"Farrusco"
Dentro
da poça do Lenteiro, há rãs. Naquela água coberta de agriões e de juncos moram
centenas delas. Mas à volta, na sebe de marmeleiros, silva-macha e alecrim,
vive Farrusco, o melro. Sabe-se isso desde que, em certo entardecer de Agosto,
a Clara perguntou ao cuco que se pousara num pinheiro em frente:
-
Cuco do Minho, cuco da Beira: quantos anos me dás de solteira?
A
rapariga era toda ela de se comer. E o cuco, maroto, olhou de lá, viu, e
respondeu:
-
Cucu... Cucu... Cucu...
Três
anos! A moça ficou varada. O Rodrigo acabava a tropa de aí a dias, e prometera
levá-la à igreja logo a seguir. Que significava, pois, semelhante demora?
Aflita, chegou-se à Isaura, a alcoviteira, mouca como um soco, que a seu lado
sachava milho, e gritou-lhe aos ouvidos, desesperada:
-
Ora vê?! Que lhe dizia eu? A Isaura nem queria acreditar.
-
Ouvirias mal!...
-
Olhe lá que não ouvisse! Contei-os bem.
E
foi então que Farrusco soltou a sua primeira gargalhada. Coisa bonita! Uma
cascata de semicolcheias escaroladas, como se alguém rasgasse um pano cru, rijo
e comprido, no silêncio da tarde serena, que o desânimo de Clara enchera
subitamente de melancolia. Nada mais do que isso. Mas o bastante para mudar o
sinal do desencanto.
A força virgem daquele riso chamou a vida à consciência
dos seus direitos. De parada, a natureza animou-se. Uma aragem muito branda e
muito fresca atravessou o espaço. Tudo quanto era mundo vegetal ondulou
levemente. A própria terra, sonolenta do calor do dia, acordou. E, de aí a
segundos, começou a maior sinfonia que se ouviu no Lenteiro.
Chamadas
por aquela volatina, as rãs subiram à tona de água e puseram-se a dar força
sonora às tímidas vozes ocultas e anónimas que se erguiam do limbo. Às rãs,
juntaram-se logo, pressurosos, os ralos, as cegarregas, os grilos, e quanta
arraia miúda tinha fala. A esta, a passarada. Até que não ficou bicho sensível
e solidário alheio ao Tantum Ergo pagão. Um coro imenso, cósmico e fraterno,
que enchia o mundo de confiança.
Clara,
arrastada pela onda de harmonia, apelou da sentença:
-
Cuco do Minho, cuco da Beira: quantos anos me dás de solteira?
O
que foste fazer! O malandro do pitoniso, se há pouco fora cruel, desta vez
requintou.
-
Cucu... Cucu... Cucu... Cucu...
Parecia
uma ladainha! A lengalenga não parava mais. Ou de propósito, ou porque o mundo,
naquele instante, era um orfeão aberto, o ladrão dava mais anos de solteira à
rapariga do que estrelas tem o céu.
Desapontada,
a cachopa regressou às ervas daninhas do lameiro. E, num amuo justificado,
deixou correr as horas. A seu lado, comprometida, a Isaura, que tinha garantido
o noivado a curto prazo, falava, falava, sem conseguir adoçar-lhe no espírito o
fel da desilusão.
E
quando a noite se aproximou disposta a selar com negrura aquela tristeza
humana, foi preciso que Farrusco, novamente solidário com os direitos da moça,
saltasse da espessura da sebe para o cimo de um estacão, e fizesse ressoar pelo
céu parado e quente uma segunda gargalhada.
Discordância
de tal maneira fresca, sadia, prometedora, que a rapariga ganhou ânimo. Pôs os
olhos em si, na força criadora das margaridas abonadas, no ar de coisa sã que
toda ela ressumava, e sorriu. Depois, confiante, juntou a sua alegria à alegria
do melro.
Soltou então também uma risada cristalina, que partiu da verdura do
milhão, passou pelas penas luzidias de Farrusco, e foi bater como um castigo no
ouvido desafinado do cuco. Um segundo a natureza esteve suspensa daquela
gargalhada. A vida homenageava a vida. Depois continuou tudo a cantar.
-
O estafermo do cuco, tia Isaura! Até um melro se riu!...
-
Riem-se de tudo, esses diabos...
Mas
o lusco-fusco começava a empoeirar o céu, e Farrusco ia fechando docemente os
olhos, deitado na cama dura. A vida que lhe ensinara a mãe, simples, honesta,
espartana, não lhe consentia luxos de noitadas. Pela manhã, ainda o sol vinha
lá para Galegos, já ele tinha de estar de perna à vela, pronto para comer a
bicharada da veiga, e rir de novo, se alguma tola de Vilar de Celas se fiasse
outra vez no aldrabão do cuco.
Miguel
Torga, Os
Bichos
Com votos de excelente semana para todos vós! :)
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