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Isto de ter sempre o mesmo sonho
todas as noites torna-se aborrecido.
Era assim: saía de casa, ia até ao carro e dizia à família: «Vamos lá fazer essa viagem».
Era assim: saía de casa, ia até ao carro e dizia à família: «Vamos lá fazer essa viagem».
Primeiro entravam a mulher e as duas crianças,
depois os pais, ele instalava-se ao volante e pronto, não havia lugar para os
sogros! Era sempre a mesma coisa. Por mais que empurrassem, não conseguiam
metê-los lá dentro.
Acordava a suar, empurrando ainda
qualquer coisa que não estava lá.
A mulher aconselhou-lhe uns calmantes, para ver se o sonho se ia.
A mulher aconselhou-lhe uns calmantes, para ver se o sonho se ia.
Mas nada. Lá vinha sempre, todas as noites.
É verdade que empurrava menos,
talvez os calmantes, mas continuava naquele desespero de não conseguir enfiar
os sogros no carro alucinante.
Os sogros disseram-lhe que não se interessavam em ir, não faziam questão, já estavam velhos para viagens.
Os pais prontificaram-se a ceder os lugares deles.
Toda a família colaborava, mas o sonho continuava.
Os sogros disseram-lhe que não se interessavam em ir, não faziam questão, já estavam velhos para viagens.
Os pais prontificaram-se a ceder os lugares deles.
Toda a família colaborava, mas o sonho continuava.
Chegou a fazer experiências, a meter a família completa no velho Citroën arrastadeira. E conseguia, lá se metiam todos, mais ou menos apertados mas entravam. Mas no sonho não.
A coisa tornava-se desesperante.
- Porque é que não vais ao Mora? Ele é psicanalista, explica-te, tira-te isso
- insistia a mulher, já arreliada, e preocupada também, com aquelas viagens nocturnas
e frustradas em que ele se envolvia sem culpa.
O Mora era amigo de infância, nem
sequer permitia que ele pagasse, era extraordinário! Às vezes até ia lá jantar.
E respondeu à mulher:
- Tens razão, Xuxa, vou mesmo, que isto assim não pode ser. Tens sempre razão, menina.
Contou tudo. O Mora mandou-lhe contar mais, o passado continua sempre oculto, ao que disse. Deitado, contou-lhe o que ele precisava era de derivar, sabem, encontrar qualquer coisa além do carro e da viagem que não fazia em sonhos. Derivar. Substituir o carro.
Agradeceu e convidou o Mora para jantar no sábado.
O Mora não podia e deu-lhe uma palmada nas costas.
Chegou a casa, aliviado, e esclareceu a Xuxa:
Chegou a casa, aliviado, e esclareceu a Xuxa:
- Vou derivar, menina.
- Derivar?
- Sim, substituir o carro e tudo o mais, excepto tu, as crianças, os velhos e a casa.
(...)
À noite não sonhou. No dia seguinte a Xuxa disse-lhe que até parecia dez anos antes.
Tudo voltou à normalidade, os sogros deixaram de se preocupar com a viagem, as
crianças entusiasmaram-se com os estoiros da moto. E o carro na garagem.
E, de repente, tornou a sonhar. O sonho.
Assim: saiu de casa, foi até ao carro e disse à família: «Vamos lá fazer essa viagem».
E, de repente, tornou a sonhar. O sonho.
Assim: saiu de casa, foi até ao carro e disse à família: «Vamos lá fazer essa viagem».
A mulher e as crianças entraram,
depois os pais, e ele instalou-se ao volante. E não havia lugar para
os sogros! Começaram a empurrar para os meter lá dentro, e nada. Então virou-se
para a garagem.
Estava um pouco diferente mas a
moto continuava lá dentro. Deixou tudo, montou a moto, pôs o chapéu de palha e
avançou pela estrada. Uma estrada larga, muito aberta a tudo. Pareceu-lhe já a
ter visto alguma vez. Olhou para trás e lá ao longe, à porta da
casa, continuavam a empurrar-lhe os sogros. Acenou uma despedida, acelerou e
continuou, olhando árvores e nuvens.
Ainda não voltou.
Mário-Henrique Leiria, in “Contos
do Gin-Tonic”
Nota: Para ficar a saber mais sobre Mário-Henrique Leiria, e o que está ser feito para divulgar a obra deste fantástico escritor/poeta surrealista português, clique AQUI e AQUI.
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"Contos do Gin-Tonic" Um livro de que já ouvi falar mas que nunca li.
ResponderEliminarAbraço
São contos diferentes do estilo habitual que a maioria das pessoas lêem. Surrealistas, irónicos, com uma boa dose de humor e alguma melancolia à mistura.
EliminarCreio que a Elvira iria apreciar.
Um abraço.
Um livro que fica na minha lista dos a ler.
ResponderEliminarA amostra é óptima.
Beijinhos
O Pedro vai gostar deste e do Novos Contos do Gin Tonic.
EliminarBem humorados, loucos e muito a descobrir nas entrelinhas.
Beijinhos
Bom dia. Conto/ sonho que até a mim me deixou deprimida, mas estou curiosa pelo final. Há sonhos terríveis :))
ResponderEliminarHoje:- Silenciada nas águas do rio.
.
Bjos
Votos de uma feliz Quinta-Feira.
Deprimida? Não achou que em cada frase havia um mundo de fina ironia, Larissa?
EliminarFinal?...Estes contos são contados de uma penachada, ou seja, num só capítulo! :)
Beijinhos, bom resto de semana.
"Os Contos do Gin Tónico, a mais conhecida faceta de Mário Henrique Leiria: o conto (ou até microconto) surrealista."
ResponderEliminarNão li, mas é um tipo de leitura que não me desagrada : os mini ou até microcontos !
Curiosamente, esta leitura trouxe-me à memória algumas "saídas nocturnas" da Lena, nos seus 16/17 anos (?).
Em sua casa, na aldeia, tinham uma arrecadação/despensa ao fundo do quintal.
Por vezes, já em total escuridão, a mãe, pedia-lhe para ir lá buscar isto ou aquilo ! Ela, cheia de medo, não se fazia rogada.
Preparava-se para sair, penteava o cabelo, vestia um casaco comprido, virava-se para as sobrinhas (pouco mais novas) que habitualmente, por lá passavam alguns dias e dizia-lhes : "querem vir comigo ao "Café" ? ... Elas, entusiasmadíssimas, lá se preparavam rapidamente com os respectivos agasalhos e saíam. Só que, chegadas cá fora, a Lena inventava um pretexto para irem até ao fundo do quintal e de seguida, após isso, claro, regressavam a casa. Qual café, qual carapuça ! eheh... Calcule-se a decepção das miúdas ! :)
Abraço agasalhado e com gin , Jani ! :)
Sim, Rui, esta era uma das facetas do autor rebelde, porque também escreveu poesia. Desta leitura sei que irias gostar. :) De copo de gin numa mão e a caneta na outra, M.H.L., escrevia contos do 'caneco'. :)
EliminarFizeste-me rir com essa história das saídas 'nocturnas' da Lena. Lol. Dava-se ao trabalho de pentear cuidadosamente o cabelo para convencer as sobrinhas da ida à rua?...:)) O medo do escuro, ou a superstição do que se pode esconder na escuridão, é terrivelmente inibidora.
Sabes que nunca tive medo do escuro? Lembro-me de ser eu que ia, ao entardecer, já lusco-fusco, buscar qualquer coisa que a minha Mãe precisasse de alguma vizinha, lá no Alentejo.
Se a meio da noite, ouço um barulho qualquer esquisito, chego a ir ao sótão sem acender a luz, só a acendo quando chego lá acima. Manias... Mas vou munida de pau de vassoura. ehehehe
Beijinhos, mas com vinho 'abafado', gin não, obrigada! :))
Boa tarde Querida Janita!
ResponderEliminarBelíssimo texto/conto! Fiquei curiosa. Estou tentada a começar a ler. Este pode ser um bom começo, se o encontrasse! :)
Amanhã cá estarei :)
Beijo e um excelente dia
Boa noite, Larissa!
EliminarFico tão contente por lhe ter agradado este género de escrita! Pode começar a ler o livro, porque vai gostar.
São contos curtos, onde a realidade foi morar em outro lugar...:)
Beijinhos e obrigada pelo carinho.
Oh, Cidália...mil perdões pela minha gaffe de ontem.
EliminarTroquei-lhe o nome, por favor, desculpe-me a imperdoável distracção.
Um beijinho, bom fim de semana.
Boa noite Janita!
EliminarNão há problemas, acontece. Não tinha reparado!
Acredite que vou começar a dedicar uns minutos diários à leitura, ao deitar, claro!
Beijo. Bom fim de semana.
Creio que li a obra, mas já não tenho memória dos conntos.
ResponderEliminar1 bji
Mas não acompanhou a leitura com um copo de gin na mão, pois não? :)
EliminarBeijinhos, José, obrigada.
Gostei da partilha querida amiga ,certamente irei ver se o encontro para o poder ler ,muitos beijinhos felicidades
ResponderEliminarO bom de se partilhar leituras é a divulgação das mesmas. Se o encontrar, leia Emanuel, vai gostar.
EliminarUm beijinho.
Que excelente partilha! Já me passou pelas mãos, mas nunca o li. Percebo agora que só fiquei a perder...tenho de mudar isso! :)
ResponderEliminarBeijinhs,
Daniela
Olá, Daniela!
EliminarFico sempre muito contente quando me deparo com uma cara nova aqui no meu cantinho.
Ainda não perdeu nada, :) vem aí muita coisa para ler sobre Mário Henrique Leiria, o escritor mágico e surrealista.
Beijinhos e grata pela visita, que não deixarei de retribuir com gosto.
Um texto belo muito obrigado
ResponderEliminarAbraço
Eu tinha comentado esta boa história. Volatizou-se. Azar de linha, de tinta, que se perdem no cúmulo da cloud?
ResponderEliminarEra, pouco mais ou menos, assim:
Há uns anos, conheci uma senhora, na altura muito jovem, cujo maridinho, certo dia, ou no dia certo, tanto faz para a narrativa dos factos, e que, por vezes, é melhor não saber nem perguntar pormenores de manicure. Dizia eu, o maridinho, que percebeu a falta de nico, se voltou para a dita e disse:
- Amor, vou num instante ao quiosque comprar tabaco! Chamou o elevador. Foi.
Foi, mas não voltou.
Teria alguma mota estacionada na rua ou abalou a pé até S.ta Apolónia ou à Portela?
Bj.