É
véspera de Ano Novo, mas a Emma está com uma das suas dores nas costas e não
lhe apetece festejar. Retirou-se para os seus aposentos reais, e está estendida
na tábua que lhe serve de cama. O nosso esquema de coabitação seria um
quebra-cabeças para quem julgasse vir encontrar um ninho de amor convencional.
Há o seu lado da casa e há o meu, exactamente como combinámos no dia em que ela
veio viver comigo: cada um teria a sua soberania, o seu território, o seu
direito à solidão.
E hoje, porque é véspera de Ano Novo, a primeira que passamos juntos,
tenho licença para me estender no chão ao lado dela, de mãos dadas, enquanto
falamos para o tecto e a aparelhagem dela toca em estéreo música de alaúde e o
resto da Inglaterra se diverte à grande.
– Ele de facto é o fim – queixa-se ela
(com um certo humor, lá isso é verdade, mas não o suficiente para esconder o
seu desapontamento), – Quero dizer até
mesmo o Larry sabe quando é o Natal. Podia ao menos ter telefonado.
E eu explico-lhe, e já não é a primeira vez, que o Natal é para ele uma
coisa abominável; que todos os Natais, desde que o conheço, ameaça converter-se
ao islamismo; e que todos os Natais parte numa viagem qualquer, danado, só para
escapar ao horror das celebrações inglesas subcristãs. Mas fico com a sensação
de que ela mal me ouve.
– Seja como for, hoje em dia não há sítio no
mundo de onde não se possa telefonar – diz ela severamente.
A verdade é que o Larry já se tornou no nosso orago, no nosso génio
errante. Já quase nada acontece nas nossas vidas sem que lhe façamos a devida
vénia. Até a nossa última colheita, apesar de só estar bebível daqui a um ano,
é conhecida cá em casa por Château Larry.
– Nós telefonamos-lhe imensas vezes –
queixa-se ela. – Francamente, ao menos
podia mandar dizer que está bem.
Na verdade, quem telefona é ela, embora referi-lo fosse uma ofensa à sua
soberania. Telefona para saber se chegou
bem a casa; para lhe perguntar se não há problema em comprar uvas da África do
Sul actualmente; para lhe lembrar que prometeu ir jantar com o deão, ou
aparecer correctamente vestido e sóbrio na reunião de professores.
– Talvez ele tenha arranjado alguma
namorada – sugiro, muito mais esperançado do que ela
pode imaginar.
– Então porque não nos diz? Ele que a traga,
se tiver de ser…a cabra. Sim, nós não vamos ser contra, não é?
– Muito
pelo contrário.
– Detesto pensar que ele está sozinho.
– No Natal.
– Em qualquer altura. Quando ele sai a
porta, fico sempre com a impressão de que não volta mais. Não sei…parece que
alguma coisa o ameaça…
– Acho que és capaz de descobrir que ele é
ligeiramente menos delicado do que supões
– digo eu, também para o tecto.
Tenho reparado ultimamente que conversamos
melhor sem contacto visual.
Talvez a única maneira possível de
comunicarmos.
–
Atingiu o topo cedo de mais, é esse o
problema do Larry. Brilhante na Universidade, um falhanço na vida real. Houve
dois ou três assim na minha geração. Mas esses são os resistentes, vencedores é
a palavra mais adequada.
Chamem-lhe disfarce, chamem-lhe qualquer coisa pior; nas últimas semanas
não tenho feito mais nada senão ver-me a fazer o papel do Bom Samaritano
sofredor enquanto bem no fundo sou o pior Samaritano do mundo.
Mas Deus hoje fartou-se de aguentar esta minha duplicidade. Mal tinha
acabado de falar quando oiço, não o cantar do galo, mas umas batidas na janela
do rés-do-chão. E tão distintas – tão ao
ritmo da sua música de alaúde – que por um segundo penso se não será uma
torneira a pingar na minha imaginação, até que a mão da Emma se liberta da
minha num repelão, como se eu a tivesse picado, e ela rebola para o outro lado
e se levanta. E, tal como o Larry, não grita, fala. Com ele. Como se fosse o
Larry, e não eu, que estava ali deitado ao lado dela.
– Larry? És tu? Larry?
E, a seguir ao tamborilar, oiço por baixo de nós aquela voz grave e
aveludada que desafia a gravidade e paredes de pedra de um metro de espessura e
consegue dar connosco onde quer que nos tivéssemos escondido. Está claro que
não a ouviu. Não pode ter ouvido. Não pode de maneira nenhuma saber onde
estamos ou até se estamos em casa. É verdade que estão duas luzes acesas ao
fundo das escadas, mas eu faço sempre isso para afastar os ladrões. E o meu Sunbeam está fechado na garagem, longe
da vista.
– Hei, Timbo. Emm. Meus queridos. Baixem a
ponte levadiça. Cheguei. Lembram-se do Larry Pettifer, o grande educador?
Pettifer, o Petomane? Feliz Ano Novo e blá-blá-blá.
Emm é como ele lhe chama. E ela não se
importa. Pelo contrário, começo a desconfiar que ela o usa como troféu.
(Continua)
Boa!
ResponderEliminarGosto de ler antes de dormir, obrigado!
Abraço grande
abraco grande
:) Ler antes de adormecer favorece o sono, Ricardo!
EliminarFazes bem.
Beijinho
Já no outro dia tinha ido espreitar de quem seriam estas personagens. "O nosso jogo" de John Le Carré. Nunca li, mas parece bem interessante... :)
ResponderEliminarBeijocas
O Ricardo também já havia identificado o livro, Teté, mas sabia que tu também o farias. :)
EliminarNa impossibilidade de transcrever o livro, integralmente, estou a seleccionar as passagens principais. Creio que dará para ficarem com uma ideia da densidade da trama! :)
Beijocas, Teté. Obrigada
Muito giro, fico entusiasmada!
ResponderEliminarbjs
:)) Ainda bem, Papoila.
EliminarBeijinhos
No fim acabou tudo bem. Ainda não sei se foram sempre felizes, mas sei que se aceitaram.
ResponderEliminarPois, Luis Coelho...
EliminarOs romances, tal como a vida, por vezes confundem um bocado à primeira vista! :)
"Tenho reparado ultimamente que conversamos melhor sem contacto visual.
ResponderEliminarTalvez a única maneira possível de comunicarmos."
pelo menos esta parte
parece neo-realismo
:))
Parece, não parece, Rogério? Assemelha-se...
EliminarMas, nem tudo o que parece é!! :))
Gostei! Parece ser interessante.
ResponderEliminarAquela parte em que estendidos no chão de mãos dadas, falavam para o tecto e ouviam a aparelhagem, fez-me recuar no tempo.
Um beijinho Janita
Minha querida, amiga, nem imaginas como fiquei contente.
EliminarEssa parte a mim não me disse muito, mas sabes que eu sou um caso à parte! :(
Um grande beijinho amigo, Adélia.
Bela prosa, esta.
ResponderEliminar:)) Obrigada, José!
EliminarBeijinho
tenho que reler o livro para poder acompanhar...
ResponderEliminarbeijo
Ou, através da leitura aqui, possa relembrar as passagens esquecidas, do livro que já leu, Manuel.
EliminarO leitor decide...:)
Beijinhos
Gosto do autor, não conheço o livro.
ResponderEliminarBeijinhos
John Le Carré é um escritor sobejamente conhecido, Pedro. Contudo, este é o segundo livro que leio dele, apenas.
EliminarGostaria de deixar uma ideia o mais compreensível possível, deste romance, para quem ainda o não leu ou para quem gostar de relembrar. Vamos ver se consigo!
Beijinhos.
Gosto da leitura e do estilo de JOHN LE CARRÉ. Fazes-me recordar outros tempos.
ResponderEliminarBeijo
SOL
Este, "O Nosso Jogo", é um romance muito interessante, SOL.
EliminarNão sei é se conseguirei fazer chegar até vós - amigos mais pacientes - todo o interesse que ele me despertou. :)
Beijos e bem-hajas pela visita!