BAQUE
Parece
que tenho o dever de decifrar e não mereço, por meu lado, ser entendido.
Ninguém é obrigado a compreender-me a mim. Arrasto o encargo da indagação. Não
é extinguível, nem comunicável, nem transmissível.
No Luxemburgo, eu ia penando num estágio
qualquer, e o marido de Madalena, emigrante de sucesso e negociante de vinhos,
fartava-se de viajar, em boa hora, por Franças e Araganças.
A recordação que me ficou mais viva, e
ainda ressoa, foi aquele sobressalto, seguido de safanão: «Tire daí os dedos!».
Atropelo, rudeza, pua de ferrugem a farpear em leito de rosas. Livra! Mas,
então? Elucidou que sentia as minhas meiguices de mão, o meu dedilhar curioso, como
a incomodidade bruta de um corpo estranho entre as pernas. Um corpo estranho?
Ora! Deixasse-se disso. E seguiu-se um monumental desajeito de gestos e de
posições. Se a dialéctica dos corpos, até então, não era perfeita, muito pior
passou a ser. As frases e os protestos mútuos também não acertaram em termos
satisfatórios.
Orgulhava-se Madalena dos vistosos
cabelos pretos, uma lisura espessa, longa, toque sedoso, a contrastar com a
pele sardenta e áspera. Jazia comigo, numa imobilidade de preguiça, os redondos
olhos negros parados no infinito, uma docilidade feita de inacção, espera e
paciência. Como se os dedos – os dela; não vi, mas adivinhei – lhe
tamborilassem no lençol, enquanto eu demorava a desunir-me. Parecia-lhe,
porventura, que eu me demorava no tempo, que empatava.
Noutra tentativa, num dos dias seguintes,
quase não parou de conversar. E eu tolerei que ela tivesse sempre a boca
desimpedida. O ponto era consabido: que, apesar «daquilo» não pensasse eu que…
Alguma ingenuidade de mulher madura
permitia-lhe aceitar todas as tranquilizações e garantias que eu outorgasse,
enquanto procurava – mal- empregado – dar-lhe o melhor do meu esforço.
Ela tinha assuntos do marido a tratar.
Aturei filas de espera molengas, preenchimentos de formulários, leituras de
regulamentos em bancos nevoentos de parques públicos, porque a minha amiga
Madalena entendia que um relacionamento amoroso implicava contrapartidas de
solidariedade burocrática. Padecer em conjunto. Desdenhar do mundo, ombro com
ombro, coxa com coxa. E papéis debaixo do braço.
A parte mais amena do empreendimento
implicava sessões de cinema, de chatíssima e inábeis coisadas, extravagâncias a
simular profundeza, com ressoos de Nouvelle
Vague. A minha mão procurava a dela, por desfastio, relembrando as praxes
de adolescente: «Esteja quieto», sussurrava-me. «Deixe-me ver o filme».
Não há duas sem três, nem três sem
quatro. Por duas vezes, encontrando-se ela em Lisboa, tentei reincidir para
alterar. Ainda estou para saber como é que me deixei embrulhar em tanta
complicação miudinha. No hotel não podia ser, que a reserva estava em nome do
marido. Mesmo que não se soubesse, havia sempre aquele sentimento de traição,
de se estar a aproveitar de uma assinatura, duma conta, que não a deixava à
vontade.
Telefonando, eu tinha acesso à garçonnière de um amigo. A minha própria
casa pululava de presenças, três idosos e enfermeiras, de forma que muito
agradecia aquele derivativo. Era um pequeno estúdio, numa cave, com um
desengonço de cama e trastes em quinta mão, onde sobremaneira importava
garantir a horizontalidade, não obstante rangessem e estalassem madeirames e
fechos.
Saiu Madalena do carro, intrigada, no
jardim. Desceu um lance de escadas de malgrado, a olhar-me, desconfiada.
Examinou-me, sobranceira, à porta, cirandou os olhos em volta do quarto e
acabou por se sentar na única cadeira que ali sobrevivia, desarticulada,
destinada a roupas atiradas. Ora pernas cruzadas, ora joelhos unidos, mãos
sobre eles, em pose defendente, como se alguém pretendesse arrostar, o que era o
caso.
«Não!» Negativa breve e peremptória. O
que eu conheço de todas as letras, todas as redondezas, todos os ínfimos
recônditos desta maldita imprecação. Mas sou, desafortunadamente, compilador
compulsivo e repleto.
Afundava-me, sentado na borda da cama, e
ia desistindo de justificar a indigência de tudo aquilo, as chitas ou lá o que
era, os quadros de meio tostão ainda encostados à parede ( menino lacrimoso,
pesca portuguesa, ou coisas assim ), a janela de vidros foscos, que parecia dar
para um saguão.
Ela explicava-me vivamente, muito digna,
com os recônditos bem defendidos e segurança de voz, a transcendência dos
relacionamentos. Que poderia eu fazer se não abdicar? Não sou de violações. Nem
sei.
Fui depô-la na portaria do hotel. Se
calhar até pedi desculpa. Andor. Até sempre.
NOTA: Como já deu para perceber, este é mais um conto da autoria de Mário de Carvalho. Não vos inquieteis com a extensão do texto. Se não tiverem tempo para o ler, de uma assentada, vão lendo aos poucos...Depois, digam-me o que acharam desta personagem feminina.
Obrigada a TODOS com votos de:
Feliz Fim-de-Semana
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