"O Afogado Mais Formoso do Mundo"
Era verdade! À maioria bastou olhá-lo outra
vez para compreenderem que não podia ter outro nome.
As mais obstinadas, que eram as mais
jovens, mantiveram-se com a ilusão de que, depois de lhe vestirem a roupa,
estendido entre flores e com uns sapatos de polimento, poderia chamar-se
Lautaro. Mas foi uma ilusão vã.
Depois da meia-noite tornaram-se mais finos
os assobios do vento e o mar caiu na modorra da quarta-feira. O silêncio acabou
com as últimas dúvidas: Era Esteban!
Mais tarde, quando lhe taparam a cara com
um lenço, para que a luz não o incomodasse, viram-no tão morto para sempre, tão
parecido com os seus homens, que se lhes abriram as primeiras gretas de
lágrimas no coração. Foi uma das mais jovens a que começou a soluçar, As
outras, encorajando-se entre si, passaram dos suspiros aos lamentos e quanto mais
soluçavam mais desejos sentiam de chorar, porque o afogado se lhes ia tornando
cada vez mais Esteban, até que o choraram tanto que foi o homem mais
desamparado da Terra, o mais manso e o mais diligente, o pobre Esteban.
De tal maneira que, quando os homens
voltaram com a notícia de que o afogado também não era das povoações vizinhas,
elas sentiram um espaço de júbilo, entre as lágrimas.
- Bendito seja Deus – suspiraram – É nosso!
Os homens convenceram-se de que aqueles
espaventos não passavam de frivolidades de mulher. Mas, quanto mais se
apressavam, de mais coisas se lembravam as mulheres para perder o tempo.
Andavam como galinhas assustadas, espiolhando amuletos de mar nos arcazes, umas
estorvando aqui porque queriam pôr ao afogado os escapulários do bom vento,
outras estorvando ali para lhe porem uma pulseira de orientação, e, ao cabo de
tanto tira-te daí mulher, põe-te onde não estorves, olha que quase me fazes
cais sobre o defunto, aos homens subiram-lhes ao fígado as suspicácias e
começaram a resmungar qual seria o objectivo de tanta ferraria de altar-mor
para um forasteiro, que por mais caldeirinhas que levasse com ele iam
mastigá-lo os tubarões.
Uma das mulheres, mortificada por tanta
insensibilidade, tirou então o lenço da cara do cadáver, e também os homens
ficaram sem respiração.
Era Esteban!
Não foi preciso repeti-lo para
que o reconhecessem. Se lhes tivessem dito Sir Walter Raleigh, porventura, até
eles se teriam impressionado com o seu acento de gringo, com o seu papagaio no
ombro, com o seu arcabuz de matar canibais, mas Esteban só podia ser um no
mundo, e ali estava estendido como um sável, sem botins, com uma unhas
cascalhosas que só podiam cortar-se à faca.
Havia tanta verdade na sua maneira
de estar que até os homens mais desconfiados, os que achavam amargas as
minuciosas noites no mar, estremeceram até à medula com a sinceridade de
Esteban.
Foi por isso que lhe fizeram os funerais
mais esplêndidos que podiam conceber-se para um afogado enjeitado.
Largaram-no sem âncora, para que voltasse,
se quisesse e quando o quisesse, e todos retiveram a respiração durante a
fracção de séculos que demorou a queda do corpo até ao abismo.
Não tiveram necessidade de olhar-se uns aos
outros para se aperceberem de que já não estavam completos, nem voltariam a
está-lo jamais. Mas também sabiam que tudo seria diferente a partir desse
momento, porque eles iam pintar as fachadas das casas com cores alegres e
semear flores nos despenhadeiros, para eternizar a memória de Esteban, e que
nos amanheceres dos anos vindouros os passageiros dos grandes navios acordassem
sufocados por um cheiro de jardins no alto-mar.
O Capitão teria de descer do seu castelo de
popa, com o seu astrolábio, a sua estrela polar e a sua fileira de medalhas de
guerra, e, apontando para o promontório de flores no horizonte do Caribe,
dissesse, em catorze idiomas: -
- Olhem para ali, de onde o vento é agora
tão manso que fica a dormir debaixo das camas, ali, onde o Sol brilha tanto que
os girassóis não sabem para que lado girar, sim, ali, é a povoação de Esteban!
FIM
FOTO MINHA |
NOTA: A identidade do afogado, desconhecido, ficou completa, quando, para além de lhe darem um nome próprio, deixou de ser apátrida, sem família, sem terra e sem amigos! Digo eu.
Será que esta história é tão inverosímil quanto, no início, nos pareceu? Nos tempos actuais é caso para pensar...
Obrigada a todos/as, pela paciência e gentileza de ler e comentar.
Abraço meu!!
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Voltei para saber como terminava. Gostei de poder ler o conto e gostei muito da história. Obrigada :)
ResponderEliminarum beijinho
Gábi
Eu é que te agradeço a presença e me congratulo por mostrar um conto que não conhecias, Gábi!
EliminarUm beijinho e o meu obrigada!
Gosto muito de Gabriel Garcia Marquez. Foi excelente ler este conto aqui. A maior ou menor verosimilhança de qualquer história, desde que bem contada, não tem qualquer importância para o prazer da leitura.
ResponderEliminarConcordo, Luísa! Partindo do princípio que todas as histórias são fictícias, o que interessa é a narrativa, que pode ser interessante ou enfastiante! :)
EliminarObrigada, um abraço!
"ali, onde o Sol brilha tanto que os girassóis não sabem para que lado girar"
ResponderEliminar(bonito, isto!)
Humm...esse " bonito isto", faz-me crer que só leu o final, Rogério!! :)
EliminarAbraço e obrigada!!
( sei que textos grandes são uma maçada(?) )
;)
Já conhecia o conto.
ResponderEliminarMas leio e releio Garcia Marquez sem nunca me cansar.
Beijinhos
Mesmo conhecendo, há histórias que sabem bem reler, não é, Pedro?
EliminarObrigada! Beijinhos.
Boa tarde, o conto é belo e cativa, gostei de o ler um afogado enjeitado.
ResponderEliminarAG
Boa tarde, A. Gomes!
EliminarFico contente por ter gostado. Foi bonito o afogado ter deixado de ser enjeitado, não foi?
Um beijo e obrigada!
Não conhecia o conto (o conto não é uma das minhas "especialidades", ainda que concorde com quem me diz que não é literatura menor). E, pergunto eu também, será assim tão inverosímil? Não assistimos, hoje, ao drama dos refugiados e a muitos que os querem acolher?
ResponderEliminarQuase todos os grandes escritores incluem nas suas obras histórias breves: os contos! Quase sempre são editados em colectâneas.
EliminarNão faço questão de ler um grande romance ou policial, de setecentas páginas em detrimento de um conto! Gosto de ler bons autores e isso de literaturas 'menores' só considero os chamados romances de 'cordel'.
Um abraço e obrigada, pela companhia!
Como diz o velho ditado, para agarrar o fio à meada, tive que ler o post anterior que não tinha comentado, gostei de ler o conto de Garcia Marquez de quem já li algumas obras e gosto muito.
ResponderEliminarUm beijinho
Certamente, Adélia! Caso contrário seria o mesmo que começares a ler um livro do meio para a frente! :)
EliminarFico contente por teres gostado de ler este conto do Nobel da Literatura, em 82.
Um beijinho e obrigada!
Gosto muito dele, foi uma bela surpresa este conto.
ResponderEliminarA fotografia está linda.
bjs
Obrigada, Papoila!
EliminarQuem gosta de boa literatura, gosta de GGM. Digo eu, que sou suspeita! :)
Esta foto não me saiu muito mal...:)
Um beijo.
Um texto lindo de um autor que é simplesmente dos meus preferidos!
ResponderEliminarUma boa escolha que me deu muito prazer reler.
Este conto faz parte de um livro composto por sete, escolhi este por ser o mais bizarro e o menos longo!!
EliminarObrigada por teres vindo reler, Manel.
Beijinhos.
Amiga Janita, não conhecia este conto de Garcia Marquez e adorei !!!
ResponderEliminarO que torna este conto fascinante é a forma como um cadáver trazido pelo mar vai sendo transformado no melhor e mais honrado dos homens.
Como ninguém o conheceu, ninguém lhe pode apontar defeitos, logo ele se torna superior a todos "os homens reais", pois destes se conhecem os defeitos, enquanto o morto é idealizado.
Um grande beijinho
Fê
Obrigada pela análise tão perfeita e objectiva, Amiga Fê!
EliminarNo fundo, um desconhecido passou a ser o homem mais nobre, mais honrado e formoso....Por vontade daquelas mulheres!
E a verdade, é que até o vento que elas tanto temiam lhes levasse os filhos, amainou, após o morto ter sido amado e 'baptizado', por elas!
Um beijinho muito grande e amigo, Fê.
Bem-hajas!
Gostei do texto e da flor!
ResponderEliminarAdrian,
EliminarSe gostaste da flor, gostaste da foto!...
Ler isso escrito por um fotógrafo de primeira água, é muito elogioso para uma simples amadora e admiradora da Arte fotográfica! :)
Obrigada, um beijo.
Apenas vim aqui para responder ao teu comentário:
ResponderEliminarJá não acredito que seja um bom prenúncio, Janita, porque afinal apenas desaparaceu "Au revoir!". E a canção que ficou lá, já é muito antiga.
Ainda não li o conto, mas volto aqui para o ler com calma.
Bom fim de semana com muitas alegrias.
Obrigada por teres vindo, Ematejoca.
EliminarPensei que esta canção fosse a imediatamente anterior à "Au Revoir". Tens a certeza que é mais antiga?
Andar pela blogosfera, sem saber de nada, é muito angustiante. Vamos esperar...
Um beijo, obrigada e bom fim de semana.