PRIMEIRO ACTO (parte)
CENÁRIO
Porta
principal de uma velha igreja. A acção começa um pouco antes de ser iluminada a
cidade, mas no interior da igreja há a luz morta dos templos.
Sentado
nas escadas um mendigo aparentando cerca de 50 anos, barbas e cabelos compridos,
olhar sereno, expressões messiânicas, em suma, uma cabeça que despertaria a
atenção de pintores retratistas.
Ao avistar um rapaz que entra em sentido
contrário, simula, instantaneamente e com muita prática, um grande abatimento, uma
expressão de angustioso sofrimento. Ao passar por ele o rapaz atira, maquinalmente,
sem olhar, uma moeda que o mendigo apanha com o chapéu, tão habilmente como um
pelotário apanharia uma bola na cesta…O rapaz entra na igreja enquanto o mendigo
diz, sem dar grande importância ao esmoler:
MENDIGO
Deus lhe
pague… (Em
seguida entra OUTRO mendigo;
mesma idade, mas de aparência pior. É mesmo esquálido e faminto. O MENDIGO, distraidamente à passagem do OUTRO, estende-lhe
o chapéu. ) Ah! (Risonho.)
Desculpe…Não tinha reparado que o senhor é colega…
OUTRO
Ainda não
fiz nada hoje, velhinho. Tenho cigarros.
Aceita um?
MENDIGO
São bons?
OUTRO
Hoje, até as
pontas que consegui apanhar são de cigarros ordinários!
(
Tira do bolso uma latinha cheia de pontas de cigarros, abre-a e oferece. )
MENDIGO
Muito
obrigado. Não fumo cigarros ordinários.
Quer um charuto? ( Tira-o do bolso )
OUTRO
( Aceitando espantado. ) Olá!
MENDIGO
É havana!
Tenho muitos! Custam 10$000 cada um.
OUTRO
Aceito,
porque nunca tive jeito para roubar…
MENDIGO
Nem eu.
OUTRO
Não foram
roubados?
MENDIGO
Foram
comprados. Ainda não sou ladrão.
OUTRO
Desculpe. É que…
MENDIGO
Não é
preciso pedir desculpas. Não sou ladrão,
mas podia sê-lo. É um direito que me
assiste.
OUTRO
( Sentando-se na escada. ) Acha?
MENDIGO
Acho, mas
sempre preferi trabalhar. Como trabalhar
nem sempre é possível, resolvi pedir esmola, antes que fosse obrigado a
roubar. Pedir dá menos trabalho.
OUTRO
( Alarmado ) E é por isso que o senhor pede?
MENDIGO
Só. O
senhor conhece a história do Mundo?
OUTRO
Não.
MENDIGO
Antigamente, tudo era de todos. Ninguém era dono da terra e a água não
pertencia a ninguém. Hoje, cada pedaço de terra tem um dono e cada nascente de
água tem um dono. Quem foi que deu?
OUTRO
Eu não fui…
MENDIGO
Não foi ninguém. Os espertalhões, no
princípio do Mundo, apropriaram-se das coisas e inventaram a Justiça e a
Polícia…
OUTRO
Para quê?
MENDIGO
Para
prender e processar os que vieram depois. Hoje, quem se apropriar das coisas, é
processado pelo crime de apropriação indébita. Porquê? Porque eles resolveram que as coisas lhes
pertencessem…
OUTRO
Mas quem foi
que deu?
MENDIGO
Ninguém. Pergunte ao dono de uma
faixa de terra na Avenida Atlântica se ele sabe explicar porque razão aquela
faixa é dele…
OUTRO
Ora! É
fácil. Ele dirá que comprou do antigo dono.
MENDIGO
E o antigo
dono?
OUTRO
Comprou de outro.
MENDIGO
E o outro?
OUTRO
De outro.
MENDIGO
E estoutro?
OUTRO
Do primeiro dono.
MENDIGO
E o primeiro dono comprou de quem?
OUTRO
De ninguém. Tomou
conta.
MENDIGO
Com que direito?
OUTRO
Isso é que eu não sei.
MENDIGO
Sem direito nenhum. Naquele tempo não havia leis. Depois
que um pequeno grupo dividiu tudo entre si, é que se fizeram os Códigos. Então,
passou a ser crime… para os outros, o que para eles era uma coisa natural…
OUTRO
Mas os que primeiro tomaram conta das terras eram fortes
e podiam garantir a posse contra os fracos.
MENDIGO
Isso era antigamente. Hoje, os chamados donos não são fortes e continuam na
posse do que não lhes pertence.
OUTRO
Garantidos pela Polícia, pelas classes armadas…
MENDIGO
Sim. Garantidos pelos que também não são donos de nada, mas que foram
convencidos de que devem fazer respeitar uma divisão na qual foram aquinhoados.
OUTRO
E o senhor pretende reformar o Mundo?
MENDIGO
Tinha pensado nisso, mas depois compreendi que a Humanidade
não precisa do meu sacrifício.
OUTRO
Porquê?
MENDIGO
Porque o número de infelizes avoluma-se assustadoramente…
OUTRO
( Sorrindo ) E foi por isso que desistiu de reformar o Mundo?
MENDIGO
Foi. Abandonei a Sociedade e resolvi pedir-lhe o que me
pertence. Exigir é impertinência; pedir é um direito universalmente
reconhecido. Dá prazer a quem se pede,
não causa inveja. O senhor já reparou
que ninguém é contra o mendigo? Porque
será? Porque o mendigo é o homem que
desistiu de lutar contra os outros.
OUTRO
Os homens não precisam de nós…
MENDIGO
Precisam, senhor… Como é o seu nome?
OUTRO
Barata.
MENDIGO
Precisam, mas não dependem ; e é por isso que nos olham
com ternura.
OUTRO
Ora! Quem é que
precisa de um mendigo?
MENDIGO
Todos! Eles
precisam muito mais de nós do que nós deles. O mendigo é, neste momento, uma
necessidade social. Quando eles dizem: «Quem dá aos pobres empresta a Deus»,
confessam que não dão aos pobres, mas emprestam a Deus…Não há generosidade na
esmola : há interesse. Os pecadores dão, para aliviar os seus pecados; os sofredores
para merecer as graças de Deus. Além disso,
é com a miséria de um níquel que eles adiam a revolta dos miseráveis…
OUTRO
Mas quando agradecem a Deus, revelam o sentimento da
gratidão.
MENDIGO
Não há gratidão. Só agradece a Deus quem tem medo de
perder a felicidade; se os homens tivessem a certeza de que seriam sempre
felizes, Deus deixaria de existir, porque só existe no pensamento dos infelizes
e dos temerosos da infelicidade. Quem dá esmola pensa que está comprando a felicidade,
e os mendigos, para eles, são os únicos
vendedores desse bem supremo.
OUTRO
( Desanimado ) A felicidade é tão
barata…
MENDIGO
Engana-se. É
caríssima. Barata é a ilusão. Com um
tostãozinho compra-se a a melhor ilusão da vida, porque quando a gente diz :
«Deus lhe pague…», o esmoler pensa que, no dia seguinte, vai tirar cem contos na
lotaria…Coitados! Não são ingénuos…Se dar uma esmola, um mísero tostão, à saída
de um cabaret, onde se gastaram milhares de tostões em vícios
e corrupções, redimisse pecados e comprasse a felicidade, o Mundo seria um
paraíso! O sacrifício é que redime. Esmola não é sacrifício! É sobra. É resto.
É a alegria de quem dá porque não precisa pedir.
Nota: Dedico este post aos amigos e companheiros, nesta jornada bloguista: Ricardo do blog PACTO PORTUGUÊS, e Teresa do blog EMATEJOCA AZUL. Eles sabem porquê!... :)
(Saibam que, transcrever isto, me deu uma grande trabalheira. Espero que todos apreciem. )
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Não li o livro, mas lembro-me como se fosse desse filme de 1948 ! Um filme que me "marcou" muito e de certo modo me alertou para a falsa mendicidade ! Vê ESTE e ESTE
ResponderEliminarSabes que desde aí ficou-me sempre a dúvida ?...
Um abraço ! Este sem quaisquer dúvidas !
E eu, não vi o filme, Rui... Nem sequer sabia que havia um filme de 1948, até porque a edição, deste meu exemplar, é de 1978.
EliminarSegundo nota da editora, esta edição integral foi uma cortesia de «Livros do Brasil» em exclusivo para o Círculo de Leitores.
Este excerto é apenas uma pequeníssima parte dos diálogos que se seguem, onde os intervenientes vão sendo pessoas que saem na igreja.
Penso que o autor não pretendeu tanto abordar o tema da falsa mendicidade, mas, essencialmente, a hipocrisia da Sociedade, mormente a da classe média alta, em relação à prática da caridadezinha.
Enfim, não fosse o Ricardo ter tocado neste título ( embora com um intuito diferente) nem eu me lembraria deste livro. :) Foi bom, porque estou a reler e a gostar. Curiosamente, os assuntos abordados nunca foram tão pertinentes. A vida, por vezes, retoma os contornos que haviam ficado lá bem atrás, no tempo.
Agora, não há tanta mendicidade, mas os 'pobres' alastraram às camadas sociais, tidas, antes, como 'remediadas'...
Um beijinho, Rui e obrigada pela tua presença sempre bem-vinda. :)
Gostei. Não li o livro, não conhecia.
ResponderEliminarObrigado pela partilha.
Um abraço e uma boa semana
Este é um livro daquele tempo em que a leitura era o meu hobby favorito e preenchia todos os meus momentos de lazer, Elvira.
EliminarAté me fiz sócia do Círculo de Leitores e, por isso, o tenho. Este, e muitos mais, que eram exclusivos do CL.
Um abraço
Estava a ler e a pensar mesmo nisso:que trabalheira escrever isto tudo :)
ResponderEliminarValeu a pena, fiquei a conhecer o texto.
Sobre Esmolas á muito que pensar....
bjs
E foi mesmo uma trabalheira, foi. Mas, o que é de gosto regala a vida, Papoila! :)
EliminarSabes que há para aí uns 40 anos ou mais, veio a público uma notícia que fez vender jornais como pãezinhos quentes.
Passou-se em Itália, onde um homem, ainda jovem, se disfarçava de mendigo - deixando crescer o cabelo, a barba e se vestia de andrajos e se sentava à porta de um Banco a pedir.
Juntou uma pequena fortuna e só se descobriu que o homem era abastado, porque foi o próprio que fez a revelação a um jornal muito conhecido. :)
A vida, por vezes, ultrapassa a ficção.
Beijinhos.
Mais uma grande e inteligente partilha
ResponderEliminarBigadu beijocas
Obrigada eu, querida Noname!! És uma amigalhaça. :)
EliminarBeijocas.
É teatro muito antigo
ResponderEliminarfosse actual
teriam os mendigos por portal
uma praça offshore
e a certeza
de esmola melhor
(há livros que não resistem ao tempo)
Pois saiba o meu amigo
Eliminarque esta peça antiga,
é tão actual que até
parece coisa banal.
Nessas praças onde
os offshores existem
são todos actores
que representam
sem palco, mas com
uma rede que os assistem.
(enquanto houver hipocrisia nas Sociedades corruptas, a peça não sai de cena)
Um abraço, Rogério!
Uma dedicatória muito bonita, Janita.
ResponderEliminarA duas pessoas que bem a merecem.
Beijinhos, boa semana
Foi por uma casualidade, mas dedicada com muita amizade, Pedro.
EliminarJá nem me lembrava do livro e voltei a tê-lo nas mãos.
Tudo vantagens que nunca teremos com os livros digitais ou virtuais. :)
Beijinhos, boa semana.
Muito filosófico, é o mínimo que tenho a dizer. É nestas franjas que o catolicismo e o comunismo têm pontos em comum... :)
ResponderEliminarBeijocas
Não concordo ( com a primeira frase), Teté, mas talvez a culpa seja por este extracto não ser suficiente, para deixar passar a mensagem que o autor pretendeu transmitir. Como deves calcular, nisto dos blogues a abordagem destes temas peca sempre pela impossibilidade de lhe darmos a dimensão precisa. Nem eu tenho paciência- nem teria audiência:) - para transcrever um livro inteiro para o blog.
EliminarMas, tu que adoras ler, tenta arranjar o livro e vais ver que vale a pena ser lido. :)
Beijocas! :)
Só me lembro do mendigo à porta da igreja.
ResponderEliminarVou tentar encontrar o livro na Biblioteca.
Os meus agradecimentos, Janita 🎋
Pois, Teresa! Se viste o filme - coisa que eu não vi - as memórias acerca deste enredo não devem ser muitas.
EliminarOxalá o encontres, para ti seria bom reviver esses tempos em que ias ao cinema com a tua mãe.
Não há nada para agradecer, Teresa, foi um prazer.
Beijinhos
Amiga Janita,
ResponderEliminarUma das muitas coisas que a blogosfera tem de positivo, além da nossa interacção e amizade,é esta partilha de saberes que nos enriquecem culturalmente.
Desconhecia o autor e a obra, e já fui pesquisar :)
"O público português, que aplaudiu com entusiasmo esse comovente Deus Lhe Pague... sabe que Joracy Camargo reúne em suas comédias a mais prestigiosa técnica aos mais elevados e nobres pensamentos sociais. O seu teatro pode e deve chamar-se, sem o menor exagero, "teatro de ideias", teatro que não contente em divertir ou distrair, mas que pretende e consegue sempre erguer a alma do ouvinte ou do leitor acima das mesquinharias e dos egoísmos quotidianos. "
Guardei o link e aguardo a continuação :)
Um beijinho e boa semana
Ah, amiga Fê, que boa colaboração me dás! Sabes? Por vezes até me esqueço que tenho à disposição esta imensa biblioteca que é a Internet, imagina...Nem sequer ainda me tinha lembrado de pesquisar o autor.
EliminarAinda bem que o fizeste tu. Esse parágrafo é precioso para dar a conhecer a importância desta obra.
Bem-hajas, querida Fê.
Beijinhos e boa semana.
( continuação, minha, é que não. :)
Li aqui :)
Eliminarhttp://subterraneodaliteratura.blogs.sapo.pt/3354.html
beijinho
Grata, amiga Fê. Quando estiver com tempo, irei consultar o 'subterrâneo da literatura'.:) Tenho a certeza que vai valer a pena.
EliminarBeijinhos.
Tens aqui o filme completo, Janita !!! Vê, que vale a pena.
ResponderEliminarTrata-se de um milionário que tem uma vida dupla !
Milionário à noite e mendigo à porta da igreja durante o dia !
"Dios se lo pague", Joracy Camargo, 1948 (no You Tube)
https://www.youtube.com/watch?v=xN-8HYnzTyA
Beijo
Não deve ser melhor do que o livro, Rui. Todos os filmes que tenho visto, baseados em romances, todos têm ficado muito aquém do livro. O que não quer dizer que não o veja, assim o tempo mo permita.
EliminarAgradeço-te, de qualquer modo, Rui.
Ontem, andei até tarde atrás da tua Igreja e nada...hoje, ainda não fiz nada na blogo... Há dias em que a vida real nos toma o tempo todo! :))
Beijinhos, Rui, bem-hajas!
Não li nem recordo ter visto o filme, embora conheça o enredo de algures.
ResponderEliminarPois eu, também nem sabia que o filme existia, José.
EliminarO livro tenho-o há imenso tempo.
Acho que toda a gente já deve ter ouvido algo sobre este clássico, mais que não se seja, pela frase que lhe dá o título.
Um beijinho.
E não é que pensei mesmo nisso, no trabalhão que deveria ser transcrever tudo :) Gostei muito. obrigada.
ResponderEliminarum beijinho
Não imaginas quão trabalhosa foi esta trabalheira, Gábi...mas tudo vale a pena...:)
EliminarBeijinho.
Meu Deus, que trabalheira, Janita! E eu, que raramente consigo uma hora livre, fico a mordiscar-me de inveja. Espero bem que te sintas compensada, pois o drama é bastante pertinente.
ResponderEliminarUm beijinho :)
Então, AC, isto foi feito num sábado... Os fins de semana sempre me dão mais espaço de manobra. Não precisas de te mordiscar. ehehehe
EliminarDeu-me gosto fazer isto, deu. Já transcrevi tantos contos de Torga e do Gabriel Garcia Marquez. Tenho é que estar em dia sim...:))
Beijinhos, A.C. :)