Foto minha. |
Nesta minha relação tripartida de
pasmo/desconcerto/incredulidade, que nutro pelo "raio do livro", vou
partilhar convosco mais este conto para, depois, arrumá-lo para o fundo da
prateleira mais alta, desta estante, que é a mais alta que tenho, e esquecê-lo definitivamente. Na verdade, e para minha satisfação pessoal, não poderia dar
descanso a esta personagem donjuanesca, sem antes a colocar e ter entendido -
dentro da sua própria narrativa – no lugar de seduzido, ao invés de sedutor.
Papel que desempenhou em todas as narrativas feitas na primeira pessoa…
…E esta hein, Mário de Carvalho?
Finalmente o entendi!...
Ora, vamos lá ver se têm paciência para chegar ao fim...
Audácia
Tinha acabado de arrumar o carro no parque, e ainda vinha com as chaves
na mão a tilintar, quando ouvi o estrondo. Uma intuição traquina preveniu-me
logo, disposta a desfeitear-me o dia: é contigo! E era.
Aurora apareceu-me, de mão na boca, numa atarantação. Ora olhava para os
automóveis, ora para mim, numa gesticulação desordenada.
-- Eu
pago tudo, eu pago tudo…
-- Minha senhora – era eu –, por favor
desligue o motor do carro e sossegue.
No café mais próximo, ajudei-a a preencher
a declaração do seguro. Mostrava-se tão enervada que dois chás de camomila não
conseguiram orientá-la. O documento, em nome do marido, conformou-se à letra galgante
e rasurada. Comprometi-me a enviá-lo, aproveitando o estafeta da empresa, e
combinámos encontrar-nos ao fim da tarde, para tratar de miuçalhas
burocráticas.
E assim tramou o destino o meu fortuito e prazenteiro conúbio com
Aurora. Ela sabia estar, gostava de rir e tinha leituras. Negociámos o hotel
caso a caso, firma a firma e deu-me de saber muito mais do assunto do que eu.
Era estranho, tratando-se da cidade em que, segundo garantia, sempre viveu.
Nenhum foi aprovado. Tudo choldras. Mencionei-lhe a garçonnière, a medo, mas ela riu por achar a ideia muito engraçada.
-- Parece coisa de adolescentes. Também,
você é bastante jovem.
Era lisonja de Aurora. Hábitos sociais. Mas sabe sempre bem ouvir.
Eu já a tinha prevenido de que não era de esperar nenhum palácio, nem
lustres, nem pianos, nem biombos Namban. Mas, mal deu dois passos na cave,
Aurora sentou-se na cadeira, aliás perigosamente, porque nada lhe garantia a
respectiva solidez, e quis afogar-me num vagalhão de gargalhadas.
Depois, ficou de súbito muito séria e, com dois dedos, fez-me sinal para
que me sentasse na cama.
-- Não, caríssimo, adoro o propósito, a
clandestinidade da coisa, mas isto sem um bocado de romantismo não vai lá.
Lá vinha o tal «romantismo», consabida fixação feminil. O padrão é muito
vulgar, mas não contava vir a reconhecê-lo numa balzaquiana tão directa e
despachada.
E ela agora a sorrir-me como se tivesse pena de mim.
- Caríssimo, lamento, nesta espelunca não
dá. Positivamente, não dá.
O dia estava estragado. Cheguei a pensar em rumar com ela a um hotel da Linha, mas não cheguei a propor. Sabia lá se a minha renitente amante não
consideraria o local inapropriado à sua avidez de alma. Há mais marés que
marinheiros, e era melhor esperar que passasse a ocasião nefasta. Deixasse
fazer a Deus, que é santo velho, como descobriu o povo, já que estamos em foco
de provérbios.
Não passou muito tempo antes que Aurora me contactasse de novo, no
emprego. Surgiu na minha frente, muito bem penteada e maquilhada. Nada fora do
normal. Ninguém notou.
-- Por favor, sente-se.
-- Nem pensar. Venha daí. Arranje uma
desculpa.
E daí a pouco, no automóvel dela, ainda com o porta-bagagens amolgado,
rodávamos para as bandas da Venda do Pinheiro, ao som de Singing the Blues. Disse-me que o destino era uma surpresa, mas
depois de um telefonema em alta voz, algo ruidoso, era fácil de perceber.
Aurora falava com o caseiro:
- Sebastião, ponha-me as chaves debaixo
da pedra do costume. Não, o senhor doutor desta vez não pode ir.
E acrescentou ordens e pormenores domésticos, rematando, para meu
sossego:
- Não, não, é melhor que não apareça,
prefiro estar sozinha. Tenho muito trabalho. Vá lá, vá lá…
Era a casa de campo dela. Retirou um molho de chaves de um pedregulho em
que estava enrolada uma mangueira e, enquanto se debatia com a fechadura, prevenia-me:
- Se vier alguém, digo que é o meu
decorador. Não ouse desmentir.
Era uma vivenda bem-apessoada, com escadório apainelado ao fundo do
salão. O caseiro tinha ateado umas brasas na lareira e aberto algumas janelas.
- Vai um copo?
- Eu talvez preferisse subir… - respondi,
a medo.
-- Dentro em pouco, alvoroçávamos a cama, lá em cima. Se aquilo era
romantismo, estamos conversados. Mas a vida ensinou-me que não há que discutir
convicções íntimas. Nem doutrinações.
No desafogado leito de torcidos e tremidos, Aurora revelou-se dinâmica e
empreendedora. Dominava superiormente as técnicas e os tempos, obtinha tudo o
que queria, e sabia querer.
Uma das multifacetadas peculiaridades de Aurora era a repetição em série
destas devastadoras demonstrações de êxtase, nunca tendo eu percebido – macho limitado
e apendicular que sou – se as deflagrações se sucediam em crescendo, em
mantença, ou em descendo.
Outra particularidade era a de avisar, futurando com voz trémula,
gritada e urgente, o que estava prestes a acontecer e confirmar depois essa
declaração, em termos soluçantes, já no presente, enquanto o milagre espasmódico
nos estava a avassalar.
-- E o seu marido? – indaguei eu, enfim, na fase de encolha dialogante em que
os cansaços filosofam.
-- O meu marido o quê?
-- Se ele descobre…Não tem ciúmes? Ao fim
e ao cabo esta é também a casa dele.
-- Sabe o que é que o meu marido disse de
outras vezes? Foi: «Lá estás tu com essas coisas…»
-- E a sua mulher, como é? – Agora era ela.
-- As legítimas? Ora, aonde isso
já vai…
Muita coisa me confidenciou Aurora, porque múltipla, volúvel e bem
vivida tinha sido aquela existência.
Aurora e eu vimo-nos mais vezes, num hotel escolhido por ela – e que até
nem era grande coisa, apesar dos dourados – e em casa duma amiga. O vento vai e
o vento vem, nos seus eternos circuitos. Não há amores eternos. Já basta que
não sejam infelizes.
Ambos sabíamos isso e nem foi preciso despedirmo-nos.
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Aqui para nós, diverti-me imenso ao
transcrever isto. Houve alturas em que gargalhei com vontade. Agora é tempo de
encerrar esta minha relação conflituosa, que mantinha há mais de um ano, com a
personagem, e partir para leituras mais sérias. Do mesmo autor, se possível.
Como os leitores já devem ter
percebido, este é mais um conto da autoria do laureado escritor: Mário de Carvalho.
[do livro: Ronda das Mil Belas em Frol ]
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Hoje não tenho uma opinião sobre o tema da postagem. Não estou familiarizada com o autor, nem, naturalmente, com a sua obra.
ResponderEliminarCatarina, não é preciso que tenhamos lido os "Lusíadas", de fio a pavio para, ao ler um dos seus Cantos, saber se gostámos, se entendemos, se detestámos ou se nos foi indiferente. :)
EliminarBeijinhos!
Ah, já me ia esquecendo... Ao transcrever este conto, omiti propositadamente, dois longos parágrafos que foram justamente os que me provocaram as gargalhadas. Neles, o autor, sem precisar escrever uma única palavra menos decorosa, descrevia as partes íntimas de Aurora, usando de tal graça e encanto poético, que não pude deixar de rir pensando onde teria ele ido buscar tais palavras que nunca antes tinha lido nem ouvido, mas que entendi perfeitamente. Uma das particularidades da escrita deste autor é a invenção de palavras incrivelmente divertidas.
Eu até já “adivinho” as tuas respostas!!! : )) Acredita quando digo que conjeturava algo semelhante. : ) E está bem observado, Janita, só que eu discordo um pouco. E vou dizer porquê.
EliminarAntes de se dizer que se gosta ou não de alguma coisa, portanto para dar uma opinião esclarecida, bem informada – essencialmente em termos de escrita/livros – é importante que se saiba alguma coisa do autor para melhor interpretar o que ele quer dizer e como o diz.
Eu poderia ter dito que gostei ou que não gostei da parte que transcreveste. Mas quis abordar a tua postagem com a seriedade que merece. Queria dar-te a tal opinião informada.
Confirmas que “Uma das particularidades da escrita deste autor é a invenção de palavras incrivelmente divertidas. “ Tens esse conhecimento básico. Eu nem isso tenho.
Quando li o primeiro livro de Mia Couto, como que fiquei à deriva. Nunca tinha lido um autor com tal estilo de escrita. Mas insisti. À medida que ia lendo mais livros, ia compreendendo melhor o escritor e já nada me surpreendia... aliás estava sempre naquela expetativa. Que outro pensamento ou frase vai ele escrever que me vai levar a anotar no meu livro de anotações? Fiquei encantada. E até há bem poucos anos poderia dizer que li tudo o que ele escreveu. Agora já não. Haverá alguns livros recentes que ainda não li.
: ))
Há uma peculiaridade em ti que muito aprecio, Catarina. És honesta nas tuas apreciações!
EliminarCompreendo perfeitamente essa parte em que dizes discordar comigo. Sabes que quando conhecemos algo, falamos disso como se os outros também conhecessem e foi o que aconteceu quando te respondi.
Na verdade, quem não tiver o mínimo conhecimento da obra do autor, este conto parecerá um tanto ou quanto algo semelhante a uma historieta rasca de cordel. Concordo, mas eu já publiquei aqui anteriormente, outros contos dele, e escrevi inclusivamente, um texto aludindo ao meu repúdio acerca de um desses contos que me trouxe um profundo constrangimento.
Daí, eu dar a ênfase que dou a este desfecho definitivo.
Provavelmente não te lembrarás por ter sido em alguma altura em estiveste mais tempo fora da blogosfera.
Quanto ao que dizes sobre Mia Couto, também já falámos sobre essa tua estranheza, pois já publiquei alguns contos seus.
O escritor moçambicano é outro que adora inventar palavras e que eu adoro ler. Grande poeta, também! :)
Muito grata te fico por estas trocas de opiniões que me vão enriquecendo e colorindo a minha passagem pela blogo. :)
É verdade, Janita, quando gosto de um autor, como é o caso de Mia Couto (e já o cumprimentei aqui em Toronto!!! Fiquei tão entusiasmada!!! : )))) eu leio os seus livros uns atrás dos outros como foi o caso dos livros dele, como foi o caso da Diana Gabaldon que escreveu a série Outlander. Livros de 1000 +/- páginas. Creio que levei uns 6 meses a lê-los todos, ou seja, oito. Agora estou ansiosa que apareça no fim deste ano o nono livro. E outros autores com quem “engracei”!!!
EliminarBjos : )
Vou dizer ao Mário que tem mais uma admiradora...
ResponderEliminare que jura vir a ser sua fiel leitora
Diga...diga, Rogério!
EliminarMas não lhe diga onde eu moro...:))
Abraço
De Mário de Carvalho, conheço bem menos do que gostaria de conhecer.
ResponderEliminarDeste conto, em particular, gostei. E concordo; seduzido... "ma non troppo", convenhamos :)
Beijinho, Janita.
Também não posso dizer que tenho um profundo conhecimento da obra de M.C., mas sei que já arrecadou alguns prémios de grande prestígio.
EliminarEsta personagem não pretendeu, em nenhum dos contos, deixar-se seduzir pelo lado da paixão e do envolvimento afectivo, Maria João. Referi que foi ele o seduzido e não o sedutor por ter sido a Aurora que fez todo o investimento da conquista que, afinal, convinha a ambos.
Aí, sim, faz todo o sentido amare ma non troppo. ehehe
Beijinhos, Mª João! :)
É exactamente isso, Janita :)
EliminarOutro beijinho
Conhecia o conto mas, confesso, que se me perguntassem de quem é a autoria não saberia responder, salvo, talvez, se me dessem opções.
ResponderEliminarA verdade é que não conheço muito do autor, embora tenha apreciado o que dele li.
bji.
O José tem, salvo erro, acompanhado esta minha odisseia à volta deste livro, mas era uma coisa que tinha atravessada e sem arrumar isto não conseguia tirar o livro daqui da estante/secretária. Finalmente ambos, o livro e eu, poderemos sossegar! :)
EliminarBeijinho.
PS- Há pouco fui ao seu blogue e saí apressada. Tem lá visita de um hacker, ou lá o que é?...Não percebi bem aquilo.
Confesso que desconhecia. Mas gostei de ler... O importante é divertirem-se e, sem compromissos. É como o vento passa, lool !
ResponderEliminarBeijos-Boa noite
Estamos sempre a aprender, querida poetisa! :)
EliminarNem sabe o que eu tenho aprendido desde que me aventurei nestas lides blogosfericas, Cidália.
Beijinhos e uma noite boa. :)
Devia ser um hacker, sim, mas já eliminei.
ResponderEliminarSossegou, ainda bem.
Que coisa estranha propor a um blogger, os serviços de hackers.
EliminarEle há coisas que até Deus duvida!!
Às tantas é brincadeira de Halloween...
Beijinho
Não conhecia esse sr Mário e também não conhecia o conto :(
ResponderEliminarJá é hábito né? nunca conheço nada ahahahahah
Boa noite Nita
Beijinhos
Conheces muitas coisas, minha querida! :)
EliminarTu é que gostas de te fazer desentendida...olha, e fazes tu muito bem! ehehehe
Boa noite, Nina.
Beijinhos
Como bem sabes, sou fã de Mário de Carvalho. Olha a pachorra que tiveste para transcrever um conto inteiro... Mas valeu a pena...
ResponderEliminarBeijinho.
Sei sim senhora, Graça! E foste tu, quando escreveste acerca deste livro que compraste para oferecer ao Sidónio, mas leste primeiro e gostaste, que me fez falar nele ao meu rapaz e o raio do livro me apareceu aqui à porta, trazido por um estafeta. :))
EliminarBeijinhos e obrigada, Graça!
Fiquei com curiosidade de conhecer um autor que confesso não conheço.
ResponderEliminarPode não haver nada eternos.
Mas nunca é tarde para se procurar conhecer o que não se conhece.
Beijinhos
Algo me diz que o Pedro vai apreciar o estilo da escrita de Mário de Carvalho.
EliminarSe ainda não conhece aproveite para começar por este livro. Tem apenas cem páginas e lê-se bem.
Beijinhos.
Bom fim-de-semana, já que amanhã é feriado, aí em Macau.
( mais outro! :) )
Bom dia. Como sou uma preguiçosa nata para livros, não conheço. Porém, li o texto e gostei. Acho que vou começar a dedicar-me à leitura.
ResponderEliminarAdorei o cabeçalho.:))
Festejem connosco, os: - "Doze meses de cumplicidade Poética.
Bjos
Votos de uma óptima Quarta - Feira
É uma pena o que diz, Larissa!
EliminarLer é (uma) das coisas melhores que há na vida.
Um beijinho e bom feriado.
O Mário de Carvalho que tive o prazer de conhecer pessoalmente na Faculdade, é um excelente escritor. Já li um ou dois livros dele e gosto do que escreve !
ResponderEliminarCreio que já havias mencionado, numa outra publicação minha, que havias sido companheiro de Faculdade, do escritor.
EliminarE que tal ele era no convívio entre colegas? Divertidíssimo, suponho! :)
Obrigada e bom feriado, Ricardo
Ele não foi meu companheiro de Faculdade, foi convidado a ir a duas aulas de Cultura Portuguesa, pelo professor da cadeira e meu amigo, Ernesto Rodrigues (http://ernestorodrigues.blogspot.com/).
EliminarAh, pois, já percebi Ricardo.
EliminarEstive no blogue do Professor Ernesto Rodrigues e gostei bastante do que li. Obrigada pelo link.
Já o tenho na minha lista para visitar com mais tempo os seus escritos e resumos dos livros que escreve.
Obrigada, uma vez mais.
Não leio tanto como gostava :(( por vezes os olhos não ajudam.
ResponderEliminarNão conheço esse escritor mas li tudo o que descreveu do livro e gostei.
Beijinhos
Nunca lemos tanto quanto gostaríamos, minha amiga. Eu digo o mesmo. Tenho imensos livros para ler, uns que vou comprando e outros que me oferecem nas ocasiões especiais, ou fora delas.
EliminarEstas novas tecnologias vieram roubar muito do meu tempo que antes dedicava inteiramente à leitura. Enfim...não se pode ter tudo.
Beijinhos
Gente despachada, Janita !!!
ResponderEliminarnow! como diz a publicidade de uma marca conhecida que puxa pelo vermelho!
Bota despachada nisso, Ângela!
EliminarNunca pensei que houvesse pessoas que se relacionassem dessa maneira descartável.
Se o homem escreveu isto é porque sabe que isto existe...e pelos vistos não é triste!! :))
Beijinhos, bom feriado!
Recheada de boas leituras, sem dúvida!
ResponderEliminarUm beijinho, Janita :)
Olá, AC! :)
EliminarUmas boas e outras nem tanto, mas sempre recheada de leituras, sem dúvida!!
Um beijinho, AC.
(Obrigada)