=========================================
Pão Nosso de Cada Dia.
Viviam juntas mãe e filha. Uma encantava pela modéstia; outra irritava pela toleima – apesar de ser bonita. Certa noite, a mãe, não podendo adormecer, preocupada a pensar no destino de sua filha, ajoelhou-se e pediu a Deus que modificasse o feitio de Sília, fazendo-a bondosa e discreta.
Na manhã seguinte, perguntou-lhe:
— Que sonho era aquele, filha, quando esta noite cantavas?
— Ai, sonhava, minha mãe, que um senhor descia de uma carruagem de cobre e me oferecia um anel com uma jóia tão preciosa e brilhante que não haverá no céu estrela de maior brilho.
— Foi um sonho de vaidade! — responde a mãe.
E nisto batem à porta. Sília corre e vai abrir: entra um rico lavrador. Oferece-lhe terras de lavoura, montados, hortas, pomares, uma infinita riqueza!
— Mesmo que viesses em carro de cobre e me desses uma jóia mais fulgurante e mais bela do que uma estrela do céu, não casaria contigo.
O lavrador, desiludido, foi-se embora, e, nessa noite, Sília voltou a sonhar.
— Com quem estás tu a sonhar? — perguntou a mãe, acordando-a.
— Ai, sonhava, minha mãe, que um senhor descia de uma carruagem de prata e punha nos meus cabelos valiosíssimo diadema de oiro!
— Que pecado, minha filha! Vai rezar para abrandar esse teu grande egoísmo!
Na tarde do dia seguinte, um moço esbelto, sadio, apareceu a oferecer-lhe a sua vida, a sua fortuna, o seu amor.
— Nem que viesses em carro de prata e pusesses nos meus cabelos formosíssimo diadema de oiro eu casaria contigo!
E o moço partiu tristemente.
— O teu orgulho há-de perder-te! — dizia a mãe para a filha.
Outra noite, Sília voltou aos seus sonhos de perdição e, ao ser interrogada pela mãe, contentíssima, exclamou:
— Ai, sonhava que um fidalgo descia de um carro de oiro e, pedindo-me em casamento, oferecia-me um vestido de rubis e diamantes.
— Não te emendas, minha filha, mas hás-de pagar bem caro essa fome de grandezas.
Momentos depois, três carros paravam à porta onde residiam ambas. Um de bronze, outro de platina e outro de cristal. O primeiro puxado a doze cavalos; o segundo, a vinte cavalos; e o terceiro, a quarenta! Dos carros de bronze e platina desceram pajens vestidos de seda verde e azul. Do carro de cristal saiu um lindo rapaz coberto de pedraria. Entrou em casa de Sília e, de joelhos e humilde, beijou-lhe as mãos num sorriso.
— Finalmente, sou feliz! O meu sonho transformou-se na mais bela realidade.
E, orgulhosa, foi vestir o vestido de noivado. Partiram para a Igreja. Os cavalos galopavam num frémito de alegria.
— Vou dar a minha mulher os meus presentes! — dizia ele ao regressar, e entrando na sala suave do seu palácio de turquesa:
— Tudo isto é para ti.
Sília sorriu e a sorrir foi-lhe dizendo:
— Sabes que já tenho fome?
— Ponham a mesa e sirvam-nos o banquete! — gritou ele aos seus vassalos.
Saladas de topázio, assados de ametistas e doce de pérolas; todos comiam e repetiam. Só ela não podia comer. A medo pediu um bocadinho de pão.
— É a única coisa que não te posso dar! — respondeu ele.
E desatou às gargalhadas, gargalhadas metálicas, cantantes, porque o seu coração também era de metal.
Ela chorou!
— Chorar para quê? Não desejavas tudo isto? Não tens agora o que sempre ambicionaste?
Rodeada de riquezas, saía do palácio, à noite, e andava de porta em porta disfarçada e muito triste, a pedir cheia de fome um bocadinho de pão.
D'Os Contos de António Botto
Um desconhecido, Raul Leal (de barba),
António Botto (ao lado), Augusto Ferreira Gomes (de pé) e Fernando Pessoa.
Daqui
Fez-me lembrar um conto dos Irmãos Grimm, "O pescador e a sua mulher", que já contei muitas vezes, fazendo algumas adaptações, consoante a audiência. :))
ResponderEliminarGostei dessa tua táctica de adaptar as adaptações, do que contas, consoante a audiência. Bem pensado! :)
EliminarPara completar o que disse acima:
ResponderEliminar“Be care careful what you wish for; you just might get it”- “Muito cuidado com o que deseja, pois pode realizar-se” – uma expressão que tem origem nas fábulos de Aesop. É uma expressão muito usada em inglês, em qualquer tipo de conversa. Faz sentido. Muitas pessoas pensam que se os seus sonhos se realizarem serão muito mais felizes. Não será necessáriamente verdade. Estão tão focadas nos seus sonhos no futuro que se esquecem de viver o presente e saborear os bons momentos que eles lhes proporciona.
Dizem que quanto mais queremos, mais insatisfeitos nos sentiremos. E eu acredito que assim seja.
Não sei se estarei totalmente de acordo com esse pensamento, Catarina.
EliminarOs desejos variam muito conforme a pessoa que os sente. Os ambiciosos desejarão riquezas, os menos bafejados pela sorte que dita o mundo dos afectos, por sua vez, desejarão amor e carinho e por aí adiante. Só desejar, porém, não chega, é preciso trabalhar para isso.
No tocante à tua última frase, também não concordo em absoluto. Creio bem que não será quanto mais se quer e sim, quanto mais se tem. Os eternamente insatisfeitos, nunca serão felizes, essa é que é essa!
Um abraço, Catarina.
Ora aí está uma palavra que não conhecia
ResponderEliminarToleima
Vivendo e aprendendo
Gostei da história
Ora, caro Miguel...toleima, vem de tola, logo...:-))
EliminarUm abraço e obrigada! :)
Pois tive de ir a definição para perceber
Eliminar😊
Obrigado por me fazer perceber
😊
EliminarBom dia
ResponderEliminarTodos os dias peço a Deus " O pão nosso de cada dia "
Hoje é um dia particularmente triste para mim , pois faz sete anos que partiu a minha companheira .
Feliz dia da Mãe.
JR
Lamento muito a triste lembrança deste dia, meu Amigo!
EliminarJá eu, tenho deste dia uma excelente lembrança. Foi neste dia, por sinal, mais frio e escuro do que o dia se apresenta hoje, que fui Avó pela primeira vez. Um dia inesquecível e cheio de boas memórias.
A vida é assim; equilibra sentimentos e distribui tristezas e alegrias, sem olhar a quem.
Muito Obrigada e um fraterno abraço, JR!
Ícaro também sonhou voar e sabe-se o resultado. Mas nesse caso foi uma boa tentativa, bem diferente da tonteria da rapariga da 'estória' do Botto, feita nova Cinderela.
ResponderEliminarbji e bom feriado.
O percalço sofrido pelo Ícaro ainda acontece na medida do voo ambicionado. Uns queimam as asas, outros tobam na penúria, na indigência que nem sempre é reclamada pelo estômago e sim pelas carências da alma.
EliminarJá viu como hoje me sinto inspirada?
Vai ver, se me dispusesse escrever algo belo, como um poema de amor ou assim, não dava uma prá caixa. Enfim, coisas de uma noite bem dormida, é o que é.
Que isto, a vida são dois dias, não vale a pena a gente arreliar-se muito...
Bom Feriado, Dia de Nossa Senhora da Conceição que já foi Dia da Mãe.
Conclusão:
ResponderEliminarQuem tudo quer tudo perde.
Eu quero que tenhas um óptimo feriado.
Beijinhos Janita
😘😘😘
Verdade, querida Manu!
EliminarE nada mais doloroso e que mais implore pelo perdão, do que o vazio no estômago. Muito triste esse cair na realidade do que é essencial à vida. Amor e comida na mesa, seja o que for, mas de barriga vazia não há sonho que perdure.
E eu, retribuo esse teu desejo, minha amiga.
Beijinhos e um forte abraço, Manu.
Olá,Janita
ResponderEliminarPor aqui de novo, ainda que só de passagem (?); gostei do texto escolhido.Que diz muito sobre a vida; e em que o pedacinho de pão da história significará coisas diferentes para cada um de nós, mas para todos aquilo que vemos como o essencial para dar sentido e sabor à vida: E sem o essencial, tudo o resto é acessório.Opinião minha.
Beijinhos amigos, fica bem
Vitor
Olá, Vitor, meu querido Amigo!
EliminarTão bom quando te vejo por aqui. É como rever uma pessoa de família, uma pessoa a quem se quer muito bem e acreditamos nos conhece em todas as nossas facetas boas e menos boas. Alguém, perto de quem nos sentimos protegidas e seguras.
Bem, vou ficar por aqui, senão vais achar que exagero.
Vitor, tu não tens o meu email? Escreve-me, gostava tanto de saber como e onde estás.
Quanto ao escreves não vou responder pois agora reparo que foi o que disse ali à Manu.
Obrigada por teres vindo.
Vem sempre que o desejares e puderes. Se possível escreve, como te pedi. Tantos anos passaram...
Um beijinho, muito, muito amigo.
A moral deste conto encontra-se em vários embora não o conhecesse.
ResponderEliminarHistórias de outros tempos, se fosse agora iria a uma joalharia e venderia umas pedras preciosas para poder ir ao restaurante! :)
Abraço
Tempos esses, Leo, em que o destino que se escolhia não era passível de ser alterado. :) Hoje, tudo se transforma em pão, assim haja o que possa ser usado como moeda de troca.
EliminarUm abraço e bom Feriado.
Começo pela fotografia: à mesa dum café e de chapéu na cabeça?
ResponderEliminarDecerto teriam os seus motivos porém acho estranha a postura.
O conto conta-nos o quanto a avidez, o desejo de riqueza, não é mais importante do que um pão (com chouriço, por exemplo), quando temos fome. Quando a fome ainda não aperta um colar de pérolas, um carro topo de gama ou um palácio em zona de luxo, também é saboroso.
Tudo é relativo; depende sempre do que, de facto, queremos.
Beijinhos enriquecidos com sorrisos ;)
Apre!! Uns pegam-lhe de uma maneira e, outros, por outra!
EliminarTambém tu, Zé?... deixa lá o homem ficar de chapéu na tola...cada um com sua toleima, ora! Eheheheh
Tens razão. Casa onde não há pão... :)
Beijos, sem luxos nem cabarés, como diz a cantiga.
tbm não conhecia "toleima" :)
ResponderEliminarAgora, esta coincidência de (não) saberes, fez-me lembrar o Herman José e deu-me vontade de dizer isto:
Eliminar"Ah, esta juventude inconciente que não pensa!" :)
Obrigada, Último!
Gostei muito do conto! Há vidas que me fazem lembrar este conto!
ResponderEliminar**
Amo a vida na sua forma de ser...
-
Beijo e um excelente feriado!
Ambição desmedida há muita na vida real, Cidália. Mas com estes contornos e desfecho, é que não, certamente. Eu, pelo menos, não conheço.
EliminarUm beijo e bom resto de semana.
Vaidade, Orgulho, Fome de Grandeza
ResponderEliminarnão conduzem, ou raramente conduzem, a este desfecho
São eles o pão nosso de cada dia.
Quanto ao conto...
hei-de contá-lo à minha Maria
Este desfecho na vida real e nos tempos que correm, seria irreal.
EliminarHá quem consiga tudo, por meio de artes e manhas, até comer rubis e evacuar diamantes.
Eu sugeria mais, Rogério, imprima-o e ofereça à sua talentosa neta Maria. Quem sabe ela reescreva este conto, adaptantando-o a estes tempos modernos e a outras situações? Seria uma maravilhosa prenda para a menina oferecer ao Avô, agora neste Natal.
Um abraço.
Que bom ver aqui o abrantino A. Botto! Autor tão esquecido e afastado de todos os holofotes.
ResponderEliminarGostei muito do conto. Não o conhecia.
Beijinho
É verdade, Ana.
EliminarSe há coisas inexplicáveis é o facto de António Botto ser tão pouco conhecido entre nós. Tampouco no Brasil o conhecem e, no entanto, foi lá que se exilou/refugiou, e morreu.
Um beijinho e o meu obrigada pela sua visita.
Aqui há uns anos, fui supervisora de uma italiana da universidade de Nápoles que fez uma dissertação sobre A. Botto. Achei surpreendente...
EliminarBeijinho
Quem tudo quer tudo perde, diz o povo sábio.
ResponderEliminarBeijinhos
O Povo tem sempre razão, Pedro.
EliminarPovo esse, que também comete sempre os mesmos erros.
Nunca aprende!
Beijinhos.
Olá, boa noite!
ResponderEliminarSabia escrever, o homem!...
Cumprimentos meus!
Olá, bom dia!
EliminarConstatar o óbvio também será poesia? :)
Receba os meus, em troca.
Obrigada pela sua visita, poeta.