O quarto encontrava-se completamente às escuras. O
vento e a chuva fustigavam as janelas. Estava deitada na cama a ouvir a tempestade, de olhos fechados, respirando um ar pesado, sufocante, tapada apenas com um fino lençol.
Na sua mente teimava em passar, como num filme, a
imagem de alguém que não conhecia, mas à qual havia dado uma identidade.
Ilusória, sabia, tanto mais que não conseguia dar-lhe forma, apenas se delineavam
traços de uma personalidade forte. Ah, aquela voz extraordinariamente doce e profunda... O equívoco na chamada telefónica que não lhe era destinada roubara-lhe noites
de sono transformando-as em pesadelos.
Soltando um suspiro resignado e simultaneamente decidido,
eliminou aquele número maldito que teimava em dançar na frente dos seus olhos.
Sentia a pele escorregadia de suor.
Com um ruído surdo fechou bruscamente o livro.
Raio de vida aquela. Maldita obsessão a sua por romances em que
imaginava sempre que a personagem central, uma bela e solitária mulher, vivia
na incessante procura do homem ideal…que poderia perfeitamente, ser ele... e nunca era!...
Pierrot escondido por entre o amarelo dos girassóis
espreita em cautela o sono dela dormindo na sombra da tangerineira. E ela não dorme,
espreita também os olhos descidos, mentindo o sono, as vestes brancas do
Pierrot gatinhando silêncios, por entre o amarelo dos girassóis. E porque Ele
se vem chegando perto, Ela mente ainda mais o sono a mal-ressonar.
Junto d'Ela, não teve mão em si e foi descer-lhe um beijo mudo na negra meia aberta arejando o pé pequenino. Depois os joelhos redondos e
lisos, e já se debruçava por sobre os joelhos, a beijar-lhe o ventre
descomposto, quando Ela acordou cansada de tanto sono fingir.
E Ele ameaça fugida, e Ela furta-lhe a fuga nos braços nus estendidos.
E Ela, magoada dos remorsos de Pierrot, acaricia-lhe a fronte num grande perdão. E, feitas as pazes, ficou combinado que Ela dormisse outra vez.
A Sesta - de José Almada Negreiros
( Texto publicado
em 1913 no primeiro número da revista Orpheu.
Em 1939 surge o desenho a carvão, com o mesmo título )
....Vá que a PrimaVera surge chuvosa, desgovernada e me desfolha as flores?
Ao ver o céu tão azul e as magnólias sorrindo para as azáleas, antecipei-me.
Certo é que já conheceram tempos melhores, em viço, beleza e esplendor... mas também eu já não sou o que era. E jardineiro não há!
Estas, não sei como se chamam.
Sabem?
Aquela tampa, ali, também era escusado ficar a desfear o retrato. Mas, olhem, cada um mostra o que tem e há pouquinho não houve tempo para embelezar nem cortar o que não deveria mostrar. Nem sequer limpar as flores secas.
Fotografei e vim numa corrida mostrar-vos estes pedacinhos de cor, antes que venha a chuva e estrague tudo.
Gostaram?
Adenda - Esta foto foi tirada hoje, um dia depois, com as flores da magnólia totalmente abertas. O poder do Sol é incrível!!...Com ele, tudo sorri e espelha alegria. :)
A foto é da autoria do meu Amigo MFC,que abandonou a blogosfera, mas deixou as portas abertas para que o possamos revisitar, sempre que a saudade bater mais forte.
Obrigada, Manel!
As rimas emparelhadas são de:
(Alberto de Oliveira)
De verdadeiramente meu este post tem: o pensamento, as emoções, a saudade e as recordações!!
Faz hoje um ano que Nicolau Breyner abandonou o palco da vida. "Quero que me recordem com um sorriso" , disse numa entrevista no 'Alta Definição' . Assim o quero recordar, hoje, e sempre!
O Artur sentiu sobre a orelha uma coisa muito fria,
com um som...
- O que é, mãe?
- Não ouves?
Sim, ouvia. Era um som pesado lá ao longe e que depois vinha, vinha e subia, e
que depois se tornava mais brandinho, para logo voltar a vir de longe. Parecia
música, mas não era bem música. E talvez fosse. Bom, não seria bem música.
- O que é, mãe? - Voltou a perguntar. - Que barulho é este?
- É o mar... É a voz do mar...
- A voz do mar?!
- O mar fica longe, mas a voz meteu-se aí dentro. Isto é um búzio.
- E onde nascem os búzios?
- No mar.
-Então é por isso que se ouve...
- Pois é. As ondas fazem um barulho assim quando se ouvem ao longe. E a gente
está longe. Não ouves a voz que lá vem?
- Oiço.
- E depois quebra-se assim como as ondas na areia.
- Então isto é o mar? O mar é o oceano. No mapa chamam-lhe oceano. Parece que
há vários... Eu já ouvi aos que andam no quarto ano: é o Oceano Atlântico, o
Oceano Índico...
- Não achas que mar é mais bonito?
- Pois é, mar é muito mais bonito.
De repente, fechou os olhos e juntou as duas mãos sobre o búzio, apertando-o
contra o ouvido.
- Agora deve ser um navio que lá vem. É mesmo, é, é um navio...
A mãe aproximou o ouvido, desviando o lenço.
- Não ouves?
Não, a mãe não ouvia. Mas o importante para ele era ter o mar apertado entre as
mãos. Lá vinha uma onda...e outra...
Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca tardando-lhe o beijo morria.
Quando à boca da noite surgiste na tarde qual rosa tardia
Quando nós nos olhámos, tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos, unidos, ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia.
Imagem recolhida na Net
Foi a noite mais bela de todas as noites que me
adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram.
Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite se deram
E entre os braços da noite, de tanto se amarem, vivendo morreram.
Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça
E o meu corpo te guarde.
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria
Ou se és a tristeza.
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza!
Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso se é pranto
É por ti que adormeço e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto
Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!
Ary dos Santos, in "As Palavras das
Cantigas"
[ Este poema é, quanto a mim, o mais belo poema na história da Poesia Contemporânea ]