Como há muito tempo não vos presenteio com um dos contos de Miguel Torga, lembrei-me deste, a propósito de uns boatos sobre bruxaria ligados ao desporto - rei.
Ele há coisas...
O Bruxedo
Apesar de a Gomes ter as farroncas que
toda a gente sabia, a Melra foi-lhe àquele corpo que lho derreteu. A maior coça
de que há memória em Feitais! A velha parecia o diabo, não parecia mulher! Que
perdoava tudo, menos que lhe mordessem na reputação das filhas. Estavam
casadas, e muito bem casadas! Quem quisesse falar de marafonas, falasse das da
Vila Velha. E desancava a outra, com estas razões.
Feitais, embora não pusesse as mãos no
fogo pela honra de ninguém, gostou do correctivo. A Gomes a dar lições de
moral!
Por que boca nos mandava Deus a verdade!
Os sessenta e cinco anos da Melra é que
não eram para semelhantes avarias. Quinze dias depois do barulho, de tão magra
e desfigurada, metia pena.
- Você que tem, ti Joana? Anda tão
desolhada!...
- Nem sei. Dores no corpo, sem nenhuma
vontade de comer, quebrada...
A Melra fora sempre como aço. A ter os
filhos, era um ai que lhe dava; ao mato, punha cada carrego à cabeça, que até
as mais se envergonhavam; a segar, enquanto as outras faziam cinco, fazia ela
dez. Forte! Também lhe comia e bebia como uma valente. O homem, o Inácio,
quando iam às feiras, já sabia: onde ele virasse um copo, ela virava outro. Uma
mulher de armas! Mas, desde a tosa na Gomes, nem uma candeia, sem azeite, a
apagar-se.
- Lá o que tenho, Deus é que sabe. Agora
que não é coisa boa, não. Dói-me tudo, repugna-me a comida, sinto
palpitações...
O Inácio, que também estava na casa dos
setenta, e se sentia cada vez mais duro, no cerne - garantia ele -, não
entendia aqueles flatos. Porque eram flatos, sem dúvida nenhuma.
- Eu não sou mulher de flatos! - protestava
a Melra. - Quem pariu doze filhos como eu pari, sem um desejo, sem uma palavra
que se ouvisse na rua, não é de flatos!
- Pois olha que ou eu me engano muito...
- insistia o Inácio. - Que há-de ser?
Na cabeça da Melra andava um diagnóstico
à espera de se escapulir. E numa hora de maior fraqueza abriu-lhe a portinhola:
- Até já me lembrou... Cala-te, boca...
- O quê?
- Que me fizessem qualquer
bruxaria...
- Deixa-te de maluquices e vê se tens
propósito! Só cá faltava mais essa!... Valha-te Deus!
- Eu sei lá! Sinto-me tão cansada, tão
moída...
- São flatos. Não é mais nada.
- E tu a dar-lhe!
As noites eram grandes e o Inácio tinha
tempo de aturar a mulher. Encheu-se de paciência e pôs-se a meter um pouco de
rigor masculino naquele juízo avariado. Não havia feitiços. O povo, ignorante,
é que acreditava nesse e noutros disparates. Pusesse os olhos nas pessoas de
certa categoria...
- Nunca se ouvira dizer que a senhora
Fulana ou o senhor Sicrano andassem com o diabo no corpo. Só a gente baixa,
coitada, por falta de instrução... Palavra de honra! Estava absolutamente
convencido...
A Melra borrou-lhe o discurso:
- Diz-lhe que não.
A Deolinda começou também assim, que
eram maleitas, que eram febres intestinais, que eram sífilis, e vai-se a ver,
tudo mandingas da Leopoldina.
O Inácio riu-se. Coitada da Leopoldina!
O poder dela era tanto como o dele. E
que motivos dera ela à Leopoldina para lhe fazer mal?
- A ela nenhuns.
- Então, já vês...
- Pois olha que não se me tira do
pensamento...
- És teimosa!
- Serei. O pior é o resto... Seco-me de
dia para dia...
Diante daquele argumento, o Inácio coçou
a cabeça. Lá que a mulher se sumia, sumia. A Leopoldina é que não era para ali
chamada.
A que título ?
A Melra concretizou então numa clara luz
as penumbras da sua intuição.
- Por incumbência da Gomes. Tão certo
como Deus estar no céu! Não se largam. Umas amizades, uns namoros...
- Lá vens tu com enredos, mulher! Trata
de dormir e amanhã vai ao Paliteiro que te venda sal amargo e toma-o. Isso ou
são flatos ou é estômago sujo.
A Melra, apesar do purgante, não
melhorou. E como tivera aquele grande barulho com a Gomes, e agora a Gomes não
saía de casa da Leopoldina, aqui-del-rei que andava enfeitiçada.
- Tenho a certeza! Até dou conta quando
me estão a coser a andilha! Acordo de noite com os alfinetes cravados no corpo!
- Valha-te um burro, mulher! Reloucaste.
Depois de velha, reloucaste!
- Eu sinto! Eu sinto elas picarem o mono.
- Que mono?! Só ao cabo de grandes
explicações é que o
Inácio veio a saber do que se tratava.
Era pelos modos uma figura de pano, que representava a pessoa a desgraçar, onde
a bruxa fazia os malefícios. Judiaria feita no boneco, era tal e qual como se
fosse em nós.
- Estás num lindo estado, sim senhor! E
tão sã que tu eras do miolo!
A Melra, obcecada por aquela ideia, nem
ouvia as ironias do homem.
- E é que dão cabo de mim, as coiras!
Uma agonia, não se me abre a boca para nada, uns apertos no coração...
O curandeiro da Azoia, chamado e posto
ao corrente do que se passava, auscultou, apalpou, virou, receitou uma
garrafada e prometeu a cura. Qual o quê! A Melra sentia-se cada vez pior.
- Bota-te à serra a casa da santa, se me
queres viva! Leva-lhe uma camisa minha e conta-lhe tudo.
O Inácio, então, resolveu cortar o mal
pela raiz. Iam mas é no dia seguinte à Vila, consultar o Dr. Amaral. Santa!
Santa estava a mulher da caixa dos pirolitos.
Deitou-se nessa firme resolução, e
acabara apenas de adormecer, quando, repentinamente, a Melra piorou. Foi-lhe
fazer chá de cidreira e deu-lho. A doente pareceu melhorar. Mas passadas
algumas horas, já de madrugada, estava ele a pegar no sono outra vez, a Melra
deu um grande grito.
- Ai, que aquelas grandes putas
atravessaram-me a alma! Ai! que eu sinto-me estrafegada! Ai Jesus, que eu
morro! Ai...
O Inácio ergueu-se dum salto.
- Sossega, mulher, sossega! Valha-me
nossa Senhora!
Palavras. A infeliz ficara-se-lhe já. Doido, sem um
gemido que lhe abrandasse o desespero, tal e qual como saíra da cama, em
ceroulas, correu para a rua, desvairado, à procura de um socorro impossível.
Num relâmpago, desandou a chave e levantou o gravelho. E, mal puxou a porta,
caiu-lhe aos pés um manipanso de farrapos todo cravado de alfinetes e com um
grande prego de caibro espetado no sítio do coração.
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Imagem recolhida na Net. |
...que las hay...las hay!!