terça-feira, 14 de setembro de 2010

BRAVURA



Imagem do sit trasosmontes.com
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Miguel Torga, médico, poeta, escritor.
Transmontano de nascimento e pelo grande amor que dedicava à sua terra, S. Martinho de Anta, e às suas gentes.
Este conto, faz parte do seu livro:
"BICHOS"
Apenas transcrevi as partes que me pareceram mais relevantes, já que o conto é um pouco extenso.
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Com este post, termino aquilo que considero ser o meu contributo no despertar de algumas consciências, ainda adormecidas, para esta cruel realidade a que muito pomposamente denominam: "Espectáculo de luz e cor"
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MIURA


Fez um esforço. Embora ardesse numa chama de fúria, tentou refrear os nervos e medir com a calma possível a situação.
Estava, pois, encurralado, impedido de dar um passo, à espera que lhe chegasse a vez! Um ser livre e natural, um toiro nado e criado na lezíria ribatejana, de gaiola como um passarinho, condenado a divertir a multidão!
Irreprimível, uma onda de calor tapou-lhe o entendimento por um segundo.
O corpo, inchado de raiva, empurrou as paredes do cubículo, num desespero de Sansão.
Nada, os muros eram resistentes, à prova de quanta força e quanta justa indignação pudesse haver. Os homens, só assim: ou montados em cavalos velozes e defendidos por arame farpado, ou com sebes de cimento armado entre eles e a razão dos mais…
Palmas e música lá fora. O Malhado dava gozo às senhorias…
Um frémito de revolta arrepiou-lhe o pêlo. Dali a nada ele. Ele, Miura, o rei da campina!
A multidão calou-se. Começou a ouvir-se, sedante, nostálgico, o som grosso e pacífico das chocas.
A planície!... O descampado infinito, loiro de sol e trigo…O ilimitado redil das noites luarentas, com bocas mudas, limpas, a ruminar o tempo…A fornalha escaldante, sedenta, desesperante, que o estrídulo das cegarregas levava ao rubro.
Refrescou as ventas com a língua húmida e tentou regressar ao paraíso perdido. A planície…
Um som fino de corneta. Estremeceu. Seria agora? Teria chegado, enfim, a sua vez?
Assobios. Um toque estranho, triste, calou a praça e rarefez o curro. Apertou-se-lhe o coração. Que seria?
Palmas, música, gritos.


Subitamente, abriu-se-lhe sobre o dorso um alçapão e uma ferroada fina, funda, entrou-lhe na carne viva. Cerrou os dentes e arqueou-se, num ímpeto. Desgraçadamente, não podia nada. O senhor homem sabia bem como e quando as fazia. Mas porque razão o espetava daquela maneira? Nova picada no lombo.


– Miura! Cornudo!


De um salto todo muscular, quase de voo, estava na arena. A tremer como varas verdes, de cólera e de angústia, olhou à volta. Um tapume redondo e, do lado de lá, gente, gente, sem acabar. Gritos da multidão.


Que papel ia representar? Hesitante, um tipo magro, doirado entrou no redondel. Admirado, Miura olhava aquela fragilidade de dois pés. Olhava-a sem pestanejar, olímpica e ansiosamente.


– Eh! Toiro Eh! Toiro!


A multidão dava palmas. Tinha de ser. Já que desejavam tão ardentemente o fruto da sua fúria, ei-lo. Mas o homem que visou, que atacou de frente, cheio de lealdade, inesperadamente transfigurou-se na confusão de uma nuvem vermelha, onde o ímpeto das hastes aguçadas se quebrou desiludido.


Mais palmas ao dançarino. Parou. Assim nada o poderia salvar. À suprema humilhação de estar ali, juntava-se o escárnio de andar a marrar em sombras.


Silêncio. Esperou.


O homem ia desafiá-lo certamente outra vez. Tal e qual. Inteiramente confiado, senhor de si, veio vindo, veio vindo, até lhe não poder sair do domínio dos chifres.


Agora! De novo, porém, a nuvem vermelha apareceu. E de novo Miura gastou nela a explosão da sua dor.


Palmas, gritos.
O inimigo não desistia. Lá vinha todo empertigado, a apontar dois pequenos paus coloridos e a gritar como há pouco.


– Eh! Toiro! Eh! Toiro!


Sem lhe dar tempo, com quanta alma pôde, lançou-se-lhe à figura disposto a tudo. Não trouxesse ele o pano mágico e veríamos! Não trazia. E, por isso, quando se encontraram e o outro lhe pregou no cachaço, fundas, dolorosas, as duas farpas que erguia nas mãos, tinha-lhe o corno direito enterrado na fundura da barriga mole.


Gritos e relâmpagos escarlates de todos os lados. Lá levaram o moribundo em braços e lá saltava na arena outro farsante doirado.


Esperou. Se vinha sem a capa enfeitiçada, sem o diabólico farrapo que o cegava e lhe perturbava o entendimento, morria.


Voltou à carga. O corpo fino do toureiro, porém, fugia-lhe por artes infernais. Protestos da assistência. Avançou de novo. Os olhos já lhe doíam e a cabeça já lhe andava à roda.


Humilhado, com o sangue a ferver-lhe nas veias, urinou e roncou num sofrimento sem limites. Miura, joguete nas mãos de um Zé-Ninguém!


Num ímpeto, sem dar tempo ao inimigo, caiu sobre ele. Mas quê! Como um gamo, o miserável saltava a vedação. Parou. Mas não acabaria aquele martírio? Não haveria remédio para semelhante mortificação? Subitamente, o adversário estendeu-lhe diante dos olhos congestionados o brilho frio dum estoque.


Quê! Pois poderia morrer ali, no próprio sítio da sua humilhação? Os homens tinham dessas generosidades?
Calada, a lâmina oferecia-se inteira. Calmamente, num domínio perfeito de si, Miura fitou-a bem.
Depois, numa arremetida que parecia ainda de luta e era de submissão, entregou o pescoço vencido ao alívio daquele gume…
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11 comentários:

  1. Lindo o conto! Me doeu o coração de tanta crueldade estúpida da Gente que nada sabe.

    Malditas touradas,
    pobres touros que nada sabem
    e multidões uivantes como no Coliseu Romano, muitos anos antes de Jesus O Cristo vir ao mundo.

    Vejam os séculos que passaram e a
    ignorância e maldade humana, continua igual.

    E pergunto:

    Jesus, Senhor, porque viéste ao mundo morrer, por gente como esta?

    E obtenho uma resposta que vem do interior da minha alma...


    Jesus morreu, e era fatal que morresse, porque os homens eram e continuam a ser, muito mesquinhos, muito limitados; as suas preocupações são demasiado estreitas e baixas para crerem na grandeza do seu mistério celeste.

    Morreu por estes homens tão pequeninos e miseráveis que ainda nada entenderam!

    Linda essa "Bravura" triste o destino dos muitos miuras.

    Beijos,

    Mª. Luísa

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  2. Minha querida amiga, eu tenho grande apreço por Miguel Torga, há um sitio lindíssimo, que pouca gente ainda conhece que era onde ele se ia inspirar para escrever seus contos e seus poemas.
    Já lá fui algumas vezes e sempre que vou para aqueles lados gosto muito de lá parar.
    Chama-se S.Leonardo da galafura, que fica perto da sua terra S. Martinho de Anta tem uma vista deslumbrante sobre o rio Douro em todo o seu redor, vale a pena conhecer.
    Beijinhos de luz minha linda.

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  3. Aqui no Brasil no estado de Santa Catarina, por influência da colonização açoriana, praticam a chamada "Farra do Boi" , bem controvertida ... Belo post !

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  4. Querida amiga Janita!
    Por muito espicaçadas que essas consciências sejam, irão continuar adormecidas, pois isso esta-lhes no sangue,de qualquer maneira é sempre bom estas potagens, para eles saberem que nem todas as pessoas lhes batem palmas, e que repudiam esses tristes espectáculos.
    Do Miguel Torga, tenho uma Ontologia poética, e por aquilo que li dele vejo que era uma pessoa, que tinha o coração no lugar do coração, e todas as pessoas que têm o coração, no lugar do coração, desprezam todos esses espectáculos de tortura.

    Continuação de boa semana,
    um beijinho grande,
    José.

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  5. Bela cruzada essa, amiga e, sem dúvida, grande "aliado": Torga e esse livro encantador, preciosidade da nossa literatura!
    Beijinho

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  6. Janita

    Lá te encontrei no "prémios" o
    comments foi bem aceite.
    E lá estava o teu selo. Que bom te
    conhecer, assim desta forma, assim
    deste modo.

    Tudo quanto são prémios e ofertas,
    vão para os "prémios" que se encontra no sapo.
    O blogs principal no sapo, irmão gémio do google, lá permanece, mas não tornei a escrever, desde que vim à aventura para o google.

    Mudei, tudo muda e eu também mudei.
    Tenho mais um livro a saír próximo.
    Pertenço à "Associação Portuguesa de Escritores e ao Centro de Estudos Bocageanos" e tenho livros publicados desde 1998. Em 2001 entrei na APE.

    Já sabes tudo de mim! Gosto de escrever! É o meu trabalho!

    E analiso, também, "comportamentos humanos", daí escrever discretamente
    no prémios, aquelas breves análises,
    tudo o mais discreto possível!

    Alguns amigos do sapo, me acompanham no prémios e no google.

    Beijos e obrigada,

    Maria Luísa

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  7. O Miura devia era ter pulado para a bancada. Se era para terminar a vida seria num regabofe de cornadas e ossos partidos.

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  8. Minha querida meu amor minha doçura de amiga, tenho andado para aqui ás voltas com o meu marido, o pobre anda com uma hérnia para aí há uns dois anos, e agora tirou duas semanas de férias, então não tem sido só para fazer exames e análises para ser operado. Na volta vai dar para os princípios de Outubro, e lá tenho de fazer de enfermeira dele, até pode ser que nessa altura já tenha sido, e que dê, pois também tenho muito gosto em te conhecer. Quem sabe se não vai dar eu depois dou-te o meu telefone.
    Até lá nos vamos contactando, beijinhos de muita paz minha linda

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  9. Querida Janita, obrigada pelo carinho por todas as palavras que me deixou, mas os ânimos por vezes fazem-nos destas coisas. Sou Ribatejana mas detesto touradas. Quanto ao Torga é realmente um grande senhor da nossa literatura portuguesa. Beijos com carinho

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  10. Janita

    Não tenha medo de entrar num mundo,
    meio-à-superfície, meio-subterrâneo
    é em parte o nosso mundo,o meu e o seu, aquele mundo que ficciono, mas quando vem ao cimo, domina.

    Não fuja, minha amiga!Pois ele se apercebe da fuga e a vai perseguir.

    "Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você conhece
    como eu mergulhei."

    Clarice Lispector

    Mª. Luísa

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  11. Minha querida amiga,já tinha lido o conto,mas só agora me foi possível responder,achei lindo e enternecedor embora triste,jás sabes o que penso a respeito.
    Amiga é sempre um prazer receber-te no meu cantinho.
    Um grande beijinho da amiga...Miuíka

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