segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Partilhando Leituras #5


    Já uma data de domingos se passaram, mas todos os domingos se tornaram no mesmo. São o dia do Larry, depois o dia do Larry-e-Emma, depois um inferno, o que, apesar das variações, é igualmente sufocante. Mais precisamente, é um amanhecer de segunda-feira e os primeiros alvores cobrem os Mendips.
    O Larry deixou-nos há uma boa meia hora, mas o matraquear da sua caranguejola, com o motor aos traques e estampidos pela rampa do jardim abaixo ainda ressoa nos meus ouvidos, e o seu «Durmam bem, meus queridos», dito numa voz suavemente modulada, é uma ordem a que a minha cabeça  obstinadamente se recusa a obedecer – como aparentemente a Emma também, pois está de pé junto à janela do meu quarto, qual sentinela nua, vendo os castelos de nuvens negras fragmentarem-se e reagruparem-se outra vez contra a aurora incandescente. Nunca em toda a minha vida vi nada tão belo e inatingível como a Emma, com o seu longo cabelo negro pelas costas abaixo, toda nua, contemplando absorta a alvorada.
    - É isto exactamente que eu quero – diz ela, naquele tom tagarela e cheio de entusiasmo de que começo a desconfiar.
- Quero ser partida em pedaços e reconstruida de novo.
    - Foi para isso que vieste para cá, querida – lembro-lhe eu.
    Mas ela já não gosta de partilhar comigo os seus sonhos.
    - O que é que há entre vocês os dois – diz ela.
    - Que dois?
    Ela ignora a minha pergunta. Sabe, como eu também sei, que só existe um parceiro nas nossas vidas.
    - Que tipo de amigos eram vocês? – pergunta.
    - Não eramos namorados se é isso que estás a pensar.
    - Talvez devessem ter sido.
    Por vezes choca-me a sua tolerância.
    - Porquê?
    - Tinham-se libertado dessa tensão. A maior parte dos ingleses que eu conheço que andaram em  colégios particulares teve amores de juventude com outro rapazes. Não tiveste pelo menos uma paixoneta por ele?
    - Lamento mas não. Não tive.
    - Talvez ele tenha tido uma por ti: o cavaleiro resplandecente, seu mestre e seu modelo.
    - Estás a ser sarcástica?
    - Ele diz que o influenciaste muitíssimo. Que foste o seu mentor. Mesmo depois da escola.
    Chama-lhe manha, chama-lhe frenesi de apaixonado: estou frio de gelo. Operacionalmente gelado. Será que o Larry quebrou a omertà*, que o Larry, após vinte anos de pacto secreto, abriu o coração e se confessou à minha namorada?
    - Que mais te disse ele? – Pergunto, com um sorriso.
    - Porquê? Ainda há mais? – Ela está nua, ainda, mas agora a sua nudez já não lhe agrada e vai buscar uma écharpe para se cobrir antes de retomar a vigília.
    - Só queria saber que forma teria tomado agora a minha influência nefasta.
    - Ele não falou em nefasta. És tu que o dizes. – Era agora a sua vez de tentar ser engraçada. – Posso perguntar se estarei a ser apanhada entre vocês dois, não posso? Provavelmente estiveram juntos na prisão. Isso explicaria a razão porque o Tesouro te mandou embora com quarenta e sete anos.

    Tenho de acreditar para bem dela que isto não passa de uma brincadeira; de uma tentativa de fuga a um assunto que ameaça escapar ao seu controlo. Provavelmente está à espera que eu me ria. Mas subitamente o fosso que nos separa torna-se intransponível e ficamos os dois com medo.
    Nunca nos tínhamos sentido tão distantes ou ficado tão conscientemente sem palavras para dizer.

* Código de silêncio imposto pela Mafia aos seus membros  ( N. da T. )


(Continua)



14 comentários:

  1. E a gente vai continuando a ler.
    Beijinhos

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    1. :)) Ok, Pedro! Só e quando lhe apetecer! :)

      Beijinhos

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    1. Certo, Elvira! Sem qualquer tipo de obrigação!:)

      O gozo que me está a proporcionar esta transcrição, é indescritível. Nem imagina!...Ou melhor, deve imaginar, sim!

      Um abraço!


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  3. Nem sei que dizer. Estou sem vontade de ler.

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    1. Luís Coelho,

      Fez-me sorrir francamente satisfeita! É dessa verdade frontal, sem nenhuma hipocrisia, que eu gosto e me anima a andar por cá!
      Fiquei mais contente do que se tivesse dito - sem ser verdade - que tinha lido e gostado muito! :)

      A história vai ficar aqui, apesar do trabalho que me está a dar, quem sabe um dia lhe chega a vontade de ler e lê tudo de fio a pavio, não é verdade?

      Obrigada, Luís, pela honesta frontalidade!

      Um abraço.

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  4. Querida Janita, ler John Le Carré é sempre interessante mas o que quero saber é se estás melhor ?

    Um beijinho

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    1. Querida Amiga Fê.
      Com a ajuda da medicação e o do chá de limão e mel, hoje já me sinto melhor. Ainda tenho tosse e me escorre o pingo do nariz, mas nada que se compare com o mal-estar de ontem.
      Já fui, de tarde, ao escritório. Espero que isto passe sem antibióticos, até porque não tenho febre.
      Devagar vou lá chegar, tanto mais que o meu filho vem cá passar este próximo fim de semana. :)

      E tu? Já estás fina? Espero que sim! :)

      Beijinhos, amiga, e obrigada pelo teu cuidado.

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  5. Querida Janita já estou melhor porque comecei logo a tomar AERIUS para a alergia.
    Agora é a vez do meu marido, é tão invejoso :)

    Um beijinho e as melhoras

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    1. E eu, piorei! Facilitei e pronto. Não tenho paciência para ficar em casa a curar gripes, ou lá o que é isto, como não tenho febre ontem já fui trabalhar e pelo caminho apanhei frio.

      Mas olha, amiga, nem quero dar-me à doença. Por acaso também cá tenho AERIUS, mas não tomei. Tomei no ano passado e guardei o resto.
      Estão agora chegou a vez do teu marido? Pensa no poema do Lobo Antunes que referi lá no teu blog. Prepara-te!

      "Ai, Fernanda, Fernanda, que vou morrer!" Lol

      Beijinhos, continuação de boas melhoras.

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    1. Partes houve em que eu lia e ria, meu Amigo! :)

      Beijinho

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  7. Parece interessante!
    Deu vontade de rir ao ler uma frase, que hoje ouvi dirigida a mim, ou seja: disseram-me que eu estava a ser "sarcástica" :)

    Beijinho Janita

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    1. Eu gostei muito, Amiga Adélia, mas nisto de gostos literários, como em todos os outros, cada qual tem o seu!! :)

      Todos somos sarcásticos, quando calha, e ainda bem.:)

      Beijinhos, Flor.

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