" Marega, No País que o Merece"
Sou
do país em que, ainda há meses, uma varina, no Lavadouro da Afurada, frente à
cidade do Porto, abanava as ancas e o avental, suspirava "ó o
Marega...", e gritava: "Coisa mai linda não há!". E eu,
sinceramente admirado: o Marega, lindo? A varina rapou do jornal O Jogo e
beijou-o todo na fotografia da capa.
Sou o miúdo que passeava com a mãe pela
Avenida dos Aliados, 1958. Cruzou-se connosco um anjo negro vestido como um
príncipe, reconheci-o. Empanquei, vidrado: Miguel Arcanjo, o defesa
central do clube que nem era o meu, mas o do meu pai, o Porto. Ele pôs-me a mão
na cabeça, a minha mãe sorriu-me e sorriu-lhe, eu continuava nas nuvens. Mas
ainda disse: "Ele também é de Angola...", a minha mãe não lia o
Ídolos do Desporto. E ficaram a falar da nossa terra, eles; eu guardando no
cabelo o afago.
Sou
do país que foi ensinado pelo mulato Mário Coluna. No campo mandava ele, era
ele o senhor de todos, de todos e também dos mais brancos que ele, quando nos
estádios de toda a Europa quase não havia jogadores negros e certamente nenhum
capitão não branco, só ele. Também ainda assisti ao silêncio religioso que
precedia um livre de Eusébio, na Luz, mesmo daqueles de 30 metros, que exigiam
a fé que só emprestamos aos nossos heróis. Sou herdeiro do lugar, ainda
antes - anos 30 e Nuremberga fazia leis celeradas - Portugal se fez país de
futebol, à boleia do duelo entre dois amigos goleadores, o sportinguista
Peyroteo, branco africano, e o benfiquista Espírito Santo, negro lisboeta.
Enfim,
sou mais um de tanta, tanta gente grata que se confirmou como pai ou irmão, em
todo o caso inequívoco eterno admirador de um rapaz de rastas e trapalhão,
negro como noite luminosa que surgiu numa tarde chuta caralho. Obrigado,
obrigado, Eder para todo o sempre...
Então, quero dizer que sou desses, das
pessoas decentes que, das cores, posso ser minucioso em têxtil, mas sobre pele
sou daltónico. Em primeiro lugar, porque sim, e acabou a conversa.
E,
em segundo lugar, segue explicação extra porque temos de ser piedosos com os
imbecis profundos: a sério, meu, és racista com negros e em Portugal, e é num
estádio de futebol que tu o vais proclamar? Vais declarar a inferioridade
deles, aqui, neste país tão conhecedor de personagens de lenda, por onde
passaram as fintas do Dinis Brinca na Areia, tonitruaram os chutos do Matateu,
deslizou a elegância do Jordão e, já agora, o Marega iludiu tanto adversário
fingindo-se falso lerdo? Os negros, inferiores! - e vais dizê-lo na ópera onde
eles são tenores? Meu, metes as mãos pelos pés e isso em futebol é falta.
Experimenta
gritar-lhes que eles nunca irão à Lua - pelo menos, exemplos a desdizê-lo eles,
por enquanto, não têm... Mais prudente foste quando, estou a adivinhar-te,
cabelo seboso, marreco, a cheirar da boca e com ramela deves ter passado a
noite dos Óscares a rosnar para o televisor: "És feio como o caraças, Brad
Pitt!" Ao menos, aí, escolheste o teu quarto solitário para insultar,
escapando ao sorriso sarcástico, se te ouvissem, de todas as mulheres com quem
já te cruzaste na vida. Mas não, ontem, foste para um estádio de futebol expor
a tua lamentável inveja contra um negro.
E
no Minho! Onde um clube já há 60 anos tinha três irmãos negros na equipa, João,
Jorge e Fernando Mendonça, três senhores. Um deles, o médico Jorge Mendonça,
seria fundador do sindicato dos Jogadores de Futebol de Espanha e artista
saudoso no Atlético de Madrid e no Barcelona... Passam-se décadas e dobra-se o
século, e ontem, em Portugal, um futebolista negro marcou um golo aos 71
minutos, em Guimarães. E contra o maliano Marega houve estes sons:
"Macaco!" e "chimpanzé!". Por palavras e também guinchos e
sons guturais de símios. Quer dizer, considerando que o futebol foi criado há
157 anos e sabendo-se que o último antepassado comum dos macacos e homens viveu
há 28 milhões anos, segundo as claques do Vitória de Guimarães Marega precisa
de esperar, façam as contas, 27999847 anos para ele perceber o que é o
association football. Antes, levas com cânticos: Ô-ô-ô-chimpanzé...
Ô-ô-ô-macaco...
O
futebolista Marega enxofrou-se e levou com o cartão amarelo do árbitro. Marega
pediu para sair do campo. Da bancada da claque: "Macaco!" Marega
continuou enxofrado e a querer sair do campo. Daquela bancada da claque:
"Chimpanzé!" Volto à minha tese: depois de tanto ano com os negros a
demonstrar que são tão bons, tão maus e tão assim-assim quanto os brancos,
houve, no estádio de Guimarães, ontem, uns sub-humanos a serem o que são.
Quanto
aos homens vi-os de dois tipos. Árbitros de cabeça perdida, dirigentes e
treinadores de cabeça perdida, adeptos (dos dois clubes) de cabeça perdida,
comentadores televisivos de cabeça perdida, polícias de cabeça perdida e
jogadores do Vitória e do FCP de cabeça perdida, isso de um lado. Do outro, vi
o Marega, outra vez enganando-nos com as aparências, gesticulando e gritando, e
serenamente fazendo o que havia para fazer: assim não jogo.
Ah,
se Pinto da Costa se levantasse e se fosse embora da bancada de honra! Ah se o
guarda-redes do Guimarães abandonasse o campo agarrado ao companheiro
adversário! Ah se o árbitro Luís Godinho rasgasse o cartão amarelo e o vermelho
também, e mostrasse a Marega o cartão branco, o de fair-play, como há dias
outro árbitro mostrou a um jogador infantil e nobre, que o avisou ser
falso um penálti contra o adversário!
Ah se a multidão saísse do estádio quando
o Marega entrou no balneário! Ah se o presidente do Guimarães chorasse! Ah se
um radialista relatasse: "Marega saiu e eu calo-me"! Ah se os gestos
claros e límpidos de Marega causassem a vaga que mereciam...
Esta
noite eu teria sonhado com a mão do Miguel Arcanjo a dizer-me olá, e não
sonhei. Mas o Marega que apareça estes dias pela Afurada e haverá uma varina a
beijá-lo e a resgatar-nos.
Crónica de Ferreira Fernandes
17 Fevereiro 2020
Roubada AQUI
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Carago!!!
ResponderEliminarEste senhor lavou-me a alma e a vergonha que senti, ao ver repetidamente no telejornal a vergonha que aqueles acéfalos me fizeram sentir.
Grata, Janita por me dares a ler esta coisa mailinda
Uma Crónica limpinha e isenta de sentido clubístico, Noname. Sem insultos nem ofensas FF fez jus à sua reputação de jornalista decente e justo.
EliminarMais do que uma demonstração de racismo, aquilo que aconteceu foi despeito e intenção mesquinha de desestabilizar o jogador. Lastimável e vergonhoso!
Já me conheces há muito tempo e sabes que não tenho por hábito trazer aqui assuntos polémicos em cujas águas não navego, mas este caso envolve-nos a todos enquanto cidadãos. Partilhar foi, para mim, quase um ponto de honra!
Beijinhos.
Também agradeço pela partilha. Ah se o comum dos portugueses pensasse assim!
ResponderEliminarAbraço
Mas não pensam, Elvira.
EliminarA maioria dos adeptos e 'amantes da bola' sofrem de clubite aguda, cega e surda à beleza do desporto Rei.
Abraço.
Boa tarde
ResponderEliminarÉ realmente um texto que nos deixa inquietos !!
JAFR
Boa noite.
EliminarA forma crua e isenta de 'cor' desta Crónica não me inquietou, o que acho inquietante são as atrocidades que vão acontecendo, sistematicamente, neste desporto.
Dentro e fora dos Estádios...
Já tinha lido o texto que, aliás, partilhei no FB. E o FF escreve de um modo que só ele. Um dos grandes jornalistas da praça, que vão escasseando.
ResponderEliminarbji.
Como não tenho FB partilho neste cantinho, aquilo que considero digno de partilha.
EliminarBeijinho
Quando o Moussa Morega era jogador do Vitória de Guimarães, todos os adeptos o achavam bonito. O acontecimento não tem a ver com o racismo, mas com a rivalidade das equipas. Os adeptos do meu querido FCPorto insultam jogadores pretos e brancos sem dó nem piedade. O Moussa Morega também provocou e insultou os adeptos do vitória de Guimarães.
ResponderEliminarPor isso é que falei em 'despeito', Teresa. Para não usar um termo mais agressivo.
EliminarA intenção de FF - e a minha - não foi/é enegrecer uns e branquear outros. Em casos de desrespeito pela identidade de outrem todos os prevaricadores são culpados de igual forma. Essa tua última frase mais me pareceu uma birra de cachopos: «Fiz isto porque tu me fizeste aquilo»...
Abraço, Teresa!!
Ah, e há mais. Aquando do aquecimento em campo, antes do jogo, já Marega estava a ser vítima de insultos.
Eliminar"Aquando do aquecimento em campo, antes do jogo, já Marega estava a ser vítima de insultos".
EliminarEstava sim senhor! E eu pergunto: por que motivo Moussa Marega não abandonou o relvado nesse momento? Não sentiu o mesmo que mais tarde, quando depois de marcar o golo que daria a vitória ao FCPorto? O profissional maliano agiu mal, muito mal. De resto, acho que foi incentivado, pelos do seu lado, não importa quem (ou importa?) para demonstrar o que nunca foi, um atleta sério. Diz quem sabe que Marega teve atitudes inconcebíveis em todos os clubes por onde passou. Inclusive no Vitória de Guimarães. E os adeptos não só não esqueceram como não gostaram dos gestos do jogador portista.
Nota de interesses: não sou racista e critico quem seja.
Beijinhos, Janita.
Olá, Repórter!
EliminarJá que tu pareces fazer questão de ler algumas das minhas respostas, mas não todas, trago até ti parte da minha resposta dada ontem a uma leitora, às 21:48.
(...)
Por aqui e creio que na história do futebol, nunca antes houve um jogador que se recusasse a continuar em campo após ser vítima de insultos racistas.
Marega teve a coragem de o fazer!
(...)
Beijinhos, António.
PS- Se acaso te interessa a minha opinião, ainda vou fazer mais. Eis o que escrevi no blog «Devaneios a Oriente», do nosso amigo comum, Pedro Coimbra:
"Racismo: Não tivesse Marega tomado a atitude, irrevogável, corajosa e acertada, de sair do campo, e tudo não passaria de mais um caso de insultos -, tendo como móbil a desmoralização do jogador em causa e, consequentemente, de toda a equipa adversária - como em tantos e tantos outros casos. Felizmente, há sempre alguém que diz: NÃO!"
Claro que já houve outro jogador que saiu do campo, sem insultar os adeptos e o árbitro, e os seus colegas de equipa saíram com ele. Sem fitas, sem ameaças, com DIGNIDADE 💙
Eliminarque texto soberbo, Janita! obrigada por partilhar.
ResponderEliminaro racismo é o medo dos ignorantes e a troça dos idiotas. somos paridos de igual e de igual morremos.
Obrigada por ter vindo, Flor!
EliminarNão creio que tenha sido apenas racismo, pois Marega já foi idolatrado, em tempos, quiçá, pelos mesmos que lhe grunhiram.
Beijinho.
Apesar do estilo rebuscado e um pouco cansativo da crónica, compreende-se a mensagem que o autor quer transmitir com a qual concordo. Há insultos e insultos. Embora não devam ser proferidos nunca, no "calor do momento" pode sair um palavrão, uma atitude intempestiva. Atitudes e comportamentos racistas, esses, não podem ser tolerados de forma nenhuma, nem comentários de teor religioso ou sexual, por exemplo. Esses comentários não dignificam quem os proferem. São pessoas de moral e integridade duvidosa.
ResponderEliminarMesmo com os ânimos exaltados porque a bola não entrou na baliza quando devia devido à perícia de um jogador adversário, não nos devemos esquecer que o futebol, em Portugal, é parte ìntrínseca da identidade nacional portuguesa.
Não vejo nem a mais leve sombra de palavras rebuscadas, nesta Crónica, Catarina. A única coisa que FF foi rebuscar, foi ir ao fundo das suas memórias e trazer de novo à luz do presente, nomes de grandes figuras do passado ligadas ao futebol.
EliminarSe achaste a leitura cansativa é porque não absorveste nada do seu sentido. Eu já a li muitas vezes e não me canso.
Na verdade, também se compreende, pois a tua prolongada ausência de Portugal também te distancia das pessoas e dos factos.
No mais que disseste, concordo plenamente contigo! :)
Beijinhos.
Os vários estilos de escrita agradam a uns e desagradam a outros, não sendo os últimos causadores da tal falta de absorção de sentido. É muito subjetivo. :))
EliminarEntre pessoas não há raças
ResponderEliminarsó energúmenos
que desrespeitam direitos inalienáveis
bestas de todas as cores
e até da mesma cor
ainda à solta
Se as pessoas entendessem desses direitos inalienáveis, não agiriam como bestas e sim como Homens, Eufrázio.
EliminarOs que não sabem perder, sem perder as estribeiras, não iam para os Estádios... Faziam como FF sugeriu, com um sentido de oportunidade ímpar, ficavam em casa e, frente ao televisor, lambuzavam-se de impropérios na vã tentativa de esconder evidências...
.
Que horror esse tipo de coisa, Janita! Aqui no Brasil aconteceu coisa semelhante a uns anos atrás, uma menina chamou o esportista (dentro do campo) de macaco. Amiga, essa menina recebeu tantas 'coisas' de todos os lados; passava na televisão em vários canais várias vezes ao dia. Teve de sair de sua casa, mudar-se para não sei onde e se ainda lembro depredaram a casa dela. Da família.
ResponderEliminarO povo não fica mais quieto, bota justiça na hora. Aqui a tolerância está zero para esse tipo de coisa, racismo, corrupção, assédio à mulher, e outras coisas, ninguém aguenta mais. Tolerância zero, sim, para o racismo!
Beijo!
Uma das coisas que nunca compreendi, é a razão que leva os pais a sujeitarem os filhos, menores, ao tumulto do futebol dentro dos Estádios, Tais.
EliminarPor aqui e creio que na história do futebol, nunca antes houve um jogador que se recusasse a continuar em campo após ser vítima de insultos racistas.
Marega teve a coragem de o fazer!
Quem sabe haja, por parte de quem de direito, a aplicação de punição severa para com este tipo de acções.
Mão pesada, tem um efeito dissuasor milagroso!
Beijo!
Também acho, mão leve não é punição, tá faltando para muitas coisas uma mão pesada, isso é, leis severas, proporcional ao dano cometido. E racismo não se admite. E por quê aliviar?
Eliminarbjs
Também abordo o tema hoje.
ResponderEliminarBeijinhos
Já lá estive, Pedro. Li e gostei da sua opinião isenta e justa. Como, aliás, é apanágio da sua forma de ser e estar.
EliminarBeijinhos
Eu, que também não sou mesmo nada de "futebóis", gostei muitíssimo de ler esta crónica de Ferreira Fernandes.
ResponderEliminarObrigada e um beijinho, Janita.
Já somos duas, a juntar a tanta, tanta gente que leu, gostou e partilhou, numa forma de louvor a este senhor da escrita.
EliminarAh, se todos os jornalistas fossem como Ferreira Fernandes...
Um beijinho grande, Maria João.
Há uma declaração atribuída a Einstein que creio ser mais ou menos assim:
ResponderEliminar"há 2 coisas infinitas: o universo e a estupidez humana; porém em relação ao universo ainda não tenho certeza absoluta"!
Não sei se o racismo é o maior exemplo deste pensamento de Einstein, mas é seguramente um dos mais exactos.
Também o texto de FF é muito correcto e esclarecedor em relação à estupidez humana que, por ignorância e/ou maldade, decide que a cor da pele é importante.
Como se os valores morais e educacionais fossem "propriedade" de uma única cor de pele!
Beijos e sorrisos de todas as cores!