terça-feira, 5 de setembro de 2023

DIGNIDADE E CARÁCTER.

CONTOS DA MONTANHA. 


MARIA LIONÇA

    Com o filho sempre agarrado às saias, como um permanente sinal de que já pagara à vida o seu tributo de mulher, mourejava de sol a sol para manter as courelas fofas e gordas. Depositária do pobre  património do casal, queria mantê-lo intacto e grangeado. Se o outro parceiro desertara, mais uma razão para se manter firme e corajosa ao leme do pequeno barco.

    - Nada,  Maria? - O prior já nem se atrevia a alargar a pergunta.

    - Nada.

    Respondia sem revolta ou renúncia na voz. Objectivava a situação, lealmente. O que sentia por dentro, era o segredo da sua serenidade.

    Até que um dia o Ruivo deu finalmente notícias. Regressava. E Galafura, solidária com a grandeza humana da Maria Lionça, dispôs-se a esquecer todas as ofensas e a receber festivamente a ovelha desgarrada.

    Quem representava esse perdão colectivo e essa saúde da alma da terra era o Pedro, o filho, que ao lado da mãe, na estação de Gouvinhas, deixava a imaginação correr desenfreada pela linha fora até se perder nos últimos degraus da escada fugidia feita de aço.

    Infelizmente, o comboio que surgiu ao longe, avançou e passou junto dele a travar o passo, trazia dentro uma desilusão. O pai pareceu-lhe uma sombra esbatida da imagem recortada que sonhara.

    - Seu moço está mesmo um homem!

    A voz rouca e dolente foi apenas a confirmação duma ruína  que se lhe estampava no rosto esquelético, cor de palha. O Ruivo que ficara em Galafura, na caução de um retrato em corpo inteiro, era a saúde personificada. E o Ruivo que, escanchado sobre a cavalgadura que o conduzia, respirava à sobreposse, só abstractamente se identificava com o original. Talvez para justificar essa desfiguração, culpado diante da mulher, do filho e dos montes eternamente arejados  e limpos da Mantelinha, o renegado confessou tudo. Vinha doente e desenganado. Males ruins... Já lhe custava engolir. E aquela abafação a apertar, a apertar... Mas nada de aflições. Voltava só para morrer.

    No hospital da Vila os doutores ainda lhe fizeram um furo no pescoço para o aliviar do garrote.. Mais uns contos de réis, mas paciência. Galafura, na pessoa da Maria Lionça, se não podia apertar nos braços generosos um corpo comido dos vícios do mundo, queria que ele respirasse ao menos livremente o seu ar puro.

    Um mês depois estava estendido sobre a cama onde noivara, imóvel, muito amarelo, muito seco, já com a alma a dar contas a Deus. E no dia seguinte, pela manhã, a boca do cemitério de Galafura tragava-lhe os ossos descarnados.

    Do rescaldo dessa mortalha singular, saiu mais viva ainda a figura de Maria Lionça. Não o chorou fora dos limites do seu amor atraiçoado, nem se carregou de um luto para além da melancólica negrura que lhe apertava o coração. Manteve-se na justa expressão do sentir de Galafura. Enojada e apiedada ao mesmo tempo. Enterrou-o e começou a pagar os juros da operação.

    O filho, o Pedro, é que não resistiu ao desencanto. Envergonhado de um pai que lhe passara pelos lhos como um fantasma de podridão e sem poder abarcar a grandeza daquela mãe, abalou para Lisboa. E nova via-sacra começou na loja do correio.

    - Não tens nada, Maria.

    Velha, branca, igual, a Lionça voltava pelo mesmo caminho e sentava-se ao lume a fiar. Galafura saudava respeitosamente nela uma permanência que resgatava a traição do marido e a fraqueza do filho. Como à fonte incansável do largo, assim a viam, segura e repousante no seu posto.

    Movediço como a insensatez da sua idade, o filho fizera-se marinheiro. E Galafura, enraizada no dorso da serra, olhava esse rebento mergulhado em água, como um proscrito. Antes o degredo do pai no Brasil, ao menos aproado a um chão que fazia parte da cosmogonia de Galafura. Quando, inesperamente chegou um telegrama da capitania de Leixões e ela partiu é que viram todos como fora capaz, sozinha, de manter indelével a realidade do ausente. Se se metia a caminho, se enfrentava de rosto calmo a primeira viagem distante e o pavor da Cidade, lá teria as suas razões, que eram necessariamente razões de Galafura.

    Tal e qual. No dia seguinte a Aldeia viu com espanto e comoção que trouxera nos braços de sessenta anos o filho morto. Deram-lho no hospital, a exalar o últimos suspiro. Meteu-se então com ele ao colo, já a arrefecer, embrulhado numa manta, a pedir licença a todos, que levava ali uma pessoa muito doente. Arredavam-se logo. E assim conseguiu sentá-lo e sentar-se a seu lado.

    Galafura quase não compreendia como pudera com ele, embora fosse meão e magro. O que é certo é que pudera e sem lágrimas nos olhos lhe falava ternamente mal o revisor aparecia no compartimento.

    - Dói-te, filho? Dói-te muito?  Pois dói...dói...

    Encostava-o ao ombro, enrolava-lhe a manta nas pernas hirtas e mostrava os bilhetes.

    Em Gouvinhas apeou-se. À porta da estação, o guarda arregalou muito os olhos, mas deixou passar. Daí a pouco, no macho do Preguiças, o Pedro subia a serra para dormir o derradeiro sono em Galafura, que era ao mesmo tempo a terra onde nascera e o regaço eterno de sua mãe.

FIM.



 

Nota da autora do blog: 

Permito-me dizer do meu desencanto com os 45 minutos de filme a que acabei de assistir e que, em quase nada faz jus ao belíssimo Conto escrito por Miguel Torga.
Sei que a intenção foi e é boa, já que outros contos se lhe seguirão e eu, não assistirei. A interpretação de todos os actores e da actriz que desempenha o papel de Lionça, não poderia ser melhor. Mas não bastou. Torga merecia melhor. Mais detalhes, mais fidelidade aos pormenores a que o escritor tanta atenção prestava. Não me digam nunca mais que uma imagem vale mais do que mil palavras. A prova de que mil palavras valem muito mais do que um milhão de imagens, está na desilusão - minha, obviamente - que tem representado a adaptação ao Cinema de filmes como "Chocolate", "Crónica de uma Morte Anunciada" e "Amor em Tempos de Cólera". Só para enunciar três, dos muitos que vi .

Obrigada a todos quantos me acompanharam nesta minha 'cruzada', em prol da Maria Lionça de Miguel Torga.

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10 comentários:

  1. A nossa imaginação tem sempre raízes no real, nas experiências de vida.
    Todos nós.
    Beijinhos

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    1. Sem dúvida, Pedro! A imaginação não funciona a partir do nada.
      Se a ficção não se basear em vivências próprias, será no conhecimento de vidas alheias. E Torga conhecia bem como viviam, nos anos quarenta, as gentes transmontanas.
      Beijinhos.

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  2. Bom dia
    Sem grandes diálogos mas com cenas verdadeiramente arrepiantes , confesso que gostei do que vi .
    Acho que vou tentar ver os restantes contos.

    JR

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    1. Bom dia, JR!
      Como pudemos ver no tele-filme, na vida de trabalho desta mulher, não havia lugar para muitas conversas!!
      Veja os restantes contos, sim. Não perderá nada com isso.

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  3. Como estou a seguir uma série na 2 não vi esta estreia.
    Conheço bem o conto e gostaria de ver mas o meu router nega-se a recuar.

    Abraço

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    1. As séries na RTP2 são excelentes. Também acompanho algumas.
      Obrigada pela tua companhia assídua, querida Leo.
      Beijinhos

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  4. Fim? Agora que estava a gostar (mais) do Torga!?
    'Prontes', qualquer dia há mais. Penso eu de que.
    Beijinho, Janita.

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    1. Temos pena, António!!
      Se queres aprofundar o teu 'gosto' por Torga, compra o livro ou vê os tele-filmes que forem passando...
      Beijinhos

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  5. Creio já ter dito (escrito) que além das notícias das 13 e 20 horas e um outro jogo de futebol, pouca mais televisão vejo. Contudo, decidi ver o tele-filme. Gostei assim, assim, embora não tenha apreciado alguns pormenores, nomeadamente de alguns dos cenários exteriores. Apreciei, sim, a interpretação da velha Lionça, (não sei quem é actriz, que merece aplausos). Vou esperar as "cenas dos próximos capítulos".
    Creio que ainda está para vir um filme que supere, ou sequer iguale, a obra em que se baseia.
    Também aplausos para a Janita, cujo Cantinho não tenho frequentado (como, aliás, os demais), pelo trabalho deste conto. do M. Torga.
    Bjis. merecidos

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    1. Que bom meu querido amigo! Quando conseguimos mover alguém, no sentido de seguir os nossos gostos, é sempre uma vitória alcançada, neste mundo de desenganos blogosféricos virtuais, tão iguais à vida real.
      Grata pelo seu apreço e amizade sincera, José.
      Beijinhos com carinho.

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