“O MELRO”
Andava, o cura, no quintal um certo dia
Lendo em voz alta o Velho Testamento
Enxergou por acaso (que alegria!
Que ditoso momento!)
Um ninho com seis melros escondido
Entre uma carvalheira.
E ao vê-los exclamou enfurecido:
«A mãe comeu o fruto proibido;
Esse fruto era a minha sementeira:
Era o pão, e era o milho
Transmitiu-se o pecado.
E, se a mãe não pagou, que pague o filho.
É doutrina da Igreja. Estou vingado!»
E engaiolando os pobres passaritos,
Soltava exclamações:
«É uma praga. Malditos!
Dão-me cabo de tudo estes ladrões!
Raios os partam! Andai lá que enfim…»
E deixando a gaiola pendurada,
Continuou a ler o seu latim
Fungando uma pitada.
*
* *
Vinha tombando a noite silenciosa
E caía por sobre a natureza
Uma serena paz religiosa
Uma bela tristeza
Harmónica, viril, indefinida.
A luz crepuscular
Infiltra-nos na alma dorida
Um misticismo heróico e salutar.
As árvores, de luz inda doiradas
Sobre os montes longínquos, solitários,
Tinham tomado as formas rendilhadas
Das plantas dos herbários.
Recolhiam-se a casa os lavradores
Dormiam virginais as coisas mansas:
Os rebanhos e as flores,
As aves e as crianças.
Ia subindo a escada o velho abade;
A sua negra, atlética figura
Destacava na frouxa claridade,
Como uma nódoa escura.
E introduzindo a chave no portal
Murmurou entre dentes:
«Tal e qual…tal e qual!...
Guisados com arroz são excelentes.»
*
* *
E nisto o melro foi direito ao ninho.
Para o agasalhar andou buscando
Umas penugens doces como arminho
Um feltrozito acetinado e brando.
Chegou lá e viu tudo.
Partiu como uma flecha; e louco e mudo
Correu por todo o matagal, em vão!
Mas eis que solta de repente um grito
Indo encontrar os filhos na prisão.
»Quem vos meteu aqui?!» O mais velhito
Todo tremente, murmurou então:
«Foi aquele homem negro. – Quando veio
Chamei, chamei…Andavas tu na horta…
Ai que susto, que susto! Ele é tão feio!...
Tive-lhe tanto medo!...Abre esta porta.
E o melro alucinado clamou:
«Senhor! Senhor!
É porventura crime ou é pecado
Que eu tenha muito amor
A estes inocentes?!
Ó Natureza ó Deus como consentes!
Não bastaria a Natureza inteira
Não bastaria o céu para voardes
E prendem-vos assim desta maneira!...
Covardes!
Falta-me a luz e o ar!...Oh, quem me dera
Ser abutre ou ser fera
Para partir o cárcere maldito!...»
*
* *
E a Natureza fresca, omnipotente
Sorria castamente
Com o sorriso alegre dos heróis.
Nas sebes orvalhadas
Entre folhas luzentes como espadas
Cantavam rouxinóis.
Segundo o seu costume habitual
Logo de madrugada
O padre-cura foi para o quintal
Levando a bíblia e sobraçando a enxada.
Antes de dizer missa
O velho abade inevitavelmente
Tratava da hortaliça
E rezava vários trechos latinos
Salvando desta forma juntamente
As ervilhas, as almas e os pepinos.
E já de longe ia bradando:
«Olé! Dormiram bem?... Estimo…
Eu lhes darei o mimo
Canalha vil, grandíssima ralé!
Então vocês, suas almas do diabo
Julgavam que isto era só dar cabo?
Pois muito bem, agora que vos pilho
Eu vos ensinarei, meus safardanas!
Vocês são mariolões, são ratazanas
Têm bico, é certo, mas não têm tonsura…
E nas manhas um melro nunca chega
Às manhas naturais d’um padre-cura.
E depois de vos ter dentro da pança
Depois de vos jantar
Vocês verão como o velhote dança
Como ele é melro e sabe assobiar!...»
*
* *
O melro, ao ver aproximar o abade
Despertou da atonia
Lançando-se furioso contra a grade
Do cárcere, torcia
Para partir os ferros da prisão
Crispando as unhas convulsivamente
Com a fúria d’um leão.
E alucinado, exangue,
Os olhos como brasas
Herói febril, a gotejar em sangue,
Partiu num voo arrebatado e louco
Trazendo dentro em pouco
Preso no bico um ramo de veneno.
E belo e grande e trágico e sereno
Disse:
«Meus filhos, a existência é boa
Só quando é livre. A liberdade é a Lei,
Prende-se a asa, mas a alma voa…
Ó filhos, voemos pelo azul!...Comei!»
Soltou, fitando o abade, uma pungente
Gargalhada de lágrimas, de dor.
E partiu pelo espaço heroicamente
Indo cair, já morto, de repente
Num carcavão com silveirais em flor.
E o velho abade, lívido d’espanto
Exclamou afinal:
«Tudo que existe é imaculado e é santo!
Há em toda a miséria o mesmo pranto
E em todo o coração há um grito igual.
Quer guarde um berço, quer proteja um ninho!
Só hoje sei que em toda a criatura
Desde a mais bela até à mais impura
Ou numa pomba ou numa fera brava
Deus habita, Deus sonha, Deus murmura!...
Há mais fé e há mais verdade
Há mais Deus com certeza
Nos cardos secos d’um rochedo nu
Que nesta bíblia antiga…Ó Natureza
A única bíblia verdadeira és tu!...»
Final do poema de Guerra Junqueiro
Transcrito do livro A Velhice do Padre Eterno.
Nota do Autor
“O facto em que se baseia este poemeto, conquanto pouco conhecido, é absolutamente verdadeiro. Os melros e algumas outras aves, como os rouxinóis e os pintassilgos, quando lhes encarceram os filhos, envenenam-nos. Ora nem todas estas aves assassinam os filhos, quando lhos prendem.
Só o fazem os mais extraordinários, os mais heróicos.
O que nos demonstra que a acção é livre e responsável, e não um simples produto duma fatalidade orgânica.”
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Janita, que história incrível! Nunca soube que alguns pássaros faziam isso. Estava lendo, comovida, e encantada com o português tão bem escrito, pois aqui no Brasil a língua está cada vez pior.Outro dia, no telejornal que passa pelo Brasil inteiro, disseram que vai ser aceita como correta a forma popular que não faz a concordância, no plural. Assim, seria certo dizer, por exemplo, "os homem". Fiquei horrorizada e coloquei na minha página do Facebook que se as coisas continuarem assim eu mudo para Portugal, onde há mais respeito pela gramática.
ResponderEliminarAlém da beleza do texto, a história me surpreendeu. Excelente seu post! Beijos
Ninguém paga pelos crimes dos seus antepassados... a não ser na Igreja (qualquer uma...) com a ideia (criminosa) do pecado original!
ResponderEliminarjanita
ResponderEliminarQue estranhos são os animais e incluo os pássaros.
Não sabia desse pormenor tão terrível e que tanto me impressionou...
Meu Deus, que coragem!...
Maria luísa
Janita
ResponderEliminarSou daqueles que sente necessidade de fugir uns momentos à triste realidade que vivemos no nosso dia a dia e sobretudo às incertezas do presente. A poesia é um bom modo de o fazer. Sobretudo quando a mesma tem conteúdo implícito ou explícito e dá para perceber.
Belo momento este, emocinante e didactico.
Cumprimentos
Rodrigo
Amiga Janita,
ResponderEliminarÉ a mais pura das verdades, constatada por mim nos meus tempos de miúdo.
Quando tirávamos um ninho de pintassilgo e engaiolávamos os passarinhos, passados poucos dias apereciam todos mortos dentro da gaiola.
Daí o excerto de uma canção que na escola primária aprendemos:
............
Nunca se faça mal a um ninho,
À linda graça de um passarinho,
Que nos lembremos sempre também,
Do pai que temos, da nossa mãe.
............
Beijo amigo
Querida Janita,
ResponderEliminarNa fazenda de um amigo, mataram as cobras todas que apareceram, por não haver quem não as temece... quando em Portugal se sabe que nenhuma é venenosa.
Em troco ficaram com ratos e ratazanas que lhes davam cabo de tudo quanto armazenavam das colheitas.
Assim deveríamos aprender, que a natureza tem equilíbrio que a mão do homem não sabe manter.
Fez-me bem ler este poema que não conhecia de todo. Maravilhosa forma de aprendizado, na moral da estória, na forma da escrita, pelo prazer de ler e aprender...
Como se pode constatar a satisfação não é só minha, é de todos os que por aqui passam e não perdem pitada.
Beijos Janita e um kandando sincero.
Obrigado. Valeu!!!
Janita foi muito bonito você ter trazido aqui o poema do Guerra Junqueiro. Não só pela qualidade que tem, pelo que encerra, fundamentalmente quanto à liberdade, mas também pela nota final que para mim era desconhecida. O que nós aprendemos em cada dia. Obrigado.
ResponderEliminarQue história interessante, ... e que eu desconhecia!!
ResponderEliminar:)
Has hecho una buena elección al publicar este hermoso poema.
ResponderEliminarUn abrazo.
Janita,
ResponderEliminarEmbora goste de melros,dos genuínos, a minha passarada preferida é outra...Faz ninhos em imbondeiros e em acácias em flôr,e esses mesmo com poucos pecados são sempre justos.
Gostei!
Também espero tranquilo pela Primavera e aguardo a chegada das andorinhas. Já falta pouco para as ver no seus "loucos" voos a trazer a comida para os filhos aos seus sempre renovados e novos ninhos.
Uma beijoca
Olá, Janita!
ResponderEliminarÉ um belíssimo texto este, convidando a sobre ele meditar, já que são tantas e tão diferentes as formas como lhe pegar, e as lições que dele se podem tirar.
A forma egoísta como muitos de nós encaramos os outros animais, tratando-os com coisa nossa, privando-os muitas vezes da sua liberdade para nosso prazer.
O valor dessa mesma liberdade, que nós tendemos a desvalorizar,como se tal fosse apenas um sentir exclusivos dos humanos, que de humanitários por vezes têm muito pouco ...
Felizmente que se fez-se luz na mente do padre cura, descobrindo a verdade na natureza, redimindo-se a tempo ...
Gostei de ler!
Beijinhos.
Vitor
Sorprendente y sorprendido por esa para mi desconocida historia.
ResponderEliminarGracias por obsequiarnos con estas historias.
Saludos
O Constantino deixou-lhe lá resposta às suas perguntas. Muito grato pela sua participação no meu blog. Um abraço.
ResponderEliminarPS. Ele viu focas.
Minha querida Janita
ResponderEliminarCá o melro do Kim, contrariando o Kimbanda, sabe que há pelo menos uma cobra venenosa em Portugal.
E já nem falo das que sibilando não ratejam.
De facto, o melro não é passaro de gaiola, como eu! O melro, claro!
Beijinho
Boa noite Janita,
ResponderEliminareste poema é de uma beleza ímpar, muito obrigada pela partilha, não conhecia.
Estive ausente mas já estou de volta.
Beijinho,
Ana Martins
Olá Janita
ResponderEliminarDesconhecia de todo esta história!
E não sabia que os pássaros tinham essa coragem!
Obrigado pela partilha.
Bjs dos Alpes
Não sabia disso. Fiquei impressionadíssimo. Só mesmo você, Janita. Outro dia lembrei-me de você. Lembra de um poema que sei que você gosta chamado Carlos e Carlitos? Acabei repostando hoje. vá lá conferir o porquê. Beijos
ResponderEliminarNão entendi aquela parte do desconforto :) :)
ResponderEliminarAmiga:
ResponderEliminarQue texto magnífico, desconhecia completamente esta rara qualidade dos melros.
Guerra Junqueiro à quanto tempo não lia nada dele, foi muito reconfortante saborear cada palavra, cada frase.
Uma lição de amor sem dúvida.
beijinhos
Incrível, desconhecia por completo tal história. Como são os animais e a natureza dos mesmos. Gostei muito. Beijos com carinho
ResponderEliminarMeu Deus Janita eu sabia disso e
ResponderEliminarconheço a "Velhice do Padre Eterno"
mas ouvir dos melros me deixa sempre com uma sensação de vasio no meu débil estomago.
Eu já estive aqui me parece e li e
comentei, mas vim de novo.
Sabe dizer-me de José?
Um beijo e saudade,
Maria luísa
Desconhecia que os pássaros poderiam suicidar-se ou matar nestas condições. Melhor, não me recordava---pois li o livro há dezenas de anos.
ResponderEliminarBom fim de semana
Minha Querida Amiga Janita,
ResponderEliminarLindo o poema mas ainda mais belo por heróico a atitude do melro quando vê a sua prole engaiolada! desconhecia tal prática mas posso compreender pois Liberdade é algo muito importante na Vida!
A morte neste caso é uma forma de Liberdade!
Um beijinho muito amigo e solidário.
o melro eu conheci-o
ResponderEliminarera negro e luzidio
e nã me lenbru du reste
Janita que lindeza de poema muito feliz estou por compartilhar conosco tão preciosos versos.
ResponderEliminarA gente as vezes some sim amiga, mas volta porque amigos são riquezas que as vida nos preseneia e isso nada paga. Também sinto falta do José amigo, espero que volte breve está fazendo falta...
Beijos com ternura amiga, grata por tua passagem por lá.
A amiga de sempre Jady
O melro eu conheci, era alegre, jovial e madrugador.
ResponderEliminarBelo poema de um magnifico escritor que tão esquecido anda.
Janita
ResponderEliminarParabéns por nos ter lembrado este poema maravilhoso, fonte de tantos e tão variados ensinamentos, para além da intrínseca beleza do texto!
Enfim, a natureza em toda a sua plenitude, com suas leis pairando em prol do equilíbrio sempre necessário e, tantas vezes, posto em cheque pelo comportamento humano!
Beijinhos
Janita:
ResponderEliminarNão conhecia o poema, até porque não sou grande fã de poesia. My bad.
Mas gostei bastante deste.
E foi muito bom dares-me a conhecer este poema, de facto, nele, transparece uma ideologia que opõe a Natureza à religião. Desconheço outras obras do autor que falem sobre o assunto. Mas por aqui se vê que o Zé da Trouxa não é o único autor consagrado que não acredita nas religiões... ahahahahahah
Zé da Trouxa:
ResponderEliminarEu sabia que irias encontrar aqui, alguma identificação com a tua filosofia de vida.
Gostei que tivesses gostado...
autor consagrado. :))
Com mais de um ano de atraso
ResponderEliminarVenho confirmar que os mlros ainda são o que tu e o poeta afirmaram que era
(corrigi meu texto, há pouco)
Beijito
A natureza, bíblia verdadeira... Sem dúvida, saibamos nós respeitá-la. :)
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