Nenhum escritor soube descrever com tanta precisão e realismo, a vida árdua e os genuinos sentimentos das gentes transmontanas, como Miguel Torga o fez.
Nem todos os seus contos terminam com um final feliz, daí o seu realismo, mas todos são de uma riqueza humana tão grande, que sempre me enterneceram e fascinaram. Aliás, toda a obra deste homem admirável e internacionalmente reconhecido é fascinante.
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Quando, há poucas horas, - o tempo de transcrever o conto para o meu blog e elaborar o post - decidi publicar mais um conto de sua autoria, sorri com a lembrança de algo que muito me divertiu há uns meses atrás.
Foi uma crítica que li num blog, entretanto desaparecido, e que entendi ser-me dirigida. Ou então, para além de outras manias também terei a da perseguição! Mas não. Seria demasiada coincidência. Tanto mais que tinhamos um contencioso e eu tinha publicado, nessa altura, algo de um famoso escritor que muito agradou a todos os meus leitores e amigos. A prova disso foram os numerosos e amáveis comentários que recebi. Pois, essa crítica, dizia que para se ter um blog não era preciso saber escrever. Bastava transcrever histórias conhecidas de autores conhecidos e, passo a citar:
" Receber montes de comentários de gente culta e até de "Dótores".
Esta introdução tem como finalidade, embora sabendo que o dito blog entregou a alma ao Criador, mas tendo eu esperança que o seu dono continue de boa saúde e com outro blog, dizer a esse ilustre desconhecido ( andando e borrifando-se para tudo e para todos - tradução livre do nome do finado blog- ) que este meu post lhe é dedicado, com um grande e amigável sorriso.
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"O Cavaquinho"
O Ronda era o homem mais pobre de Vilela. Mas teve uma tal alegria quando o filho, o Júlio, fez o primeiro exame com óptimo, que prometeu pela sua salvação que lhe havia de dar uma prenda no Natal. O rapaz ouviu-lhe a jura desconfiado.
Apesar dos dez anos, já conhecia a vida. Uma prenda, se nem dinheiro havia para a broa! Em todo o caso, pelo sim, pelo não, foi pondo de vez em quando uma acha na lembrança do pai, e em Dezembro, na véspera da feira dos 23, avivou a chama:
- Então sempre vai à Vila?
- Pois vou.
- E traz-me a prenda?
- Trago.
Fez-se silêncio. A ceia tinha sido caldo de couves e castanhas cozidas. Mais nada. A noite estava de invernia. Sobre o telhado caíam bátegas rijas de chuva. Mas a murra da castanha a arder e aquela firmeza com que o Ronda garantiu a promessa, doiravam tudo de fartura e aconchego.
- E o que é que me vai dar?
- Isso agora…
Foi preciso a mãe arrumar o assunto com as rezas e a cama.
- Infinitas graças vos sejam dadas. Meu Deus e meu Senhor…
As palavras saíam-lhe da boca, límpidas, quentes, solenes. E o pequeno, que já ouvira aquela lengalenga milhentas vezes, pôs-se muito espevitado, a tentar compreender o sentido íntimo de cada invocação.
- S. Bartolomeu nos livre das tentações do demónio, dos maus vizinhos à porta, das más horas…
Pai e filho respondiam à uma:
- Padre-nosso que estais no céu…
Contudo, a atenção do garoto não tardou a cansar-se. No terceiro mistério a sua voz cambaleava. E na salve-rainha, abóbada do solene ritual, parecia que levara com uma moca na cabeça.
Já ia a tombar, quando o amém definitivo o fez voltar à vida e lá conseguiu fitar o pai numa derradeira pergunta:
- Certo, certo, que traz?
- Tu parece que andas parvo, rapaz!
A mãe não podia compreender o que significava para ele receber uma prenda – estender a mão e ver nela, não a malga do caldo habitual, mas qualquer coisa de inesperado e gratuito, que fosse a irrealidade da riqueza na realidade duma pobreza conhecida de lés a lés. Por isso se arreliou tanto quando o viu, ao almoço, virar a cara aos carolos e ao meio-dia comer apenas o rabo de uma sardinha.
Coitada, via-se bem que gostava dele…E é tão fácil de perceber!
Quando a noite veio caindo, cansado de guardar o caminho velho por onde desde que o mundo é mundo se regressa da Vila, pediu à mãe que o deixasse ir esperar o pai. Só até à Castanheira…
Que não. Que tivesse juizinho. Olhou-a mais demoradamente. Tão sua amiga, tão boa, e não ser capaz de o entender!
Resignou-se. Ficaria ali até o pai apontar ao fundo da Silveirinha. E logo que o descortinasse, ó pernas!
Mas que seria a prenda? Que seria?
Da porta já não se enxergava nada. Além de que a chuva, o vento e o frio, que se juntaram, naquela hora, enregelavam tudo.
A tremelicar, foi-se chegando à lareira.
- O pai demora-se…
- Não que ir à Vila e voltar tem que se lhe diga…
Via-se bem que também ela estava inquieta. Seria que, como ele, esperasse por uma prenda?
Cerrou-se a escuridão. O aguaceiro agora caía a cântaros. Pelas frinchas da porta o vento ia dando punhaladas traiçoeiras.
- Que noite e aquele homem por lá!
O lamento da mãe acabou por encher a cozinha, já meio testa de fumo.
De súbito à ideia da prenda, que alegre o acompanhara, todo o dia, juntou-se-lhe uma outra, triste, imprecisa, que lhe meteu medo.
- O tio Adriano também foi, pois foi?
- Foi. Vai cear e dormir que são horas.
Embora obrigado, nem o caldo lhe passou pela garganta nem o sono, na cama, lhe fechava os olhos.
De repente sentiu passos no quinteiro. Até que enfim! Era o pai! O que seria a prenda?
A pessoa que vinha bateu ao de leve e chamou baixo:
- Maria…
- Quem é? - Perguntou a mãe.
- Sou eu, o Adriano…
O coração deu-lhe um baque. Então o tio Adriano sozinho?! Pôs-se a ouvir como um bicho aflito.
Daí a nada sabia que o pai fora morto num barulho, e que no sítio onde caíra, lá ficara, ao lado dum cavaquinho que lhe trazia…
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