terça-feira, 8 de setembro de 2015

A IMPORTÂNCIA DE POSSUIR UMA IDENTIDADE ( II )


"O Afogado Mais Formoso do Mundo"


Era verdade! À maioria bastou olhá-lo outra vez para compreenderem que não podia ter outro nome.
As mais obstinadas, que eram as mais jovens, mantiveram-se com a ilusão de que, depois de lhe vestirem a roupa, estendido entre flores e com uns sapatos de polimento, poderia chamar-se Lautaro. Mas foi uma ilusão vã.
Depois da meia-noite tornaram-se mais finos os assobios do vento e o mar caiu na modorra da quarta-feira. O silêncio acabou com as últimas dúvidas: Era Esteban!
Mais tarde, quando lhe taparam a cara com um lenço, para que a luz não o incomodasse, viram-no tão morto para sempre, tão parecido com os seus homens, que se lhes abriram as primeiras gretas de lágrimas no coração. Foi uma das mais jovens a que começou a soluçar, As outras, encorajando-se entre si, passaram dos suspiros aos lamentos e quanto mais soluçavam mais desejos sentiam de chorar, porque o afogado se lhes ia tornando cada vez mais Esteban, até que o choraram tanto que foi o homem mais desamparado da Terra, o mais manso e o mais diligente, o pobre Esteban.
De tal maneira que, quando os homens voltaram com a notícia de que o afogado também não era das povoações vizinhas, elas sentiram um espaço de júbilo, entre as lágrimas.

- Bendito seja Deus – suspiraram – É nosso!

Os homens convenceram-se de que aqueles espaventos não passavam de frivolidades de mulher. Mas, quanto mais se apressavam, de mais coisas se lembravam as mulheres para perder o tempo. Andavam como galinhas assustadas, espiolhando amuletos de mar nos arcazes, umas estorvando aqui porque queriam pôr ao afogado os escapulários do bom vento, outras estorvando ali para lhe porem uma pulseira de orientação, e, ao cabo de tanto tira-te daí mulher, põe-te onde não estorves, olha que quase me fazes cais sobre o defunto, aos homens subiram-lhes ao fígado as suspicácias e começaram a resmungar qual seria o objectivo de tanta ferraria de altar-mor para um forasteiro, que por mais caldeirinhas que levasse com ele iam mastigá-lo os tubarões.
Uma das mulheres, mortificada por tanta insensibilidade, tirou então o lenço da cara do cadáver, e também os homens ficaram sem respiração.
Era Esteban!
Não foi preciso repeti-lo para que o reconhecessem. Se lhes tivessem dito Sir Walter Raleigh, porventura, até eles se teriam impressionado com o seu acento de gringo, com o seu papagaio no ombro, com o seu arcabuz de matar canibais, mas Esteban só podia ser um no mundo, e ali estava estendido como um sável, sem botins, com uma unhas cascalhosas que só podiam cortar-se à faca. 

Havia tanta verdade na sua maneira de estar que até os homens mais desconfiados, os que achavam amargas as minuciosas noites no mar, estremeceram até à medula com a sinceridade de Esteban.
Foi por isso que lhe fizeram os funerais mais esplêndidos que podiam conceber-se para um afogado enjeitado.
Largaram-no sem âncora, para que voltasse, se quisesse e quando o quisesse, e todos retiveram a respiração durante a fracção de séculos que demorou a queda do corpo até ao abismo.

Não tiveram necessidade de olhar-se uns aos outros para se aperceberem de que já não estavam completos, nem voltariam a está-lo jamais. Mas também sabiam que tudo seria diferente a partir desse momento, porque eles iam pintar as fachadas das casas com cores alegres e semear flores nos despenhadeiros, para eternizar a memória de Esteban, e que nos amanheceres dos anos vindouros os passageiros dos grandes navios acordassem sufocados por um cheiro de jardins no alto-mar.

O Capitão teria de descer do seu castelo de popa, com o seu astrolábio, a sua estrela polar e a sua fileira de medalhas de guerra, e, apontando para o promontório de flores no horizonte do Caribe, dissesse, em catorze idiomas: -

- Olhem para ali, de onde o vento é agora tão manso que fica a dormir debaixo das camas, ali, onde o Sol brilha tanto que os girassóis não sabem para que lado girar, sim, ali, é a povoação de Esteban!

FIM 

FOTO MINHA


NOTA: A identidade do afogado, desconhecido, ficou completa, quando, para além de lhe darem um nome próprio, deixou de ser apátrida, sem família, sem terra e sem amigos! Digo eu.

Será que esta história é tão inverosímil quanto, no início, nos pareceu? Nos tempos actuais é caso para pensar...

Obrigada a todos/as,  pela  paciência e gentileza de ler e comentar.

Abraço meu!!






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24 comentários:

  1. Voltei para saber como terminava. Gostei de poder ler o conto e gostei muito da história. Obrigada :)
    um beijinho
    Gábi

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    1. Eu é que te agradeço a presença e me congratulo por mostrar um conto que não conhecias, Gábi!

      Um beijinho e o meu obrigada!

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  2. Gosto muito de Gabriel Garcia Marquez. Foi excelente ler este conto aqui. A maior ou menor verosimilhança de qualquer história, desde que bem contada, não tem qualquer importância para o prazer da leitura.

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    1. Concordo, Luísa! Partindo do princípio que todas as histórias são fictícias, o que interessa é a narrativa, que pode ser interessante ou enfastiante! :)

      Obrigada, um abraço!

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  3. "ali, onde o Sol brilha tanto que os girassóis não sabem para que lado girar"

    (bonito, isto!)

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    1. Humm...esse " bonito isto", faz-me crer que só leu o final, Rogério!! :)

      Abraço e obrigada!!

      ( sei que textos grandes são uma maçada(?) )

      ;)

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  4. Já conhecia o conto.
    Mas leio e releio Garcia Marquez sem nunca me cansar.
    Beijinhos

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    1. Mesmo conhecendo, há histórias que sabem bem reler, não é, Pedro?

      Obrigada! Beijinhos.

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  5. Boa tarde, o conto é belo e cativa, gostei de o ler um afogado enjeitado.
    AG

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    1. Boa tarde, A. Gomes!

      Fico contente por ter gostado. Foi bonito o afogado ter deixado de ser enjeitado, não foi?

      Um beijo e obrigada!

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  6. Não conhecia o conto (o conto não é uma das minhas "especialidades", ainda que concorde com quem me diz que não é literatura menor). E, pergunto eu também, será assim tão inverosímil? Não assistimos, hoje, ao drama dos refugiados e a muitos que os querem acolher?

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    1. Quase todos os grandes escritores incluem nas suas obras histórias breves: os contos! Quase sempre são editados em colectâneas.
      Não faço questão de ler um grande romance ou policial, de setecentas páginas em detrimento de um conto! Gosto de ler bons autores e isso de literaturas 'menores' só considero os chamados romances de 'cordel'.

      Um abraço e obrigada, pela companhia!

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  7. Como diz o velho ditado, para agarrar o fio à meada, tive que ler o post anterior que não tinha comentado, gostei de ler o conto de Garcia Marquez de quem já li algumas obras e gosto muito.

    Um beijinho

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    1. Certamente, Adélia! Caso contrário seria o mesmo que começares a ler um livro do meio para a frente! :)

      Fico contente por teres gostado de ler este conto do Nobel da Literatura, em 82.

      Um beijinho e obrigada!

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  8. Gosto muito dele, foi uma bela surpresa este conto.
    A fotografia está linda.
    bjs

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    1. Obrigada, Papoila!
      Quem gosta de boa literatura, gosta de GGM. Digo eu, que sou suspeita! :)

      Esta foto não me saiu muito mal...:)

      Um beijo.

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  9. Um texto lindo de um autor que é simplesmente dos meus preferidos!
    Uma boa escolha que me deu muito prazer reler.

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    1. Este conto faz parte de um livro composto por sete, escolhi este por ser o mais bizarro e o menos longo!!
      Obrigada por teres vindo reler, Manel.

      Beijinhos.

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  10. Amiga Janita, não conhecia este conto de Garcia Marquez e adorei !!!
    O que torna este conto fascinante é a forma como um cadáver trazido pelo mar vai sendo transformado no melhor e mais honrado dos homens.
    Como ninguém o conheceu, ninguém lhe pode apontar defeitos, logo ele se torna superior a todos "os homens reais", pois destes se conhecem os defeitos, enquanto o morto é idealizado.

    Um grande beijinho



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    1. Obrigada pela análise tão perfeita e objectiva, Amiga Fê!

      No fundo, um desconhecido passou a ser o homem mais nobre, mais honrado e formoso....Por vontade daquelas mulheres!
      E a verdade, é que até o vento que elas tanto temiam lhes levasse os filhos, amainou, após o morto ter sido amado e 'baptizado', por elas!

      Um beijinho muito grande e amigo, Fê.
      Bem-hajas!

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    1. Adrian,

      Se gostaste da flor, gostaste da foto!...
      Ler isso escrito por um fotógrafo de primeira água, é muito elogioso para uma simples amadora e admiradora da Arte fotográfica! :)

      Obrigada, um beijo.

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  12. Apenas vim aqui para responder ao teu comentário:

    Já não acredito que seja um bom prenúncio, Janita, porque afinal apenas desaparaceu "Au revoir!". E a canção que ficou lá, já é muito antiga.

    Ainda não li o conto, mas volto aqui para o ler com calma.


    Bom fim de semana com muitas alegrias.

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    1. Obrigada por teres vindo, Ematejoca.

      Pensei que esta canção fosse a imediatamente anterior à "Au Revoir". Tens a certeza que é mais antiga?

      Andar pela blogosfera, sem saber de nada, é muito angustiante. Vamos esperar...

      Um beijo, obrigada e bom fim de semana.

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