Imagem do sit trasosmontes.com----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------Miguel Torga, médico, poeta, escritor.
Transmontano de nascimento e pelo grande amor que dedicava à sua terra, S. Martinho de Anta, e às suas gentes.
Este conto, faz parte do seu livro:
"BICHOS"
Apenas transcrevi as partes que me pareceram mais relevantes, já que o conto é um pouco extenso.
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Com este post, termino aquilo que considero ser o meu contributo no despertar de algumas consciências, ainda adormecidas, para esta cruel realidade a que muito pomposamente denominam: "Espectáculo de luz e cor"
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MIURA
Fez um esforço. Embora ardesse numa chama de fúria, tentou refrear os nervos e medir com a calma possível a situação.
Estava, pois, encurralado, impedido de dar um passo, à espera que lhe chegasse a vez! Um ser livre e natural, um toiro nado e criado na lezíria ribatejana, de gaiola como um passarinho, condenado a divertir a multidão!
Irreprimível, uma onda de calor tapou-lhe o entendimento por um segundo.
O corpo, inchado de raiva, empurrou as paredes do cubículo, num desespero de Sansão.
Nada, os muros eram resistentes, à prova de quanta força e quanta justa indignação pudesse haver. Os homens, só assim: ou montados em cavalos velozes e defendidos por arame farpado, ou com sebes de cimento armado entre eles e a razão dos mais…
Palmas e música lá fora. O Malhado dava gozo às senhorias…
Um frémito de revolta arrepiou-lhe o pêlo. Dali a nada ele. Ele, Miura, o rei da campina!
A multidão calou-se. Começou a ouvir-se, sedante, nostálgico, o som grosso e pacífico das chocas.
A planície!... O descampado infinito, loiro de sol e trigo…O ilimitado redil das noites luarentas, com bocas mudas, limpas, a ruminar o tempo…A fornalha escaldante, sedenta, desesperante, que o estrídulo das cegarregas levava ao rubro.
Refrescou as ventas com a língua húmida e tentou regressar ao paraíso perdido. A planície…
Um som fino de corneta. Estremeceu. Seria agora? Teria chegado, enfim, a sua vez?
Assobios. Um toque estranho, triste, calou a praça e rarefez o curro. Apertou-se-lhe o coração. Que seria?
Palmas, música, gritos.
Subitamente, abriu-se-lhe sobre o dorso um alçapão e uma ferroada fina, funda, entrou-lhe na carne viva. Cerrou os dentes e arqueou-se, num ímpeto. Desgraçadamente, não podia nada. O senhor homem sabia bem como e quando as fazia. Mas porque razão o espetava daquela maneira? Nova picada no lombo.
– Miura! Cornudo!
De um salto todo muscular, quase de voo, estava na arena. A tremer como varas verdes, de cólera e de angústia, olhou à volta. Um tapume redondo e, do lado de lá, gente, gente, sem acabar. Gritos da multidão.
Que papel ia representar? Hesitante, um tipo magro, doirado entrou no redondel. Admirado, Miura olhava aquela fragilidade de dois pés. Olhava-a sem pestanejar, olímpica e ansiosamente.
– Eh! Toiro Eh! Toiro!
A multidão dava palmas. Tinha de ser. Já que desejavam tão ardentemente o fruto da sua fúria, ei-lo. Mas o homem que visou, que atacou de frente, cheio de lealdade, inesperadamente transfigurou-se na confusão de uma nuvem vermelha, onde o ímpeto das hastes aguçadas se quebrou desiludido.
Mais palmas ao dançarino. Parou. Assim nada o poderia salvar. À suprema humilhação de estar ali, juntava-se o escárnio de andar a marrar em sombras.
Silêncio. Esperou.
O homem ia desafiá-lo certamente outra vez. Tal e qual. Inteiramente confiado, senhor de si, veio vindo, veio vindo, até lhe não poder sair do domínio dos chifres.
Agora! De novo, porém, a nuvem vermelha apareceu. E de novo Miura gastou nela a explosão da sua dor.
Palmas, gritos.
O inimigo não desistia. Lá vinha todo empertigado, a apontar dois pequenos paus coloridos e a gritar como há pouco.
– Eh! Toiro! Eh! Toiro!
Sem lhe dar tempo, com quanta alma pôde, lançou-se-lhe à figura disposto a tudo. Não trouxesse ele o pano mágico e veríamos! Não trazia. E, por isso, quando se encontraram e o outro lhe pregou no cachaço, fundas, dolorosas, as duas farpas que erguia nas mãos, tinha-lhe o corno direito enterrado na fundura da barriga mole.
Gritos e relâmpagos escarlates de todos os lados. Lá levaram o moribundo em braços e lá saltava na arena outro farsante doirado.
Esperou. Se vinha sem a capa enfeitiçada, sem o diabólico farrapo que o cegava e lhe perturbava o entendimento, morria.
Voltou à carga. O corpo fino do toureiro, porém, fugia-lhe por artes infernais. Protestos da assistência. Avançou de novo. Os olhos já lhe doíam e a cabeça já lhe andava à roda.
Humilhado, com o sangue a ferver-lhe nas veias, urinou e roncou num sofrimento sem limites. Miura, joguete nas mãos de um Zé-Ninguém!
Num ímpeto, sem dar tempo ao inimigo, caiu sobre ele. Mas quê! Como um gamo, o miserável saltava a vedação. Parou. Mas não acabaria aquele martírio? Não haveria remédio para semelhante mortificação? Subitamente, o adversário estendeu-lhe diante dos olhos congestionados o brilho frio dum estoque.
Quê! Pois poderia morrer ali, no próprio sítio da sua humilhação? Os homens tinham dessas generosidades?
Calada, a lâmina oferecia-se inteira. Calmamente, num domínio perfeito de si, Miura fitou-a bem.
Depois, numa arremetida que parecia ainda de luta e era de submissão, entregou o pescoço vencido ao alívio daquele gume…
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