domingo, 9 de fevereiro de 2020

TODOS SONHAMOS VOAR, MAS TEMEMOS AS ALTURAS.





Havia um bando de patos selvagens que voavam nas alturas. Lá em cima era o vento, o frio, os horizontes sem fim, as madrugadas e os poentes coloridos. Tão lindo! Mas era uma beleza que doía. O cansaço das asas, o não ter casa fixa, o estar sempre voando, as espingardas dos caçadores…


Foi assim que um pato selvagem, olhando lá das alturas para essa terra de anões aqui em baixo, viu um bando de patos domésticos. Estavam tranquilamente deitados à sombra de uma árvore, poupados do esforço de voar. E havia comida em abundância.

O pato selvagem invejou os patos domésticos e resolveu juntar-se a eles. Disse adeus aos seus companheiros, desceu e passou a viver a vida que pedira a Deus.


E assim viveu por muitos anos até que de novo chegou o tempo da migração dos patos. Eles apareciam, lá no fundo do azul do céu, formações em “V”, grasnando, um grupo após o outro. Aquela visão dos patos em voo, a memória das alturas, aqueles grasnados de outros tempos começaram a mexer com algum lugar esquecido dentro do pato domesticado.


Uma saudade, uma nostalgia de belezas, o fascínio do perigo e o vazio que se abria… Até que não foi mais possível aguentar. Resolveu voltar a ser pato selvagem. Abriu as asas e bateu-se para voar, como outrora, mas não voou. Caiu, e esborrachou-se no chão.

Estava gordo demais. E assim passou o resto de sua vida: em segurança, protegido pelas cercas e triste por não poder voar.

* *

Acho que Fernando Pessoa se sentiu um pouco como o pato. Pelo menos é o que sinto ao ler este poema:




Ah, quanta vez, na hora suave
Em que não me esqueço,
Vejo passar o voo de ave
E me entristeço!

Por que é ligeiro, leve, certo
No ar de amavio?
Por que vai sob o céu aberto
Sem um desvio?

Por que ter asas simboliza
A liberdade
Que a vida nega e a alma precisa?


Sei que me invade
Um horror de me ter
Que cobre como uma cheia
Meu coração,
E entorna sobre Minh’alma alheia
Um desejo, não de ser ave,
Mas de poder ter
Não sei quê do voo suave
dentro do meu ser.



Somos assim. Sonhamos o voo, mas tememos as alturas. Para voar é preciso amar o vazio. Porque o voo só acontece se houver o vazio. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Os homens querem voar, mas temem o vazio. Não podem viver sem certezas. Por isso trocam o voo por gaiolas.

As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.




Rubem Alves
 
Excerto da Introdução do seu livro “Religião e Repressão”

[Texto e imagem da Net] 


Fotografia Minha

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27 comentários:

  1. Olá, janita.

    Escolher é em simultâneo rejeitar ... seja o que for aquilo que possa estar em jogo. E conseguir o melhor de dois mundos é coisa só ao alcance de muito poucos, se é que de alguns...

    E está muito bem construido o texto, apesar do triste fim do gordo e anafado pato...

    Beijinhos amigos

    Vitor

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    1. Olá, Amigo Vitor.

      Sem dúvida! Fazer escolhas é dos escolhos mais difíceis de superar que nos podem aparecer no caminho da vida...

      Gosto das tuas sempre oportunas palavras. Quase sempre, se não sempre, vêm de encontro ao que penso e sinto.
      Bem-hajas pelas tuas visitas.

      Um beijinho com amizade e muito afecto.

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  2. A verdade é mesmo essa: quem se acomoda perde a capacidade de voar, quer na realidade, quer em sentido figurado.
    Daqui voam beijos e sorrisos!

    §-a tua foto "diz" que também voaste no momento em que a fizeste (pareceu-me).

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    1. Quem se acomoda ou escolhe o lado mais seguro e confortável da vida, arrisca perder voos mais elevados, embora mais instáveis. Essa é que é essa!!

      Daqui, sem grandes voos, aceito os teus beijos e sorrisos. :)

      § - Esta foto foi um achado. Captei este pôr-do-sol do meu terraço, onde o poente está cheio de obstáculos, árvores, cabos eléctricos, etc. Não é recente, mas ainda faz as minhas delícias, que uso só em momentos especiais. :))

      Beijinhos, Zé!

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  3. Não temo as alturas, Janita, temo a cegueira. Não a dos que não querem ver e vão fazendo de conta que tudo vai bem, mas a dos que querendo ver não o podem.

    Porque hoje estou a ceder a impulsos e cansada e dorida de não poder voar, deixo-lhe aqui um vôo de um dos grandes do Modernismo Português que por mero acaso é meu avô :)

    LENDA DO PATO BRAVO

    *

    Voa no céu

    - tão alto! -

    um pato bravo,

    e onda do seu grito

    rola no sangue vivo do poente:



    "Suam-me versos estas noites velhas

    que me descem dos olhos,

    lá do fundo,

    onde é, talvez, o coração que vê.



    Digo ao que vem à frente dessas horas:

    - Aqui, viver ou morrer,

    mas devagar!

    E grito o meu orgulho a sete luas mortas...



    Depois, gran-duque e senhor

    e rei de um reino de pedir às portas,

    choro

    e esmolo o pão da vida

    aos que de vida são fartos.



    E peço amor a algum beijo

    gasto, cansado, caído,

    que ia a destino e me bateu na boca.



    - Há por aí farrapo pra vender?



    Sou o dos olhos de mel...

    Sou o menino dos luares doridos

    que esteve nove meses de joelhos

    a rezar o seu medo de nascer".



    Voa no céu,

    tão alto,

    um pato bravo,

    agora, no silêncio

    do deserto e das almas que se fecham.



    O vento servo dos deuses,

    certeiro o gume da faca,

    mete-lhe o vôo entre fatias de ar:

    um "hors d`doeuvre" de apetite

    para os papões demiurgos

    dos caminhos para Ser.



    - Pronto! passou!

    Prossiga esse banquete!



    O guisado de sóis vem para a mesa.

    Continua o roer da Eternidade.

    *



    António de Sousa

    In "Sete Luas", 2ª Edição, Editorial Inquérito

    Lisboa - Maio de 1954


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    1. A Maria João está permanentemente a comover-me com a sua generosidade. Afinal, esse dom para a escrita poética, foi uma fabulosa e bela herança.

      O poema é lindo e emocionante.
      Já o guardei, no baú, onde religiosamente guardo os poemas que me têm sido oferecidos e onde já se encontram alguns da autoria da Maria João.

      Muito, muito obrigada!

      Um beijinho grande. :)

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  4. Boa tarde
    Sonho muitas vezes que estou a voar , só nunca me recordo onde vou poisar .

    JAFR

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    1. O importante não é o poiso, mas a beleza do voo, Joaquim. :)

      Boa noite e óptima semana.

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  5. Nem sempre o mais fácil traz melhores resultados.
    Eu preferia voar e sentir o vento a liberdade de ir para onde quero, o vento seria meu companheiro nas horas de calmaria ou tempestade.
    Uma paragem num porto qualquer, seria descanso de pouca dura.

    Beijinhos Janita

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    1. Ah, pois não! Quem escolhe ser livre e voar por e para onde as vistas sejam as mais belas, tem de apanhar com a agrura dos ventos e o perigo dos caçadores furtivos. :)

      Beijinhos, Manu e nunca te acomodes à tua zona de conforto. Quando começares a ganhar uns quilitos, levanta voo para outras paragens. :)

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    2. É o que vou fazer em breve :P

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    3. Abençoada! Viaja, fotografa, e vive todas as experiências que puderes, Manu!

      Depois mostra tudo à gente.

      Beijinhos

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  6. Para voar é preciso arriscar.
    :)

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    1. Nem mais, Luísa! Mais palavras para quê?
      O medo de arriscar é o maior inibidor da liberdade.

      Beijinhos e boa semana. :)

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  7. Que bonito texto e imagens. Tal como o poema escolhido! :)
    -
    Quando vens o teu silêncio é notado
    Boa noite, e uma excelente semana. Beijos!

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    1. Tudo o que leu e não leu, Cidália, é da autoria do grande Rubem Alves. Poeta, pedagogo, escritor e muito mais.
      Infelizmente, já desaparecido.

      Beijos.

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  8. Um dia, preparando arroz de pato
    Olhei para o defunto, já desfiado
    Murmurei
    Se algum dia tivesses voado
    Nunca me cairias no prato

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    1. Ora aí está uma verdade de La Palisse, Rogério. (ou será La Palice?)
      Por outro lado, tinha esse pato o destino traçado: Morrer!
      Para satisfazer a gula de qualquer degustador.
      Se acaso não morresse da faca, indo parar ao prato de um apreciador, certamente teria morrido do tiro de um qualquer caçador… :)
      O seu fim seria sempre o mesmo.

      Daí o ditado: “Quem tiver que morrer de um tiro, não morre de uma facada”!

      :) Abraço e boa semana.


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  9. Desculpa a brincadeira embora não tenha a veia do Rogério.
    Sorte teve o pato de não terminar num prato! :)

    Abraço

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    1. Qual desculpa, Leo, sente-te à vontade, como em tua casa. :)
      Vá lá, tu foste bem mais magnânima do que o Rogério.
      Poupaste a vida a 'este pato'. Ehehehe

      Abraço e boa semana.





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  10. Os homens e as mulheres. "Mea culpa"!

    Bem me arrependo de decisões tomadas por medo de...arriscar.

    Bem "pata" fui!

    Um abraço do Algarve,

    Sandra Martins

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    1. Acontece a todos, Sandra!
      Que ao menos se aprenda com as más escolhas a sermos mais corajosos e destemidos.

      Um Abraço!

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  11. Ícaro, com a ajuda do pai - Dédalo -, tentou voar a partir do labirinto, com asas de cera e foi o que se viu. Mas isso foi há séculos e é da mitologia. Hoje, até há a asa delta, por exemplo, pelo que já podemos voar. E em sonhos, quantas vezes voamos?
    bji.

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    1. Realmente, nos dias de hoje, só não voa quem não quer.
      E nem precisamos ser patos bravos, nem tontos como o Ícaro.
      Ultimamente os meus sonhos são muito perturbadores e esquisitos, mas voar que é bom, não voo.

      Beijinhos, boa semana.

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  12. Gostei do texto e do poema. Também sonho voar. Mas há muito não o faço acordada. Tenho um sonho recorrente, que talvez ainda um dia procure um psiquiatra para ver se ele o descodifica. Nesse sonho estou sobre uma falésia com um enorme e calmo mar azulado na frente. De súbito abro os braços e lanço-me da falésia, agitando os braços e voando sobre o mar. E então dos braços vão-se transformando em asas e o corpo vai-se alterando até que não sou mais uma pessoa mas uma ave que pensa como humana. Tenho este sonho há anos e às vezes duas ou três vezes num mês.
    Abraço e boa semana

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    1. Elvira, fiquei bastante curiosa com esse seu sonho recorrente.
      Como tenho um livro, muito, muito velhinho, da autoria de um tal
      Dr. Günter Harnisch, fui consultar sobre esse tipo de sonhos.

      Diz assim:

      Freud explicava sonhos em que o sonhador voa como representações de desejos sexuais.
      A sensação de voar e pairar no ar é incluída entre as experiências de embriaguez, às quais pertence também a embriaguez do amor. A significação paralela do voar onírico é muito velha. Encontra-se em numerosas tradições mitológicas.
      Na nossa época técnica, voar tornou-se uma realidade quotidiana. Voar ou pairar livremente pode significar que a pessoa que sonha se coloca com os seus pensamentos acima da realidade. Nesse caso é positivo o facto de surgirem assim ideias criativas. A pessoa que sonha, porém, deveria prestar atenção para não perder o chão sob seus pés.


      Interessante, não acha, amiga?

      Espero que tenha ajudado em alguma coisa, se bem que esta explicação não sirva totalmente o sonho da Elvira, pois só fala em voos e não na transformação da pessoa em pássaro.

      Também eu em criança sonhava muitas vezes que voava, mas, em adulta creio que nunca tive esses sonhos, a dormir. :)

      Um abraço e durma sossegada.

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  13. Curioso. E outro dado que não si o significado é que parto sempre de uma falésia para o mar, e nunca voo sobre terra. Sonho com isto desde que me lembro, não amiúde mas algumas vezes por ano.
    Abraço e obrigado

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