conto, há algumas que coloquei a itálico e são inventadas por ele.
      Tenho uma verdadeira paixão pela sua escrita! :)

      Um grande abraço, Amiga!
      Quem te agradece, reconhecida, sou eu.

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  5. Isso não seria arte da Joanita?? :)

    Gosto de Mia Couto.
    Beijinho

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    1. Não Mena!! Esta Arte de bem tecer não faz parte dos talentos da Vasconcelos. A senhora não se prende com minudências de requinte e bom gosto. Com ela é tudo monstruosamente gigante...;)
      Fico feliz por termos esse gosto em comum - para além d'outros -, como é bom de ver.

      Beijinhos, bom Domingo.

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  6. Que conto maravilhoso. :)) Adoro os escritos de Mia Couto.

    Bjos
    Sábado feliz.

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    1. Que bom ter gostado, Larissa.
      Aí está uma 'adoração' que temos ambas. :)

      Beijinhos, bom Domingo.

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  7. Realmente, será de imaginar que a aranha saberá dos seus dotes de verdadeira artista da arte de tecer ?... Já repararam na minuciosidade da construção de uma teia ?... Incrivelmente bela, verdadeira arte ! ... E será que estes animais e tantos outros se aperceberão disso ?... Será o simples instinto ?... Isto dá que pensar !
    Animais irracionais, dizem ! Será que há irracionalidade ?...

    A Infinita Fiandeira,... título muito bem escolhido !!! :)

    Abração e bom fim de semana :)

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    1. Da inteligência dos animais, sejam quais forem, é coisa que nunca teremos a certeza, apesar dos estudos feitos sobre essa matéria, Rui. Mas que todos são dotados de forte instinto e meios de sobrevivência, sem dúvida que sim. A teia das aranhas é a sua arma de caça. Tecem-na e ficam pacientemente à espera que a presa lá caia.
      Agora, sobre a perfeição com que a tecem, não te sei dizer nada desse maravilhoso mistério da natureza. :)

      Beijinhos, tecidos com muita amizade.:))

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  8. Pensava que namorava com uma mulher mas afinal analisando bem ela é mais é uma grande ... ARANHA

    Olhando à TEIA em que me enrolou, como pode não ser uma ARANHA?
    .
    * Doce paisagem do teu sorriso, qual azul do Mar *
    .
    Deixando votos de um fim de semana muito feliz
    Boa tarde

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    1. Pois saiba, Gil, que há muitas mulheres que sabem bem melhor tecer com arte, teias de sedução, do que as próprias aranhas. Se a sua namorada é dessas, isso é lá convosco...:) Lamentavelmente, foi arte que nunca aprendi nem fui dotada. Cada um é para o que nasce!

      Votos de bom Domingo.

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  9. Encantam-me sempre o trabalho das aranhas que tecem incansáveis a sua teia. Não sabem o que é arte, mas nós que estamos de fora, sabemos que o enredo e perfeição são autênticas obras artísticas que eu um dia gostava de fotografar.
    Adorei o conto!

    Beijinhos Janita

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    1. No meu jardim já tenho visto teias de aranha, entre as folhas das plantas, muito bem urdidas. Quando se cobrem de orvalho ficam bem nítidas e muito bonitas. Quando andares nas tuas andanças fotográficas, fica atenta a isso. :))

      Beijinhos, bom Domingo e obrigada, Manu.

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  10. Voltei para te dar um
    beijo e desejar um ótimo
    final de domingo.

    silvioafonso


    .

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    1. Fez muito bem em voltar, Sílvio Afonso.
      Agradeço e retribuo o carinho.
      Boa semana.

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