Já uma data de domingos se passaram, mas todos os domingos se tornaram no mesmo. São o dia do Larry, depois o dia do Larry-e-Emma, depois um inferno, o que, apesar das variações, é igualmente sufocante. Mais precisamente, é um amanhecer de segunda-feira e os primeiros alvores cobrem os Mendips.
O Larry deixou-nos há uma boa meia hora,
mas o matraquear da sua caranguejola, com o motor aos traques e estampidos pela
rampa do jardim abaixo ainda ressoa nos meus ouvidos, e o seu «Durmam bem,
meus queridos», dito numa voz suavemente modulada, é uma ordem a que a
minha cabeça obstinadamente se recusa a
obedecer – como aparentemente a Emma também, pois está de pé junto à janela do
meu quarto, qual sentinela nua, vendo os castelos de nuvens negras
fragmentarem-se e reagruparem-se outra vez contra a aurora incandescente. Nunca
em toda a minha vida vi nada tão belo e inatingível como a Emma, com o seu
longo cabelo negro pelas costas abaixo, toda nua, contemplando absorta a
alvorada.
- É isto exactamente que eu quero –
diz ela, naquele tom tagarela e cheio de entusiasmo de que começo a desconfiar.
- Quero ser partida em pedaços e reconstruida de
novo.
- Foi
para isso que vieste para cá, querida – lembro-lhe eu.
Mas ela já não gosta de partilhar comigo os
seus sonhos.
- O que é que há entre vocês os dois –
diz ela.
- Que
dois?
Ela ignora a minha pergunta. Sabe, como eu
também sei, que só existe um parceiro nas nossas vidas.
- Que tipo de amigos eram vocês? –
pergunta.
- Não
eramos namorados se é isso que estás a pensar.
-
Talvez devessem ter sido.
Por vezes choca-me a
sua tolerância.
- Porquê?
- Tinham-se
libertado dessa tensão. A maior parte dos ingleses que eu conheço que andaram
em colégios particulares teve amores de
juventude com outro rapazes. Não tiveste pelo menos uma paixoneta por ele?
-
Lamento mas não. Não tive.
-
Talvez ele tenha tido uma por ti: o cavaleiro resplandecente, seu mestre e seu
modelo.
- Estás
a ser sarcástica?
- Ele
diz que o influenciaste muitíssimo. Que foste o seu mentor. Mesmo depois da
escola.
Chama-lhe manha,
chama-lhe frenesi de apaixonado: estou frio de gelo. Operacionalmente gelado.
Será que o Larry quebrou a omertà*, que o Larry, após vinte anos de
pacto secreto, abriu o coração e se
confessou à minha namorada?
-
Que mais te disse ele? – Pergunto,
com um sorriso.
-
Porquê? Ainda há mais? – Ela
está nua, ainda, mas agora a sua nudez já não lhe agrada e vai buscar uma écharpe para se cobrir antes de retomar
a vigília.
- Só
queria saber que forma teria tomado agora a minha influência nefasta.
- Ele não falou em nefasta. És tu que o
dizes. – Era agora a sua vez de tentar ser engraçada. – Posso perguntar se estarei a ser apanhada
entre vocês dois, não posso? Provavelmente estiveram juntos na prisão. Isso
explicaria a razão porque o Tesouro te mandou embora com quarenta e sete anos.
Tenho de acreditar para bem dela que isto
não passa de uma brincadeira; de uma tentativa de fuga a um assunto que ameaça
escapar ao seu controlo. Provavelmente está à espera que eu me ria. Mas subitamente
o fosso que nos separa torna-se intransponível e ficamos os dois com medo.
Nunca nos tínhamos sentido tão distantes ou
ficado tão conscientemente sem palavras para dizer.
* Código de silêncio imposto pela Mafia aos seus membros ( N. da T. )
(Continua)
E a gente vai continuando a ler.
ResponderEliminarBeijinhos
:)) Ok, Pedro! Só e quando lhe apetecer! :)
EliminarBeijinhos
Já li...
ResponderEliminarUm abraço
Certo, Elvira! Sem qualquer tipo de obrigação!:)
EliminarO gozo que me está a proporcionar esta transcrição, é indescritível. Nem imagina!...Ou melhor, deve imaginar, sim!
Um abraço!
Nem sei que dizer. Estou sem vontade de ler.
ResponderEliminarLuís Coelho,
EliminarFez-me sorrir francamente satisfeita! É dessa verdade frontal, sem nenhuma hipocrisia, que eu gosto e me anima a andar por cá!
Fiquei mais contente do que se tivesse dito - sem ser verdade - que tinha lido e gostado muito! :)
A história vai ficar aqui, apesar do trabalho que me está a dar, quem sabe um dia lhe chega a vontade de ler e lê tudo de fio a pavio, não é verdade?
Obrigada, Luís, pela honesta frontalidade!
Um abraço.
Querida Janita, ler John Le Carré é sempre interessante mas o que quero saber é se estás melhor ?
ResponderEliminarUm beijinho
Fê
Querida Amiga Fê.
EliminarCom a ajuda da medicação e o do chá de limão e mel, hoje já me sinto melhor. Ainda tenho tosse e me escorre o pingo do nariz, mas nada que se compare com o mal-estar de ontem.
Já fui, de tarde, ao escritório. Espero que isto passe sem antibióticos, até porque não tenho febre.
Devagar vou lá chegar, tanto mais que o meu filho vem cá passar este próximo fim de semana. :)
E tu? Já estás fina? Espero que sim! :)
Beijinhos, amiga, e obrigada pelo teu cuidado.
Querida Janita já estou melhor porque comecei logo a tomar AERIUS para a alergia.
ResponderEliminarAgora é a vez do meu marido, é tão invejoso :)
Um beijinho e as melhoras
E eu, piorei! Facilitei e pronto. Não tenho paciência para ficar em casa a curar gripes, ou lá o que é isto, como não tenho febre ontem já fui trabalhar e pelo caminho apanhei frio.
EliminarMas olha, amiga, nem quero dar-me à doença. Por acaso também cá tenho AERIUS, mas não tomei. Tomei no ano passado e guardei o resto.
Estão agora chegou a vez do teu marido? Pensa no poema do Lobo Antunes que referi lá no teu blog. Prepara-te!
"Ai, Fernanda, Fernanda, que vou morrer!" Lol
Beijinhos, continuação de boas melhoras.
lendo e ... sorrindo!
ResponderEliminarbeijo
Partes houve em que eu lia e ria, meu Amigo! :)
EliminarBeijinho
Parece interessante!
ResponderEliminarDeu vontade de rir ao ler uma frase, que hoje ouvi dirigida a mim, ou seja: disseram-me que eu estava a ser "sarcástica" :)
Beijinho Janita
Eu gostei muito, Amiga Adélia, mas nisto de gostos literários, como em todos os outros, cada qual tem o seu!! :)
EliminarTodos somos sarcásticos, quando calha, e ainda bem.:)
Beijinhos, Flor.