domingo, 6 de setembro de 2015

A IMPORTÂNCIA DE POSSUIR UMA IDENTIDADE!... ( I )



"O Afogado Mais Formoso do Mundo"

As primeiras crianças que viram o promontório obscuro e sigiloso que se aproximava pelo mar tiveram a ilusão que era um barco inimigo.
 Depois viram que não levava bandeiras nem mastreação e pensaram que fosse uma baleia. Mas, quando ficou varado na praia, tiraram-lhe os matagais de sargaços, os filamentos de medusas e os restos de cardumes e naufrágios que trazia em cima, e só então descobriram que era um afogado.
Tinham brincado com ele toda a tarde, enterrando-o e desenterrando-o na areia, quando alguém os viu por acaso e deu a voz de alarme na povoação.
Os homens que com ele carregaram até à casa mais próxima notaram que pesava mais que todos os mortos conhecidos, quase tanto como um cavalo, e convenceram-se que talvez tivesse estado demasiado tempo à deriva e a água se lhe tivesse metido dentro dos ossos.

Quando o estenderam no chão viram que tinha sido muito maior que todos os homens, pois mal cabia na casa, mas pensaram que talvez a faculdade de continuar a crescer depois da morte estivesse na natureza de certos afogados.
Tinha o cheiro do mar e só a forma permitia supor que era o cadáver de um ser humano, porque a sua pele estava revestida de uma couraça de rémora e de lodo.
Não precisaram de limpar-lhe a cara para saber que era um morto alheio.
A povoação tinha apenas umas vinte casas de tábuas, com pátios de pedras sem flores, dispersas no extremo de um cabo desértico. A terra era tão escassa que as mães andavam sempre com o temor de que o vento levasse as crianças, e os poucos mortos que lhes iam causando os anos tinham de atirá-los nos despenhadeiros.

Mas o mar era manso e pródigo e todos os homens cabiam em sete botes. Por isso, quando encontraram o afogado, bastou-lhes olharem-se uns aos outros para perceberem que estavam completos.
Naquela noite não saíram para trabalhar no mar. Enquanto os homens averiguavam se não faltava alguém nas povoações vizinhas, as mulheres ficaram a tratar do afogado.
Tiraram-lhe o lodo com tampões de esparto, desenredaram-lhe do cabelo os abrolhos submarinos e rasparam-lhe a rémora com ferros de escamar peixe. À  medida que o faziam, notaram que a sua vegetação era de oceanos remotos e de águas profundas e que as suas roupas estavam em farrapos, como se tivesse navegado por entre labirintos de corais.
Notaram também que suportava a morte com altivez, pois não tinha o aspecto solitário dos outros afogados do mar, nem tão-pouco a catadura sórdida e indigente dos afogados fluviais. Mas só quando acabaram de o limpar tiveram consciência da espécie de homem que era, e então ficaram sem alento.

Não somente era o mais alto, o mais forte, o mais viril e o melhor armado que jamais tinham visto, como ainda, apesar de o estarem a ver, não lhes cabia na imaginação.
Fascinadas pela sua desproporção e formosura, as mulheres decidiram então fazer-lhe umas calças com um bom pedaço de vela carangueja e uma camisa de cambraia de noiva, para que pudesse continuar a sua morte com dignidade. 
Enquanto cosiam, sentadas em círculo, contemplando o cadáver entre dois alinhavos, parecia-lhes que o vento não tinha sido nunca tão tenaz, nem o Caribe tinha estado nunca tão ansioso como naquela noite, e supunham que essas mudanças tinham alguma coisa a ver com o morto.
Pensavam que, se aquele homem magnífico tivesse vivido na povoação, a sua casa teria tido as portas mais largas, o tecto mais alto, o sobrado mais firme e a armação da sua cama teria sido feita de cavernas mestras com pernos de ferro e a sua mulher teria sido a mais feliz.

Compararam-no, em segredo, com os seus próprios homens, pensando que não seriam capazes de fazer em toda uma vida o que aquele era capaz de fazer numa noite, e terminaram por repudia-los no fundo dos seus corações, como os seres mais esquálidos e mesquinhos da Terra.
Andavam extraviadas por esses dédalos de fantasia, quando a mais velha das mulheres, que por ser a mais velha tinha contemplado o afogado com menos paixão do que compaixão, suspirou:

 -  Tem cara de chamar-se Esteban!...

(Continua...)


NOTA: Transcrevi este conto, de Gabriel García Marquez, de uma colectânia de sete, do qual publico a foto da contracapa e a página onde se pode ler o título do referido conto. A capa é de um outro conto, cujo título e foto já aqui referi em tempos.
Não me reconhecendo possuir conhecimentos literários, nem académicos, para fazer uma análise acerca da verosimilhança ou inverosimilhança deste conto, ainda assim, atrevi-me a concluir que o facto de se dar um nome a alguém, desconhecido, o torna mais próximo, mais nosso...mais querido! Daí, o título que dei a este post.
Espero que vos agrade, e, no final, gostaria de saber a vossa opinião, tendo a certeza de que será muito mais abalizada do que a minha!

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30 comentários:

  1. Concordo contigo. Tal como as «coisas», as pessoas precisam de um nome sim. Não que ele seja o mais importante, até porque uma identidade não é apenas um nome. Há muitos nomes iguais... já cada um de nós tem uma identidade única.

    Tu és a "nossa" Janita! Já viste se não soubéssemos como te chamar ou nos referir a ti?

    Beijinhos com o teu nome
    (^^)

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    1. Querida AFRODITE,

      Este teu comentário encheu-me a alma de ternura e os olhos de lágrimas!

      Quando escrevi o teor da nota, estava longe de o associar a mim ou a qualquer outra pessoa que anda por estes caminhos cibernéticos.

      Estava mais envolvida com o tema do conto, mas o que escreveste tocou-me fundo, embora se possa aplicar a qualquer outra pessoa.

      Um beijinho com o nome: AMIZADE! :-)

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  2. Minha querida amiga Janita :
    Que saudades de vir aqui, um blogue que tem a tua identidade !
    Porque a identidade é o que nos define e nos distingue.
    Este este conto de Gabriel García Marquez, faz-me lembrar os milhares de afogados sem identidade que perecem todos os dias no mediterrâneo para vergonha de toda a humanidade.

    E fico por aqui porque estou emocionada...

    Um beijinho grande







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    1. Querida Fê.

      Saudades já tinha eu da tua companhia e palavras amigas!

      Todo esse povo que morre por fugir da guerra que grassa nos seus países de origem, tem identidade e tem uma razão para arriscar a vida e a dos seus, chama-se Sobrevivência. O que não deixa de ser um paradoxo!

      Um beijinho e boa semana, Amiga.

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  3. Janita,
    Fez muito bem em transcrever este texto do grande escritor de Cem Anos de Solidão: todo ele um poema sublimado num estranho e dramático cenário que me fez pensar, não sei bem porquê, em Garcia Lorca. A poesia não tem que ser elaborada com a forma tradicional no arrumo das palavras. Poesia é esta coisa que se sente na verdade essencial que o escritor nos faz sentir em infinita e autêntica solidão, na arte de criar um personagem cuja identidade obriga a adivinhar: talvez, aqui, me perturbe uma estranha hesitação. Obrigado, Janita. Um abraço.

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    1. Tem razão GOD...
      Poesia são todas as formas de expressão que nos tocam a alma, nos fazem vibrar, nos impulsionam e nos fazem sentir vivos!
      Agradeço o seu comentário cujo sentido compreendi e com o qual comungo!
      Obrigada.

      Um abraço.

      Janita

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    1. Calma, Gábi!

      No próximo episódio ficarás a saber!! :)

      Beijinhos

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  5. Uma imagem vale mais que mil palavras.

    Confúcio

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    1. Caro Anónimo,

      E essa frase já mais batida e errada significa o quê? Que eu deveria sintetizar este conto com uma imagem? Francamente!!

      Saiba que uma imagem fica sujeita à interpretação de quem a vê e, muitas vezes, há pormenores que escapam a olhares mais desatentos.
      A prova é que, quando um livro é adaptado ao cinema, fica sempre aquém da narrativa escrita.


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  6. Mas há opiniões mais abalizadas que outras quando lemos um texto que nos toca? Não creio... :)

    Beijocas

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    1. E não é que tens razão, Teté?

      A opinião que temos sobre determinado tema, é também uma faceta da nossa identidade, da nossa forma de estar / ser. Independentemente, do grau de sapiência de cada um!

      Vês? Aí está uma opinião verdadeiramente...abalizada!

      Beijocas e boa semana! :)

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  7. Há dois autores dos quais leio tudo e colecciono tudo.
    Garcia Marquez e Záfon.
    Não cansam, surpreendem-nos sempre.
    Beijinhos, boa semana

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    1. De Ruiz Zafón conheço apenas A Sombra do Vento e foi-me emprestado, Pedro.
      Agora García Márquez, foi amor ao primeiro livro! Por acaso nem foi o Cem Anos de Solidão, mas o Amor em Tempo de Cólera! Adorei e fiquei durante muito tempo na fase "García Marquez". De tal modo que em Natais e aniversários, só recebia livros dele. Esta Colectânea de onde transcrevi este conto, foi o meu filho que me ofereceu num Natal já distante.

      Beijinhos!

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    2. A Sombra do Vento é fenomenal.
      Mas, para quem leu A Sombra do Vento é obrigatório ler O Jogo do Anjo e O Prisioneiro do Céu.
      Beijinhos

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    3. Já sei que livros 'pedir' ao Pai Natal, Pedro! :)

      Obrigada.

      Beijinhos

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  8. Querida Janita ! ... Eu não consigo compreender como há tantos acompanhantes dos blogs que passam, deixam o seu comentário e não lêem os outros comentários !?...

    Quantas vezes esses comentários são tão mais maravilhosos que os próprios posts ? ...
    Foi maravilhoso lê-los aqui ! ... Também eu fiquei "tocado" , podes crer !

    ... e só agora vou ler o conto ! :)) ... Tenho alguns receios do Gabriel Garcia Marquez ! rsrs ... Já tentei várias vezes ler os "100 anos de solidão" e ainda não fui capaz de ir além da página 50 ! :((

    Um beijo ! :))

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    1. Sabes, Rui?

      Também gosto de ler o que os outros comentadores escrevem, mas quase sempre o faço depois de ter escrito o meu próprio comentário. Pelo que não me admiro que muitos dos que passam por este ou outro blogue, não leiam o que outros escreveram anteriormente.
      O tempo, ou a falta dele, é também um factor a considerar.
      Sabes como é!!...
      Quando me comentam e lêem o que está escrito já é muito bom .:))
      Pois!...Cem Anos de Solidão, é um osso duro de roer! Aquelas gerações dos Buendía, deram-me água p'la barba, mas foi um tempo em que eu tinha tempo e nunca desisti. Ainda hoje me lembro da cena de levitação de uma personagem...foi demais!

      Não tenhas 'receio' do escritor, Rui! Lê-se muito bem noutras obras menos intrincadas. Deste livro de contos ias gostar e ler rapidinho! O primeiro conto que faz a capa é super divertido e, simultâneamente, dramático, pelo que tem de sórdido .:))

      Beijinhos!

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  9. Registo a minha primeira visita a este blogue para dizer que quero ler o restante do conto.

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    1. E, eu, registo com prazer a sua passagem por cá!!

      Irá ler, pois já está quase a sair do forno. Espero que no final me diga de sua justiça!
      Espero que as férias tenham sido boas!!

      :)

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  10. Verdade concordo com cada palavra bj Lisette.

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    1. Fico feliz por isso, Lisette.

      Obrigada, beijinhos!

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  11. Quanto ao conto, Janita, eu estou quase como tu ! ... Como tenho dito, não tenho sido um grande leitor ao longo dos últimos anos !
    Tu falas em conto verosimil ou inverosímel e aí reside também a minha perplexidade e grande dúvida ! (???) ... Talvez com a 2ª parte do conto, essas dúvidas possam ser atenuadas, mas para já, acho-o muitíssimo estranho e inverosímil ! Como será possível apreciar beleza num cadáver tão mal tratado e nada recente como este, a parecer um barco, ou uma baleia, coberto de lixo ? ... mas quem sou eu para tentar entender a escrita de um grande escritor como este ?...

    Pena não poderes contar comigo para te esclarecer ! Esperemos outras opiniões mais abalizadas ! :)))

    Bjs Janita !

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    1. Não, Rui! Eu percebi e até tirei a ilação, quanto ao nome, mas isso só na segunda parte ficará perceptível.
      Claro que há muito de ficção inverosímil, mais pela devoção que o afogado despertou no seio daquela povoação, principalmente, junto do mulherio, que ficou deslumbrada com as proporções do homem.

      Não leste tudo? Então,...elas limparam-no todinho e quando o viram bem limpinho é que reparam naquela formosura ímpar! :-))

      No final, todos juntos, haveremos de chegar a uma conclusão!!!

      Todas as opiniões são abalizadas, meu Amigo!! :)) ...Ainda que não coincidam!!

      Beijinhos, Rui! Obrigada.

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  12. O nosso Gabriel Garcia Marquez
    uma referência intemporal

    porque o mar fala por gestos

    Bjs

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    1. Concordo, Mar Arável.

      O Mar esconde e descobre mistérios!

      Beijinhos

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  13. excelente escolha.

    adorei ler aqui.

    beijo

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  14. Li, num só fôlego
    e agora vou ler a continuação do conto
    comento no fim
    (será melhor assim)

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  15. Se leu de um fôlego só, às tantas não saboreou bem o sentido das palavras, Rogério! Mas, com a sua caixa torácica*, deve ter fôlego para dar e vender.
    Quanto a comentar, comente como melhor entender!! :)

    Um abraço e obrigada! :)

    * Saberá explicar-me porquê 'tórax' se escreve com x e toráxica (errada) se escreve com c? Estou baralhada...:(

    Andará aqui o famigerado AO ou é apenas ignorância minha???

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