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Tela de Nicoletta Ceccoli
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A aranha, aquela aranha, era única: não parava
de fazer teias! Fazia-as de todos os tamanhos e formas. Havia, contudo, um
senão: ela fazia-as, mas não lhes dava utilidade. O bicho repaginava o mundo.
Contudo, sempre inacabava as suas obras. Ao fio e ao cabo, ela já amealhava uma
porção de teias que só ganhavam senso no rebrilho das manhãs.
E dia e noite: dos seus palpos primavam obras, com belezas de
cacimbo gotejando, rendas e rendilhados. Tudo sem nem finalidade. Todo bom
aracnídeo sabe que a teia cumpre as fatias funções: lençol de núpcias,
armadilha de caçador. Todos sabem, menos a nossa aranhinha, em suas distraiçoeiras funções.
Para a
mãe-aranha aquilo não passava de mau senso. Para quê tanto labor se depois não
se dava a devida aplicação? Mas a jovem aranhiça não fazia ouvidos. E
alfaiatava, alfinetava, cegava os nós. Tecia e retecia o fio, entrelaçava e
reentrelaçava mais e mais teia. Sem nunca fazer morada em nenhuma. Recusava a
utilitária vocação da sua espécie.
– Não faço teias por instinto.
– Então, fazes porquê?
– Faço por arte.
Benzia-se a mãe, rezava o pai. Mas nem com preces. A filha saiu
pelo mundo em ofício de infinita teceloa. E em cantos e recantos deixava a sua
marca, o engenho da sua seda. Os pais, após concertação, mandaram-na chamar. A mãe:
– Minha filha, quando é que assentas
as patas na parede?
E o pai:
– Já eu me vejo em palpos de mim…
Em choro múltiplo, a mãe limpou as lágrimas dos muitos olhos enquanto disse:
– Estamos recebendo queixas do aranhal.
– O que é que dizem, mãe?
– Dizem que isso só pode ser doença apanhada de outras criaturas.
Até que se decidiram: a jovem aranha tinha que ser reconduzida
aos seus mandos genéticos. Aquele devaneio seria causado por falta de namorado.
A moça seria até virgem, não tendo nunca digerido um machito. E organizaram um
amoroso encontro.
– Vai
ver que custa menos que engolir mosca – disse a mãe.
E
aconteceu. Contudo, ao invés de devorar o singelo namorador, a aranha namorou e
ficou enamorada. Os dois deram-se os apêndices e dançaram ao som de uma brisa
que fazia vibrar a teia. Ou seria a teia que fabricava a brisa?
A
aranhiça levou o namorado a visitar sua coleção de teias, ele que escolhesse
uma, ficaria prova do seu amor.
A
família desiludida consultou o Deus dos bichos, para reclamar da fabricação
daquele espécime. Uma aranha assim, com mania de gente? Na sua alta teia, o
Deus dos bichos quis saber o que poderia fazer. Pediram que ela transitasse
para humana. E assim sucedeu: num golpe divino, a aranha foi convertida em
pessoa. Quando ela, já transfigurada, se apresentou no mundo dos humanos logo
lhe exigiram a imediata identificação. Quem era, o que fazia?
– Faço arte.
– Arte?
E os
humanos entreolharam-se, intrigados. Desconheciam o que fosse arte. Em que
consistia? Até que um, mais-velho, se lembrou. Que houvera um tempo, em tempos
de que já se perdera memória, em que alguns se ocupavam de tais improdutivos
afazeres. Felizmente, isso tinha acabado, e os poucos que teimavam em criar
esses pouco rentáveis produtos – chamados de obras de arte – tinham sido
geneticamente transmutados em bichos. Não se lembrava bem em que bichos. Aranhas,
ao que parece.
“A Infinita Fiandeira”
conto de Mia Couto in “Fio
de Missangas”