Conto retirado do meu livro "Contos da Montanha"
de Miguel Torga.
( Páginas 35 a 41)
AMOR
Nasceu aquela flor em Covelinhas, dum castanheiro velho, o
Lourenço Abel, e duma urze mirrada, a Joana Benta. Nasceu e cresceu tão linda,
tão airosa, que o povo em peso punha os olhos nela. Só tinha um defeito...
- Verduras da mocidade! - pretextava a Cláudia, quando o
homem, ao lume, censurava os namoros da rapariga.
- Ultrapassa as marcas! Dá trela a quantos há na freguesia...
- Ainda hão-de ser mais as vozes do que as nozes.
- É, é! No dia das inspecções lá se viu... A Cláudia calou-se. Na
comprida crónica da montanha não havia página mais negra do que essa a que o
homem fazia alusão. Acabadinhos de sair das garras da junta, onde nus em pêlo
pareciam cordeiros tosquiados, três de Paços, dois de Fermentões, um de Vilela
e outro de S. Martinho armaram tamanha guerra na Sainça, que só faltou tocar os
sinos a rebate.
O de Vilela, aqui-del-rei que a rapariga era dele; o de S.
Martinho que o varava logo ali se continuasse com as gabarolices; o mais
possante dos de Paços que não consentia trigo do seu forno na boca de cães...
Um inferno. Segue-se que daí a nada ia tal polvorosa pelos montes, que Deus nos
acudisse. Não morreu ninguém, felizmente, mas chegou para afligir.
- A Lídia é que não queria saber de desgraças. Muito bem-feita, muito corada, com aqueles dois olhos de veludo que ameigavam tojos, depois de cada sarrafusca a que dava azo, passava pela rua acima em direcção às hortas como se nada fosse. E o povo inteiro rendia-se-lhe aos pés, num sorriso de perdão, de complacência e de carinho.
- Tu a quantos atendes? - Perguntava-lhe em confidência a Mariana, já com cinquenta e dois e ainda de olhinho a reluzir.
- A nenhum. Ninguém me quer, tia Mariana! E dava uma gargalhada das dela, muito clara, muito pura, pondo à mostra uns dentes que cegavam a gente.
- Raios te partam, rapariga! Trazes um regimento à corda, e a dizer que ninguém te quer!
- À consciência!...
E toda ela se dava e se recusava num requebro enigmático, com os seios a enfunarem-lhe a blusa de chita.
- Olha; fazes tu muito bem! Enquanto dura, é doçura...
E a doçura era naquele inverno gelado, noites a fio, o Pedro Verdeal comido de ciúmes a guardar o Lúcio, e o Lúcio, comido de ciúmes, a guardar o Verdeal.
- Que cegueira! Perdidinhos de todo! Um sincelo de meter medo e nenhum arreda pé! Ao menos tem pena deles, cachopa. Manda pôr uma braseira debaixo do negrilho e outra no cruzeiro...
- Eles não têm frio. Quanto mais, deixe falar, tia Cláudia! Se andam de noite, lá andam à sua vida. Cá comigo não há nada. Querem coisa mais alta.
E continuava a receber cartas do Lúcio, do Verdeal, do Vitorino, e até recados do Teodoro, um homem já viúvo! A Violante do correio entregava-lhe essas letras de amor às escondidas de toda gente, mas ia dizendo:
- Eu não sei como tu podes com tal cainçada atrás de ti!...
A Lídia, porém, era aquele coração aberto a quantos lhe batiam à porta. Como uma terra de semeadura em pousio, dizia a todas as sementes que deixassem apenas chegar a primavera...
Não havia maldade nem cálculo nas promessas que fazia. Diante de cada solicitação masculina, sentia-se como que chamada a dar contas da sua íntima natureza de mulher.
E todos podiam pedir-lhas com igual autoridade, justamente porque não amara ainda nenhum a valer. Limpo, o seu corpo estava destinado a pertencer a um daqueles pobres obcecados, que andavam à sua volta como lobos à volta de uma ovelha. A um deles teria de se entregar, mais dia, menos dia. Mas a qual?
E todos podiam pedir-lhas com igual autoridade, justamente porque não amara ainda nenhum a valer. Limpo, o seu corpo estava destinado a pertencer a um daqueles pobres obcecados, que andavam à sua volta como lobos à volta de uma ovelha. A um deles teria de se entregar, mais dia, menos dia. Mas a qual?
- Tu é que sabes. Se fosse comigo, escolhia o mais jeitoso e mandava os outros à tábua. Sarilhos desses é que não! - Repetia a Violante, apavorada com tanta carta e tanto enredo. - Vê lá!
- Deixe correr, que ainda bota, ti Violante. Uma carta custa apenas o selo e o papel.
- Parece-te! Pode custar muita lágrima. Não estiques a corda demais...
Boas palavras, realmente. Pena é que não tivessem eco nos ouvidos da Lídia. Por mais que quisesse, não conseguia decidir-se por nenhum. Os homens eram como os ramos de rebuçados na mesa da doceira: pareciam-lhe todos iguais.
- Não são, não. Repara bem, que verás... - respondia-lhe a Cláudia, cheia de paciência.
Reparava e via o mesmo desejo a arder nos Olhos de cada um. As palavras, os gestos, os amuos significavam em todos a mesma coisa. P’ra a virgindade que lhe pediam, quer o dissessem, quer não. E continuava, conciliante, a prometer-lha e a negar-lha.
- Qualquer dia estoira para aí tamanho sarrabulho, que vai ser uma vergonha... - ia insistindo o Leopoldino, agoirento.
- Olha não estoires tu do miolo! - Repontava a mulher, a fazer de valente.
- Deu com o pai já comido da terra, e com a lambaças da mãe, que é uma pobre de Cristo. Fosse minha filha e eu te diria. Era com uma soga por aquele lombo...
- A mãe que há-de fazer? Proibi-la de se divertir ?!
A Cláudia estava farta de saber que o homem tinha carradas de razão. Quantas e quantas vezes falara já com a Joana Benta sobre a filha. Valia de bem! A coitada ouvia, concordava, gemia, apagava-se rasteira na escuridão da cozinha. noite é que lá se atrevia a dizer uma palavra à rapariga.
- Tu não terás juízo, mulher! Coisa assim!
- Não se aflija, que não me dá o lampo. Palavras leva-as o vento...
Mas com palavras tinha ela posto a cabeça do Verdeal e do Lúcio a andar à roda. A mangar, a mangar, jurava a cada um que não queria mais ninguém e que os outros lhe rondavam a casa por palermice. Que não era culpada de quantos homens havia no concelho lhe andarem a cheirar o rasto...
Na véspera do S. Miguel, a Olívia, que era sua amiga do coração, ao vir da missa pôs-lhe os pontos nos ii.
- Tu tem lá mão na manta, que isto não acaba bem. Dá o sim-ou-sopas a um e emponta o resto. Muitos burros à nora não é negócio; escoicinham-se uns aos outros... O Verdeal anda sobre o Lúcio como um cão. Se o agarra a jeito, esfandega-o.
- Oh! E aconteceu o que tinha de acontecer. Nessa mesma noite,
depois da ceia, o Verdeal, ao voltar a esquina da eira, viu um vulto à porta do
quinteiro da moça. Disfarçou-se na sombra e chegou-se perto. Era o Lúcio a
falar com ela. Avançou até junto deles. No calor da conversa, nem o viram.
- Então, muito boas noites... - cumprimentou., já de mão na
pistola.
- Boas noites - responderam ambos, ela com a mesma cara, e o Lúcio
cego de raiva.
- Pode-se saber quando é a boda?
- Pode...
Mediram-se os dois de cima abaixo.
- É capaz de ser, no dia de juízo...
- Conforme...
- É que a bocada às vezes parece que está quase na boca e não
está...
Alheia, numa volúpia de irresponsabilidade, a Lídia assistia
àquela disputa de que era a causa, divertida como uma criança. Quase que nem
ouviu o simultâneo deflagrar das armas.
- Canalha! Seguiram-se mais dois estalidos secos.
- Cabrão! Os insultos como que eram apenas um comentário
desdenhoso à margem dos tiros rápidos e sucessivos.
- Excomungada! A inesperada maldição entrou na alma da Lídia como
um punhal de quem vinha? Da boca do Lúcio, ou da boca do Verdeal?
Mas não pôde sabê-lo. Ambos jaziam quase a seus pés, cada um no
último arranco. E quando a mãe, espavorida, em saiote, abriu a porta, veio
encontrá-la ainda alheada junto dos dois mortos, a tentar compreender a
violência daquela queixa.
Quantas vezes eu o vi assim nestes preparos, ali junto ao Largo da Portagem em Coimbra!!
ResponderEliminarBeijinhos
Um privilégio, Amigo Pedro!
EliminarBeijinhos
O amor é assim. Pode ser salvação, ou perdição.
ResponderEliminarJá lá dizia Camilo.
Um abraço
Disse e viveu, um grande Amor, que o perdeu!, Elvira.
EliminarAna Plácido foi também, para ele, um amor de perdição.
Um abraço.
O amor é assim. Pode ser salvação, ou perdição.
ResponderEliminarJá lá dizia Camilo.
Um abraço
Pois...
ResponderEliminar:)
Pois...?!?
Eliminar:)
Sim, pois!
EliminarEmbora isto seja um conto, há muito do que eram os costumes da época.
Nesta época os Tugas tinham o sangue demasiado quente e este tipo de brincadeiras dava resultados trágicos.
Claro que ela só percebeu isso quando viu os dois caídos aos pés dela...
Sendo eu um filho tardio de uma filha tardia tive uma avó materna que contava a sua dose de histórias como esta, das coisas que aconteciam na serra e dos resultados que situações destas e as dos "maus vinhos" davam, muitas vezes tão trágicas como esta...
Portanto, Pois! Era de esperar...
:)
A falar nos entendemos, Caro Cláudio Gil.
EliminarAgora, sim! Posso ter alguma capacidade para ler o que se escreve nas entrelinhas, mas não fui dotada para ler pensamentos.
Bastaria teres acrescentado: "Era de esperar", ao "Pois" e eu teria entendido onde querias chegar...
;)
Mas assim enchemos mais a caixa de comentários...
Eliminarhehehe
:)
Vendo as coisas por esse lado e, sabendo eu, que a quantidade está equiparada à qualidade, venham de lá eles...
Eliminar:)))
Gostei de reler este conto de Miguel Torga, um dos maiores artífices de contos do nosso país. No mundo agreste e duro da aldeia, a mulher é vista como a responsável pelo desentendimento entre os homens - uma espécie de serpente do mal que põe em causa a ordem do mundo.
ResponderEliminarUm beijinho, Janita
Neste caso até foi, Miss Smile.
EliminarCausa de desentendimento e morte.
Um beijinho
Miguel Torga, inconfundível na descrição atenta de tudo e de todos que o rodeava.
ResponderEliminarEscolheste um excelente conto amiga Janita.
Recebeste o meu email com o vídeo ? :)
Um beijinho
Já te respondi amiga Fê.
EliminarBeijinhos
Uma escrita que sempre me encantou.
ResponderEliminarOs detalhes da descrição são tão bem escritos que quase parece estarmos dentro da história.
Adorei.
Beijos Janita
Na Etiqueta "Contos" e "Miguel Torga", tenho publicados outros contos do escritor, Manu.
EliminarBeijinhos
Janitamiga
ResponderEliminarSabes que conheci o Miguel Torga e com ele conversei várias vezes? Que saudades...
Olá!
Depois de enormes confusões, de muitas decepções de várias ocasiões de desespero e na alternativa de me suicidar, que não me pareceu muito saudável, decidi continuar – e por isso aqui estou.
Pensei tomar 25 gramas de raticida diluído em ácido sulfúrico, com umas pitadas de arsénico; simultaneamente cortaria os pulsos e atirava-me da ponte 25 de Abril e durante a viagem até chegar ao Tejo daria um tiro na mioleira; como complemento e para ficar seguro de que não o meu cadáver ficaria absolutamente falecido, e na mesma altura enforcava-me. Sair-me-ia caríssimo. Desisti.
Por isso repito o que venho dizendo muito empenhado (já nem tenho cotão nos bolsos): A Nossa Travessa está à disposição total, inultrapassável e inadiável. É http:///anossatravessa.blogspot.pt onde fico à espero de muitas visitas e muitos comentários. Obrigado
Bjs da Raquel e qjs do Leãozão
Tu ainda podes sentir saudades, já ele não.
EliminarSabes de uma coisa que eu também gostava muito, Henrique?
Que me saísse o euromilhões...mas quase sempre me esqueço de apostar!....
Beijos
Obrigado pela partilha, Janita, textos destes são sempre bem-vindos.
ResponderEliminarAbraço grande
Mas os meus preferidos de Torga são...
Obrigada, Ricardo.
EliminarO teu Conto preferido, acho que é "Nero" do livro "Bichos", não é?
Beijinhos
Grande mestre da escrita: do conto bem como da poesia.
ResponderEliminarBoa escolha, Janita!
Grande mesmo, Graça.
EliminarBeijinhos
ResponderEliminarMal comecei a ler... veio-me de imediato à mente as frases finais... e a palavra «Excomungada!»...
Li este livro com 13 anos. Imaginas o que algo com este peso dramático pode provocar a alminhas tão inberbes, como a minha na altura? Os "Contos da Montanha" e os "Novos contos da Montanha" marcaram-me para a vida!
Voltei a ler ambos uns anos mais tarde, não os tenho aqui comigo pois ficaram no meu espólio de estudante na casa dos meus pais... mas um dia destes trago-os para a minha estante.
Obrigada por me fazeres recuar uns bons anos :)
Beijinhos Torguianos
(^^)
"...alminhas imberbes"...Gostei disso, Afrodite!
EliminarLê, p.f. a minha resposta à Manu.
Beijinhos
EliminarEu li sim :)
Obrigada!
Pois eu nunca o conheci. Apenas o que saía da sua pena...
ResponderEliminarEstamos em pé de igualdade, Catarina!
Eliminar:)
Este conto, como muitos outros, mostra que o médico coimbrão nunca se distanciou da cultura aldeã como a da sua aldeia natal, S. Martinho d'Anta. Mas, ao que me dizem quem o conheceu, tinha um feitio difícil.
ResponderEliminarSabe a Janita (por onde anda, que não comenta os comentários?), como se chamam as pedras do ribeiro da foto que encabeçam ao post?
Não, José, não sei que nome se dá às pedras que há nos ribeiros e servem para as pessoas atravessar.
EliminarMas gostaria de saber, importa-se de me dizer?
Obrigada!
(ando por aí, cheia de afazeres)
Tinha lido, sim, mas sinceramente, já não me recordava e achei interessantíssimo, até por que me fez recordar alguns episódios da minha infância, em que era conhecido um "caso idêntico" (muito coscuvilhado) em que também se "ameigavam tojos, durante cada sarrafusca a que dava azo", em troca de uns parcos trocados acessíveis até aos mais novos ! :))
ResponderEliminarGostei de reler o conto, Janita ! :))
Beijinhos contados (de contos, que não de contas) ! :))
Como bem sabes, Rui, de quando em vez lá me lembro dos Contos de Torga e sai um para maçar quem não gosta de textos longos.
EliminarMas, como eu gosto e em sua casa cada um é rei...:)
Beijinhos sem conto /de contas/
Dê como não escrita a última linha do meu comentário, já que "aquilo" não é escrita de gente, embora julgue que se entende.
ResponderEliminarEra o que mais faltava!! Para bom entendedora, não há nada que não se entenda, entendeu?
EliminarEu entendi o que escreveu, José! Estou é à espera que me informe do nome das pedras. Então?
Excelente escolha Janita, sabes que li este livro à muitos anos e não me recordo muito do seu conteúdo, mas consoante li aqui ia recordando.
ResponderEliminarBeijinho Amiga
O mesmo acontece comigo, Adélia.
EliminarPor isso é bom recordar, relendo!
Beijinhos, amiga Flor!
Pois fique sabendo que aquelas pedras são chamadas poldras, que eu gostava de saltar em miúdo.
ResponderEliminar(Com que então mui atarefada!)
bji.
«Poldras»? Olhe que engraçado!
EliminarQuase que confundia com potra.
( mui...)
Beijinhos
Bom, acho que fui o único a achar o texto... intragável. Sorry.
ResponderEliminarSorry mesmo. :(
EliminarE então fui banido...
EliminarA Mestre Torga corria-lhe a montanha no sangue. Poucos a entendiam como ele.
ResponderEliminarUm bom fim-de-semana, Janita :)