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Conto de Miguel Torga
"A PAGA"
As falas doces com que com o Arlindo levava a água ao seu moinho não lhas ensinara o pai, não, que era um santo. Famílias boas, sãs, dão às vezes cada filho que até se fica maluco.
Sem maus exemplos em casa, nado e criado numa terra limpa como Vale de Mendiz e Deus nos livrasse de semelhante boldrego! Rapariga em que pusesse o sentido, pronto. Tanto fazia saltar como correr: tinha que ser dele.
E então não se contentava com qualquer! Só lhe apetecia o melhor. Mesmo no povo, desgraçou a Arminda, uma cachopa tão dada, tão bonita, que cortava o coração vê-la depois, desprezada de toda a gente e comidinha dos males que lhe pegou.
Em Guiães, foi a filha do Bernardino, pelos modos a coisinha mais jeitosa que lá havia. Em Abaças escolheu a Olímpia, uns dezanove anos que nem uma princesa.
Mas nenhuma como a Matilde, o ai-jesus de Litém. Descobriu-a na festa de S. Domingos e já não a largou. O Rodrigo o melhor amigo dele bem o avisou: - Olha que ali tudo o que não seja nó de altar… Não quis saber. Rapou do harmónio e abriu-o numa gargalhada. - Borga, rapaziada! Haja alegria! O poviléu, que não quer senão pândega, claro, a rodeá-lo embasbacado.
Ora, isto de mulheres é o que se sabe. A tola, só por ver um fadista daqueles a derreter-se por ela, já pensava que tinha ali o rei de Portugal!
A tia, a do Rito, no caminho, ainda lhe perguntou se não sabia que menino ele era. Sabia, e que ninguém se afligisse por via dela.
E logo no domingo seguinte, à tarde, toda desempenada a dar-lhe treta na fonte. Moveu-se o povo. Tivesse tento na bola! O mundo nunca parira rês de tão má qualidade. Ou já se não lembrava do que acontecera às outras? Nada. Não ouvia ninguém. O rapaz assentara, falava-lhe com todo o respeito, e, tão certo como dois e dois serem quatro, recebia-a. O manhosão, por sua vez, que também não havia dúvidas. Mal arranjasse a vida, casamento. O pior é que ninguém lhe via arranjar essa tal vida. Litém, pela boca do prior, chamou a rapariga à pedra. Pensasse no que andava a fazer. Desse uma cabeçada e depois se queixasse. Mas a Matilde andava viradinha do miolo. Jurava sobre as falas do Arlindo como sobre os Evangelhos. Assim tivesse tão certa a salvação como ele nunca tentara pôr-lhe um dedo e só lhe falava em bem.
Com semelhante conversa, Litém resolveu aguardar. Não há como dar tempo ao tempo e deixar cada um aprender à sua custa. E viu-se o resultado. Um dia à noite, a Matilde prega-se em casa da Lúcia, põe-se a chorar, a chorar, e acaba por contar tudo: o ladrão tinha-lho feito.
Tantas loas lhe cantara, tantas juras, tantas promessas, que caíra como uma papalva. Mas com quem o Arlindo se foi meter! Com os de Litém, gente capaz de limpar uma nódoa com as nódoas de Cristo!
Fiava-se talvez em que o pai da rapariga ter idade e os dois irmãos, o Cândido e o Albino, estarem no Rio de Janeiro.
O Justo, no desejo de compor aquilo, ainda o procurou, a saber que destino queria dar à filha. Meteu os pés pelas mãos, que não podia casar agora, que a vida estava muito má, e mais aldrabices.
Olha lá que o velho lhe dissesse nada! Calou-se muito calado, virou-lhe as costas e, nesse mesmo dia, carta para o Brasil. Entretanto, a nova fora-se espalhando pelas redondezas. E ao cabo de algum tempo o nome da Matilde simbolizava apenas a façanha mais atrevida e gloriosa do farçola de vale de Mendiz. - Não as deita em cesto roto! Isso é que ele pode ter a certeza! – garantiu o Brás, que sempre acreditara numa justiça imanente. – Tantas há-de fazer… - Já fez… - respondeu-lhe o Rodrigo, que embora amigo e companheiro do Arlindo, não engolia aquela de se ter enganado. – Com os de Litém ninguém brinca…
Em Março, quando Vale de Mendiz se cobriu de camélias e mimosas, o Alfredo à frente do macho carregado de sacas, deu a grande notícia: os filhos do Justo tinham chegado do Brasil. - Os dois? – perguntaram todos. – Os dois de uma vez?! - Olarila! - Então o Arlindo que se acautele. Mas nada parecia bulir naquele princípio de Primavera. A Matilde há muito que calara as lamúrias; o pai, a todos que lhe falavam no caso, respondia secamente que a filha dele não era melhor do que as demais; e os irmãos encheram a irmã de prendas, tratavam-na como uma rainha, e nem por sombras falavam no sucedido. - A mim até a alma se me apertava com tal sossego - dizia de vez em quando o Rodrigo. – os de Litém engolirem uma pastilha assim! - Que pastilha?! Eu quis a rapariga quis, quem tem lá com isso? Farroncas. No fundo, também ele, Arlindo, andava de coração como a noite. Bem sabia que não se vem de repente do Brasil sem uma razão qualquer, e que se quisessem resolver o caso a bem já o teriam procurado. Entrou Abril, passou Maio, principiou Junho, e o mesmo fado corrido...
Continua...
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