domingo, 25 de maio de 2014

"O Vagabundo na Esplanada."


A surpresa, de mistura com um indefinido receio e o imediato desejo de mais acautelada perspectiva de observação, levava os transeuntes a afastarem-se de esguelha para os lados do passeio. Pela clareira que se abria, o vagabundo, de mãos nos bolsos das calças, vinha, despreocupadamente, avenida abaixo.

Cerca de cinquenta anos, atarracado, magro, tudo nele era limpo, mas velho e cheio de remendos. Sobre a esburacada camisola interior, o casaco, puído nos cotovelos e demasiado grande, caía-lhe dos ombros em largas pregas, que ondulavam atrás das costas ao ritmo lento da passada. Desfiadas nos joelhos, muito curtas, as calças deixavam à mostra as canelas, nuas, finas de osso e nervo, saídas como duas ripas dos sapatos cambados. Caído para a nuca, copa achatada, aba às ondas, o chapéu semelhava uma auréola alvacenta.

Apesar de tudo isso, o rosto largo e anguloso do homem, de onde uns olhos azuis-claros irradiavam como que um sorriso de luminosa ironia e compreensivo perdão, erguia-se, intacto e distante, numa serena dignidade. Era assim, ao que se via, o seu natural comportamento de caminhar pela cidade.

Alheado, mas condescendente, seguia pelo centro do passeio com a distraída segurança de um milionário que obviamente se está nas tintas para quem passa. Não só por educação mas também pelo simples motivo de ter mais e melhor em que pensar. O que não sucedia aos transeuntes. Os quais, incrédulos ao primeiro relance, se desviavam, oblíquos, da  ambulante causa do seu espanto. E à vista do que lhes parecia um homem livre de sujeições, senhor de si próprio em qualquer circunstância e lugar, logo, por contraste, lhes ocorriam todos os problemas, todos os compadrios, todas as obrigações que os enrodilhavam. E sempre submersos de prepotências, sempre humilhados e sempre a fingir que nada disso lhes acontecia. Num instante, embora se desconhecessem, aliava-os a unânime má vontade contra quem tão vincadamente os afrontava em plena rua. Pronta, a vingança surgia. Falavam dos sapatos cambados, do fato de remendos, do ridículo chapéu. Consolava-os imaginar os frios, as chuvas e as fomes que o homem havia de sofrer. No entanto, alguém disse:

- Devia ser proibido que indivíduos destes andassem pela cidade.

E assim, resmungando, se dispersavam, cada um às suas obrigações, aos seus problemas. Sem dar por tal, o homem seguia adiante. Junto dos Restauradores, a esplanada atraiu-lhe a atenção. De cabeça inclinada para trás, pálpebras baixas, catou pelos bolsos umas tantas moedas, que pôs na palma da mão. Com o dedo esticado, separou-as, contando-as conscienciosamente. Aguardou o sinal de passagem, e saiu da sombra dos prédios para o Sol da tarde quente de Verão.
 
 
 
 
 
A meio da esplanada havia uma mesa livre. Com o à vontade de um frequentador habitual, o homem sentou-se. Após acomodar-se o melhor que o feitio da cadeira de ferro consentia, tirou os pés dos sapatos, espalmou-os contra a frescura do empedrado, sob o toldo. As rugas abriram-lhe no rosto curtido pelas soalheiras um sorriso de bem-estar. Mas o fato e os modos da sua chegada haviam despertado nos ocupantes da esplanada, mulheres e homens, uma turbulência de expressões desaprovadoras. Ao desassossego de semelhante atrevimento sucedera a indignação. Ausente, o homem entregava-se ao prazer de refrescar os pés cansados, quando um inesperado golpe de vento ergueu do chão a folha inteira de um jornal, e enrolou-lha nas canelas. O homem apanhou-a, abriu-a. Estendeu as pernas, cruzou um pé sobre o outro.
Céptico, mas curioso, pôs-se a ler. O facto, de si tão discreto, pareceu constituir a máxima ofensa para os presentes. Franzidos, empertigaram-se, circunvagando os olhos, como se gritassem:
 «Pois, não há um empregado que venha expulsar daqui este tipo!»
 Nas caras, descompostas pelo desorbitado melindre, havia o que quer que fosse de recalcada, hedionda raiva contra o homem mal vestido e tranquilo, que lia o jornal na esplanada.

Um rapaz aproximou-se. Casaco branco, bandeja sob o braço, muito senhor do seu dever. Mas, ao reparar no rosto do homem, tartamudeou:

- Não pode...
E calou-se. O homem olhava-o com atenta benevolência.
- Disse?
- É reservado o direito de admissão - tornou o rapaz, hesitando. - Está além escrito.

Depois de ler o dístico, o homem, com a placidez de quem, por mera distracção, se dispõe a aprender mais um dos confusos costumes da cidade, perguntou:

- Que direito vem a ser esse?

- Bem...- volveu o empregado. - A gerência não admite... Não podem vir aqui certas pessoas.

- E é a mim que vem dizer isso?

O homem estava deveras surpreendido. Encolhendo os ombros, como quem se presta a um sacrifício, deu uma mirada pelas caras dos circunstantes.
O azul-claro dos olhos embaciou-se-lhe.

-Talvez que a gerência tenha razão -concluiu ele, em tom baixo e magoado. - Aqui para nós, também me não parecem lá grande coisa.

O empregado nem podia falar.
Conciliador, já a preparar-se para continuar a leitura do jornal, o homem colocou as moedas sobre a mesa, e pediu, delicadamente:

-Traga-me uma cerveja fresca, se faz favor. E diga à gerência que os deixe ficar. Por mim, não me importo.

Manuel da Fonseca in Tempo de Solidão.
 
Nota: A pedido de Amigos que sentiram a minha falta, voltei. A criança que ficou pelo caminho, não a consegui encontrar. Não onde e como a deixei... Talvez, um dia, mais tarde...
 
                                 BEIJINHOS E BOA SEMANA PARA TODOS.
 

 
 

29 comentários:

  1. Olá, Janita;boa noite!

    E fizeste tu muito bem em ter voltado.Com uma bonita história, carregada de refinada ironia, de alguém bem falante ainda que de fato coçado.Que em tempos idos teria certamente pertencido ao grupo daqueles que agora lhe faziam reparo...quem sabe?

    Beijinhos amigos e boa semana. E que tudo esteja bem contigo.
    Vitor

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    1. Olá, Vitor!

      É sempre com prazer que recebo a tua preciosa companhia. Obrigada, amigo! :)

      Manuel da Fonseca foi um grande romancista que soube retratar a hipócrita sociedade urbana, como ninguém.
      Mais do que bem falante, esta personagem era a de um homem que possuía a grandeza de se mostrar superior com a sua simplicidade condescendente, ante os pobres de espírito, que o olhavam de esguelha!!

      Beijinhos muito amigos e uma boa semana. :)

      Janita

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  2. Ainda bem - o regresso :)
    Gostei muito deste texto. Vou procurar o livro.
    um beijinho, obrigada e uma boa semana também
    Gábi

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    1. Olá, Gábi.

      Eu é que agradeço a bondade da tua visita.

      Sabes que esta é uma edição de 1973, é natural que não o encontres através desta Editora.
      A Editorial Caminho lançou uma edição em 2011, pode ser que o encontres. Vale a pena tentar.

      Um beijinho e tem uma excelente semana.

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  3. Um autor de que muito gosto.
    Escreve com imensa realidade.

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    1. Já somos dois, João!
      Manuel da Fonseca, foi pioneiro do neo-relismo poético português. Um grande contista, infelizmente já desaparecido há mais de 20 anos.

      Beijinhos.

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  4. Beijinhos e votos de boa semana, Janita

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    1. Uma alegria redobrada vê-lo por cá, Pedro!

      Indícios de que tudo está a melhorar. Felizmente!

      Beijinhos, com amizade.

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  5. Agradeço-te teres-me recordado este belo conto de Manuel da Fonseca!

    Abraço

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    1. Olá, Rosa dos Ventos.

      Nos tempos em que leccionaste, deves ter feito, com os teus alunos, a interpretação de alguns dos seus contos e textos.

      Não deixa de ser curioso que em 1940, foi editada uma obra poética sua denominada "Rosa dos Ventos"...:)

      Um abraço grande, Rosinha!

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  6. Passei para ver o teu cantinho e cheirar as rosas amarelas que tens na capa do layout (cor preferida da Capuccino, sabias?)

    Beijo enorme !

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    1. Fizeste muito bem, meu amigo! Já senti por cá a tua falta, sabias? :)

      No meu quintal/jardim, já tive uma roseira cujas rosas eram muito parecidas com essas. Acho que, com o passar do tempo, degeneraram e agora estão de um tom mais rosado. Já fotografei as três rosas que resistiram às recentes chuvadas.

      Amanhã, publico-as e tu vens cá copiar para as levares de presente para a Capuccino. Depois, irei ao vosso blog avisar, ok? :)

      Um beijo enorme, também para ti! :)

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  7. Livro aparece como esgotado nos sites da Wook, Fnac e Bertrand, mas vou tentar ainda casa de pais e pequenas livrarias :)

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    1. Ou até em lojas de alfarrabistas, Gábi!

      Em cima já te falei acerca das editoras e anos de edição do livro.

      Com sorte podes encontrar em qualquer livraria.

      Um beijinho!

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  8. Amiga Janita, nem sabes como fico feliz pelo teu regresso, fizeste-me falta !
    As meninas que um dia fomos decerto seriam grandes amigas :)

    Manuel da Fonseca, foi um dos nossos maiores romancistas. Aqui ele retrata a grande cidade e a solidão que ela integra, a descriminação e o insólito. Excelente escolha.

    beijinho

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    1. Querida Fê, eu sei a falta que sinto quando te ausentas, mas os anos vão passando e o ritmo tem de ser abrandado.
      Sinto que já não tenho a pedalada de outros tempos!:)

      Fico feliz por teres gostado deste conto, mas quem não gosta da escrita neo-relista deste enorme escritor? Logo tu, que dás tanto valor aos escritos que revelam o lado verdadeiro da sociedade com tudo o que ela tem de bom e ruim!

      Beijinhos, amiga! Bem-hajas pelo carinho e apoio.

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  9. Olá JAnita,

    Olha o meu sorriso :)
    Estou feliz, obrigado!

    Agora relativamente ao texto, uma palavra: Atitude!
    Gostei muito

    Abraço grande

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    1. Olá, Argos.

      Estou vendo...:) É desses sorrisos que eu gosto de ver no teu rosto.
      A felicidade é recíproca, meu amigo, não há nada a agradecer!

      Se fosse eu a escolher o título para este conto, seria "Atitude". Sem a mínima dúvida.
      É essa atitude perante a vida que distingue os grandes homens, dos pacóvios que se julgam superiores.
      Mais uma vez vieste de encontro ao meu sentir e isso deixa-me muito feliz.

      Beijinhos e abraços grandes.:)

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    2. Consegues encontrar sim!

      Outro abraço

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    3. Referes-te à criança que ficou pelo caminho?
      De vez em quando aparece e vem brincar comigo ao jogo de esconde-esconde e saltar à corda, mas já não é a mesma que deixei para trás..
      Essa, perdeu-se pelo caminho.:(

      Um beijinho.

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  10. Acho que o Manuel da Fonseca anda um pouco esquecido e, é pena.
    É um mestre na arte de descrever situações, um narrador notável e com uma sensibilidade que nos toca.

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    1. Pois é, Manuel,

      São aqueles escritores e poetas que ficam mais esquecidos, que eu tento dar uma maior relevância. É esse o meu humilde contributo à literatura portuguesa, já que escritora não sou.

      Um abraço.

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  11. Obrigado Janita pelas rosas. Estou sensibilizado pelas mesmas dentro deste contexto. As mesmas foram já colocadas 'en su sitio'.

    Beijinho e até uma próxima !

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    1. Meu amigo, não tens de quê!:)

      Eu só prometo aquilo que posso cumprir e quando prometo cumpro!:)

      Já espreitei o título do vosso novo post e fiquei a saber qual 'es el sitio' que te referes. :) Lá irei com muito gosto.

      Deixaste-me sorridente e feliz; pelo que eu é que vos agradeço.
      A melhor retribuição é a vossa amizade que muito considero.

      Beijinho e até quando queiras.

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  12. É uma história engraçada. Mas muito ingénua. Tenho uma visão bastante diferente do mundo.

    Um dia, ia a descer a rua, e vi, à distância, um vagabundo cabisbaixo a andar na minha direcção. No momento em que me cruzei com ele, ele levanta os olhos e olha para mim. Olho para ele também. Imagino que ele pensou que

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  13. Respostas
    1. Que... Não contei o resto para deixar-te à espera do próximo capítulo. Mas agora acho que tenho que contar a história noutro dia, com outra abordagem. Sorry. :(

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    2. Não te preocupes. Conta, como, quando e por que via achares mais conveniente.. Serei toda ouvidos, ou melhor, olhos!

      Tem uma boa noite!

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  14. Bom dia, podemos afirmar que o texto passe-se no Centro da cidade ?

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