MARIA LIONÇA.
Continuação:
Em pequenina, logo o seu riso escarolado encheu a Aldeia de lés a lés. Velhos e novos acostumaram-se desde o primeiro instante àquele rosto miúdo e rosado, onde brilhavam dois olhos negros. Depois, durante a meninice e a mocidade, foi ela ainda o ai-Jesus da terra. Qualquer coisa de singular a preservava do monco das constipações, dos remendos mal pregados. Airosa e desenxovalhada, dava o mesmo gosto vê-la a guardar as cabras, a comungar ou a segar erva nos lameiros. E quando, já mulher, se falava pelas cavas nas moças casadoiras do lugar, nenhum rapaz lhe pronunciava o nome sem uma secreta emoção. Além de ser a cachopa mais bonita, dada e alegre da terra, era também a mais assente e respeitada. O seu riso significava tudo menos licença. Ninguém lhe punha um dedo. Embora igual às outras, pela pobreza e pela condição, havia à sua volta um halo de pureza que simbolizava a própria pureza de Galafura.
Quem é que merecia a dádiva de uma riqueza assim? Foi preciso que o Lourenço Ruivo acabasse a militança e voltasse a Galafura com a mão mais apurada para apertar a dela. O padre Jaime, o Prior de então, abençoou-os como se fossem filhos. Galafura, depois do arroz-doce, pôs-se confiada à espera da felicidade futura do casal. Esquecidos das manhas e artimanhas da vida, todos sonhavam para os dois a ventura que não tinham tido. Só o Destino, fiel às misérias do mundo, sabia que fora destinado a Maria Lionça um papel mais significativo.
O polimento do Ruivo, em que a Aldeia pusera tantas esperanças, delira-lhe apenas os calos gerados pelo cabo do enxadão. Não fizera dele o companheiro que a rapariga merecia. Engravatado aos domingos e de costas direitas o resto da semana, ao fim dos nove meses meses sacramentais, quando o Pedro nasceu, gordo, caladão, rosado, em vez de tirar daquela presença ânimo para se atirar às leiras, acobardou-se de uma boca a mais na casa, empenhou-se e partiu para o Brasil.
A Maria Lionça, essa, ficou. Como todas as mulheres da montanha, que no meio do gosto do amor enviuvam com os homens vivos do outro lado do mar, também ela teria de sofrer a mesma separação expiatória, a pagar os juros da passagem anos a fio, numa esperança continuamente renovada e desiludida na loja da Purificação que distribuía o correio com a inconsciente arbitrariedade dum jogador a repartir as cartas de um baralho.
- O teu homem tem-te escrito Maria? - perguntava o Prior de Páscoa a Páscoa.
- Ele não, senhor. Há quinze anos...
Não acrescentava a mínima queixa à resposta. Fiel ao amor jurado, deixava que todos os encantos lhe mirrassem no corpo, numa resignação digna e discreta.
Continua...
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