Havia na casa da tia Hermengarda um quadro deslumbrante. Ficava ao cimo das
escadas, à entrada do corredor que dava para os quartos de dormir. Mesmo assim,
rodeado de sombras, irradiava uma luz que só podia vir de dentro da dama do
retrato. Não sei se da blusa muito branca, se dos olhos, às vezes verdes, às
vezes cinzentos. Não sei se do sorriso, às vezes alegre, às vezes triste. Eu
parava muitas vezes em frente do retrato. Era talvez o único que não me
assustava. Creio até que dele se desprendia uma luz benfazeja, que de certo
modo me protegia.
Grã-Duquesa Marie Nikolaevna da Rússia, em 1914 ( * ) |
Mas havia um mistério. Ninguém me dizia quem era a senhora do retrato. Arminda, a criada velha, benzia-se quando passava diante do quadro. Às vezes fazia figas e estranhos sinais de esconjuração. A prima Luísa passava sem olhar.
- Essa pergunta não se faz - disse-me um dia em que lhe perguntei quem era aquela senhora.
Percebi que não gostava dela e que era um assunto proibido. Até a minha mãe
me ralhou e me pediu para nunca mais fazer tal pergunta. Mas eu não resistia.
Por vezes descaía-me e dava
comigo a perguntar quem era a senhora dos olhos verdes, quase cinzentos, que me
sorria de dentro do retrato.
Com a minha tia-avó, eu tinha uma relação especial. Ela lia-me histórias e
poemas inquietantes. Creio que troçava das convenções, talvez das próprias
pessoas. Por vezes era difícil saber quando estava a sério ou a brincar. Apesar
de já ser muito velha, tinha um sentido agudo do ridículo. Foi a primeira pessoa verdadeiramente subversiva que conheci. Era óbvio
que tinha um fraco por
mim. Pelo menos era o único membro da família a quem ela tratava como um igual.
Dormia no andar de baixo e nunca subia as escadas. Talvez por isso eu nunca lhe
tinha perguntado quem era a senhora do retrato.
Um dia, farto já de tanto mistério e ralhete e, sobretudo, das gaifonas da
Arminda e do ar empertigado da prima Luísa, não me contive e perguntei-lhe. A
minha tia sorriu. Depois levantou-se, pegou no molho de chaves que trazia preso
à cintura, abriu uma gaveta da escrevaninha e tirou um álbum muito antigo.
Voltou a sentar-se e lentamente começou a mostrar-me as fotografias. Eram quase
todas da senhora do retrato e do meu primo Bernardo, que há muito tinha partido
para a África do Sul.
Apareciam juntos a cavalo e de bicicleta. E também de fato de banho, na
praia da Costa Nova. Havia alguns em que o meu primo estava de smoking e
ela de vestido de noite. Via-se também a tia Hermengarda, mais nova, por vezes
os meus pais, gente que eu não conhecia. Até que chegámos à senhora do retrato
já de branco vestido.
- Natacha - murmurou a minha tia,
com uma névoa nos olhos.
E depois de um silêncio:
- Ela chama-se Natália, mas eu gosto
mais de Natacha, sempre a tratei assim.
É preciso dizer que a tia Hermengarda tinha vivido em Moscovo no início da
carreira diplomática do marido e era uma apaixonada dos autores russos, Pushkine, Dostoievski, principalmente Tolstoi, que visitou algumas vezes em
Isnaia Poliana. Identificava-se com as personagens de Guerra e
Paz. Creio que amava secretamente o príncipe André e gostava de ter
sido Natacha. Falava muito da alma russa.
Era uma propensão do seu espírito.
- Tu também tens alma russa - dizia-me. E era como se me tivesse armado cavaleiro.
- Tu também tens alma russa - dizia-me. E era como se me tivesse armado cavaleiro.
Manuel
Alegre, in “O Homem do País Azul,”
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989.
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A sensação de que nos olham e nos seguem é real, senti isso no museu Grão Vasco em Viseu, não era mais que uma miúda, voltando a sentir a mesma sensação há uns anitos atrás, e muitos depois.
ResponderEliminarBoa noite Janita
Provavelmente, Noname, essa impressão, de se ser seguida pelo olhar de alguém que figura numa tela, deve-se mais à sugestão causada pelo local em que as pessoas se encontram.
EliminarSensação semelhante senti-a eu na Casa Museu da Amália Rodrigues. Ao cimo da escadas, damos de caras com uma tela enorme da Fadista. Parece estar viva. Isso causou em mim um grande impacto. Foi como se a senhora estivesse, ali, a observar quem entra e sai. Qual guardiã dos seus domínios. Enquanto por lá andei, senti a sua presença.
Um beijinho, NN, obrigada! :)
Encantado querida amiga ,desejo-lhe uma semana muito abençoada ,beijinhos muitas felicidades
ResponderEliminarTambém me encanto com a sua companhia, Emanuel.
EliminarObrigada, boa semana e um beijinho.
Boa noite, Janita!
ResponderEliminarAdorei o texto. Mas a imagem, parece mesmo real. Incrível, olhei-a nos olhos por instantes e fui até à minha juventude!! Amei!
Beijinhos
Boa noite!
Boa tarde, Cidália.
EliminarGosto muito do poeta/escritor M.A., mas em relação à pessoa...não sei, não consigo dizer o mesmo. Mas isso não vem ao caso.
Para um retrato retratar, com fidelidade, tem de parecer real. :)
Beijinhos e obrigada.
A tia com esse nome, era normal que a casa fosse assombrada lol
ResponderEliminarE a sra od retrato era bem gira, serias tu Janita??? ahahahahah
Beijinho, boa terça :)
Sabes Mena? Nome antigos, com peso, tinham de ser assim: sonantes!! :)
EliminarSe soubesses o meu - o verdadeiro - até fugias daqui a sete pés. ehehehe
Quem é feio na juventude? Ninguém! Por acaso a grã-duquesa perece-se comigo, será minha ascendente? Vais ver...é!!
Beijinhos, moça alegre e bonita. ;)
Acho que os arquitetos inventaram as paredes
ResponderEliminaros construtores as levantaram
os pedreiros as rebocaram
com a consistência de poderem suportar um retrato
se a imagem é bela,
se é odiada
amada
ou austera
não importa
O valor está na parede
em que se suspende
Ou melhor
na memória da casa
Gostei desse seu ponto de vista, Rogério.
EliminarMas se um quadro resiste à passagem do tempo
não se deve apenas à robustez da parede, mas
à qualidade das tintas que o pintor usou
ou do retratista que retratou.
Agora, a memória de uma casa
já depende de quem lá morou.
Um abraço. :)
Sabe do que me lembrei (mente tortuosa)?
ResponderEliminarDas sugestões do George Carlin para embaraçar as pessoas.
Uma delas era entrar numa loja de fotografia e pedir para comprar os retratos das outras pessoas :))))
Beijinhos
Qual mente tortuosa, Pedro?! Grande sentido de humor o seu, isso sim.:))
EliminarSabe que soltei uma gargalhada?
E não me senti nada embaraçada. Senti-me até muito divertida! :))
Só a mim lembraria, falar na reclamação da autoria de uma tela, ou fotografia, do ano de mil novecentos e catorze. :)) O que eu quis dizer, no entanto, era que se esta relíquia está na Net alguém cá a colocou, não necessariamente quem fotografou ou retratou. :)
A propósito de Carlin, e as sete palavras proibidas, hãn???
Eheheheh
Beijinhos.
Um génio, Janita, era um génio!
EliminarBeijinhos
bom dia
ResponderEliminareste conto fez-me lembrar a casa de meus pais onde estavam penduradas fotografias dos meus avós paternos e maternos em molduras especiais dos quais infelizmente não cheguei a conhecer .
JAFR
Boa tarde, Joaquim Rosa.
EliminarLembro-me também de ver esses retratos - como se chamavam as fotografias - espalhadas pelas casas de familiares meus.
Como fui o mais novo membro de uma família numerosa, de tios, tias, primos e primas - mas só dois irmãos - só conheci o meu avô materno.
Olhava para aquelas pessoas, penduradas em molduras ovais e antigas, e nada me diziam.
Um abraço, obrigada.
Bonita e interessante poetagem. Adorei a imagem. Realista. :))
ResponderEliminarHoje: - Magia sem sumo
.
Bjos
Votos de boa Terça-Feira
Obrigada, Larissa.
EliminarUm beijinho.
( só logo terei tempo de a visitar)
Fiquei foi com vontade de saber também quem era afinal a Natália/Natacha. Terei de procurar esse livro. :)
ResponderEliminarPois, Luísa, mas "O Homem do País Azul" é um livro de contos e se este não revela a identidade dessa tal Natália/Natacha, amiga da tia Hermengarda, também os outros o não farão. :)
EliminarCá por mim, fui buscar uma das quatro filhas do último Czar da Rússia, Nicolau II. A família Romanov foi dizimada, como sabes, mas ficou sempre a ideia de que uma das mais novas, Anastásia, sobreviveu por não se encontrar junto com o resto da família.
Há muitos anos vi o filme "Anastásia" com a Ingrid Bergman e o Yul Brynner, fiquei sempre com a ideia de ser verdade, mas a Wikipédia diz que foi também assassinada.
Talvez o Manuel Alegre, quisesse dar mais autenticidade à história, atribuindo à senhora do quadro o none de Natacha.
Vá-se lá saber? Só perguntando-lhe...caso ele ainda se lembre. :)
Beijinhos
Li ontem à noite e pensei que tinha comentado. Devo ter saído sem dar o enter.
ResponderEliminarÀs vezes nos museus também tenho essa sensação. De resto não tenho fotos antigas, nunca as houve na minha casa, talvez porque na família o dinheiro não chegava para esses luxos. Acredita que nunca vi uma foto das minhas avós? E mesmo do meu avô só tenho uma tirada por um vizinho quando eu fui de anjo com seis meses. Claro ao colo dele.
Gosto da escrita do Manuel Alegre, embora dele só tenha um livro.
Abraço
Na minha terra havia um fotógrafo que me tirou muitas fotografias algumas já aqui publicadas e, antes dele, haveria de aparecer por lá aqueles que andavam de terra em terra, só sei que conheci muitos meus familiares, já falecidos, através de fotos que estavam pendurados na parede de casa das minhas tias. A minha Mãe , não ligava muito a isso. As minhas Avós nem por foto as conheci. A mãe de minha Mãe faleceu quando ela tinha 13 anos apenas.
EliminarTambém gosto da escrita do Alegre, assim conseguisse gostar do homem. Mas como li há tempos aí num óptimo, estupendo blog, que muito me tem ensinado: «É mais forte do que eu». :))
Abraço.
Há fotos, especialmente em quadros grandes e colocadas em posições elevadas, que são verdadeiramente intimidatórias , mesmo que não houvesse essa intenção, claro !
ResponderEliminarTalvez porque haja qualquer coisa em certos olhares, talvez por nos fazer lembrar alguém de quem não gostávamos, é um facto !
Do manuel, Alegre, tal como tu, de longe melhor a escrita que a pessoa e também não sei porquê !
Abraço, Jani :)
Lá na Casa Museu Amália senti isso, mas não foi por não gostar dela, pelo contrário. Quanto aos olhares dos meus antepassados, havia uma foto da minha tia Balbina, que não conheci, com um vestido até aos pés, apoiada numa coluna que me parecia uma rainha, mas era o vestuário daquela época.
EliminarAinda bem que me aparece alguém que comunga das minhas ideias, caso contrário ainda me arriscava a ser li(n)chada, Rui!! :))
Abraço, Rui!!
Gosto de retratos antigos!
ResponderEliminarAbraço grande
Então, gostaste deste, Ricardo! :)
EliminarAbraço grande.
Ter alma russa é o quê, gostar de vodka?
ResponderEliminarTer a alma gelada? Gostar do Putin? Da estepe siberiana?
EliminarAcho que acertaste na mouche, sim!
Bom ver-te por cá, Rafeirito! :)
Beijocas.
O Manuel Alegre que recria retratos
ResponderEliminarcom a idade vai perdendo a memória
primária
O tal PDI, O Puma??
EliminarVai ver é isso mesmo.
Abraço.
Fascinante, de facto. Mas o Patife fica naturalmente fascinado a olhar para mulheres no geral. ;)
ResponderEliminarPois eu acho que faz o Patife muito bem, o que é bom é para se ver, ora! :)
EliminarAbraço.
( lá por seres patife, também mereces... )
Não sou do tempo dos retratos pintados em telas quando os pintores tinha "a responsabilidade" de reproduzir as emoções que os rostos transmitiam e os olhares divulgavam. Depois "chegaram" os retratos que, na maioria das vezes, eram bem piores do que as pinturas pois mais pareciam fotos de gente com vontade de matar quem lhes aparecesse pela frente; tudo muito sisudo e de olhares fixos. Muito mais tarde chegou a "moda" dos:
ResponderEliminar-sorria que está a ser fotografada.
E dos instantâneos que contrariam a posse previa do:
-agora não se mexa!!!
Nunca "tive medo" de uma foto. Havia uma de um tetra avô, com umas exuberantes suíças que me intrigava porém nunca ma assustaram. Até lhe achava piada. Se calhar já então em resultado da minha parvoíce ?, é bem possível.
Pena é que não saiba onde essa foto está caso contrário mostrá-la-ia aqui.
Beijokas pintadas com sorrisos
...e de avanço em avanço, chegámos à moda das selfies!! :))
EliminarVê lá se encontras, lá para a tua arrecadação, essa foto do teu tetra avô, de fartas suíças, que eu gostava de ver essas pilosidades. :)
Beijokas retratadas com mil sorrisos.
Ainda não li. Irei procurar.
ResponderEliminarAndo a Lispectar.
Bj.
Se o Agostinho anda numa de Clarice Lispector, deixe-se andar, porque anda em boa companhia.
EliminarBeijinhos.