quarta-feira, 29 de junho de 2016

«A Complicada Arte de Ver» *

Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca".
Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura.

 "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões - é uma alegria! 
Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Acto banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto.
Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objecto a ser comido, transformou-se em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."

Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementares", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e disse-lhe: 

"Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".

 (...)

*  Crónica escrita por Rubem Alves  (Excerto)

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"Ode à Cebola"

Cebola
Luminosa redoma
pétala a pétala
cresceu a tua formosura
escamas de cristal te acrescentaram
e no segredo da terra escura
se foi arredondando o teu ventre de orvalho.
Sob a terra
foi o milagre
e quando apareceu
o teu rude caule verde
e nasceram as tuas folhas como espadas na horta,
a terra acumulou o seu poderio
mostrando a tua nua transparência,
e como em Afrodite o mar remoto
duplicou a magnólia
levantando os seus seios.
A terra assim te fez
cebola
clara como um planeta
a reluzir,
constelação constante,
redonda rosa de água,
sobre a mesa das gentes pobres.
Generosa
desfazes
o teu globo de frescura
na consumação
fervente da frigideira
e os estilhaços de cristal
no calor inflamado do azeite
transformam-se em frisadas plumas de ouro.
Também recordarei como fecunda
a tua influência, o amor, na salada
e parece que o céu contribui
dando-te fina forma de granizo
a celebrar a tua claridade picada
sobre os hemisférios de um tomate.
Mas ao alcance das mãos do povo
regada com azeite
polvilhada
com um pouco de sal,
matas a fome
do jornaleiro no seu duro caminho.
Estrela dos pobres,
fada madrinha
envolvida em delicado
papel, sais do chão
eterna, intacta, pura
como semente de um astro
e ao cortar-te
a faca na cozinha
sobe a única
lágrima sem pena.
Fizeste-nos chorar sem nos afligir.
Eu tudo o que existe celebrei, cebola
Mas para mim és
mais formosa que uma ave
de penas radiosas
és para os meus olhos
globo celeste, taça de platina
baile imóvel
de nívea anémona
E vive a fragrância da Terra
na tua natureza cristalina.
(Pablo Neruda)

Nota: Ornamentei aquela cebola da foto, na minha mesa de cozinha, sobre o tabuleiro - motivo do meu orgulho, já que foi bordado por mim -, o melhor que pude e soube, de acordo com o poema, mas, por mais que olhe para ela, não consigo ver a tal 'Rosa de Água Com  Escamas de Cristal; a Taça de Platina, o Globo Celeste' ...
...Ah, como é difícil e complicada a Arte de Ver  com olhos de Poeta...Apenas consigo sentir, isso sim, a forte fragrância, que me enche os olhos de água...sem dor nem sofrimento!
E vós? O que vêem os vossos olhos? Quiçá, uma magnólia de seios erguidos?  Digam-me, por favor, o que os vosso olhar poético consegue vislumbrar, para além da simples, crua e nua aparência.
Sei, que há grandes poetas pela vizinhança. Aguardo a vossa colaboração!

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24 comentários:

  1. Eu olho para uma cebola, como olho para qualquer outra coisa, desde uma simples célula ao microscópio até ao número incontável de estrelas no céu, numero maior que todos os grão de areia de todas as praias, e vejo a unicidade e a certeza de que tudo o que existe é feito do pó de estrelas...

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    1. Muito bonito isto que escreveste, Gil.
      Já eu não olho para uma cebola ou um tomate, com o mesmo olhar com que admiro o firmamento replecto de estrelas nem para a imensidão do mar, imaginando o mundo infinito de seres vivos que nele habita.
      Mas tens razão! O teu olhar é diferente do meu, porque tens olhar de Poeta, que em tudo vê a magia do pó de estrelas.

      Também os Xutos vêem 'Pó das Estrelas', em tudo, como tu:

      E eu segui o pó das estrelas
      Com que te tinham fadado
      Procurei por toda a parte
      Não estavas em nenhum lado

      Já esgotado e todo roto
      Acabei por desmaiar
      Não sei se tu me amparaste
      Se fui eu que te encontrei

      E na cama o pó das estrelas
      Com que te tinham fadado
      Estava por toda a parte
      E tu dormias a meu lado

      Obrigada, Gil!

      :)

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    2. Janita,

      Eu não sou poeta! Mas conheço alguns...

      :)

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    3. Imagino que sim.
      Tu próprio, enquanto letrista das tuas canções, também tens agarrada a ti, essa essência poética...

      :)

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  2. ADOREI a "Ode à Cebola", Janita!

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    1. Que bom, Teresa!

      O poema é uma das Odes Elementares que constam no livro de Neruda.
      Só mesmo um grande Poeta, conseguiria ver tanta beleza numa simples cebola.:)

      Um beijinho, Teresa.

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  3. Um belíssimo, perfeito e completo post de uma coisa "tão banal" como uma cebola, Janita ! :)
    É lindo e estranho, conseguir poesia duma simples cebola !
    Tal como tu, tenho muita dificuldade em vê-la, até porque "me faz chorar", mas até a entendo !:))
    O meu filho, por ex. adora a cozinha !!! Adora apreciar os produtos com que vai cozinhar ! ... Creio que possa ver essa tal poesia naquelas coisas que lhe passam pelas mão ! ... Eu não ! :))

    Esperemos por outros poetas ! rsrs

    Beijinhos bem cosinhados ! :)

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    1. Acho que a grandeza de um Escritor se revela quando escreve sobre as coisas mais simples e banais, Rui! Não concordas?

      Hoje, a cozinha gourmet ou haute cuisine, sei lá, já é considerada como uma forma de Arte, mas ver numa cebola picada a fina forma de granizo na mais pura claridade, Amigo Rui, é preciso mesmo ser uma alma superiormente dotada!
      Eu, vejo numa cebola, uma cebola e mais nada...:)

      Beijinhos! :))

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  4. Ora vejam lá, uma ode à cebola! A sua cebola, Janita, (e desculpar-me-á) tem um lindo cenário, mas não é a cebola da ode: tem que ser totalmente despida da capa que a protege para que possa ser bem apreciada e depois degustada (de preferência crua, como veio ao mundo) com uma pitada de sal, que só o sal lhe dá "aquele" toque...
    Dir-lhe hei que em miúdo apreciava cebolinhas pequenas, cortadas em quartos e polvilhadas de sal grosso; depois, bebia água, que álcool ainda só conhecia de vista.
    Mas onde raio foi buscar a ideia da cebola?

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    1. Veja só, Amigo José! Ao que isto da poesia chegou!

      Acho que me preocupei demais com o cenário e descurei o guarda-roupa. Ou melhor, a falta dele.
      Se fosse agora, não só desnudaria a cebola, como a cortaria em finas rodelas de prata e orvalho.
      Isso é que era!

      Não gosto do sabor de cebola crua, mas quando quero fazer uma salada a preceito, como a de pimentos assados, deixo a dita de molho em água fria, durante uma horas, quantas mais, melhor, cortada em rodelas e temperada com sal grosso e vinagre.
      Na hora de ir para a mesa escorre-se e está macia e apetitosa, de comer e chorar por mais.
      Sabia, desta receita? Diga aí em casa para a fazer. Vai gostar.
      Ah, a ideia da cebola é uma ideia minha, homessa!! :-)

      Beijinhos!!

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  5. Acho que a cebola fez-me cometer alguns erros ortográficos, vou comentar de novo :)

    Querida Janita, a partir de hoje nunca mais olho para uma cebola da mesma maneira :)
    Fazer poesia de algo aparentemente tão banal acho que é mesmo só para POETAS!
    Eu que só faço tentativas teria e tenho alguma dificuldade ;)
    Mas vou pensar, e se descobrir nela uma ave linda de penas azuis, é porque posso ascender a ser poeta... um dia :D

    Gostei do teu tabuleiro bordado rss
    Um beijinho

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    1. Tu, Amiga Fê, é que podes tecer loas a qualquer ingrediente culinário, por mais vulgar que seja.
      Também tens olhar de Poeta e vês o invisível. Ver um lindo pássaro azul, numa cebola ou numa cabeça de alhos, para ti não é problema.
      Eu, como já disse, vejo o que vejo. A não ser se o que vir me fizer vibrar, o que não aconteceu com essa cebola. Nem pouco mais ou menos!
      Além deste tabuleiro tenho mais 'tralha' desta. Tempos em que eu pensava que iria ficar sempre jovem, e foi dessa forma que estraguei a vista.
      Agora, continuo a estragá-la, a ler e teclar no computer. Fases!

      Beijinhos, Fê!!

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  6. Só mesmo um grande poeta. Gostei de "Ode à Cebola" não conhecia. E sinceramente eu só vejo uma cebola sobre um bonito tabuleiro!
    Tenho 2 também bordados por mim, em Maio acabei de fazer um para oferecer a uma amiga que adorou os meus que por acaso não uso.

    Beijinho janita

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    1. Podes crer, Adélia!
      Não é só o que se vê, é saber descreve-lo com palavras magníficas e deslumbrantes.
      Não é Poeta quem quer, e sim quem nasceu com a poesia na Alma.
      Os meus herdeiros todos falam nos quadros que bordei. Para não haver disputas ando a pensar doá-los ainda em vida. :)
      Uma amiga da minha filha, quando casou e eu lhe perguntei o que gostaria que lhe oferecesse, foi peremptória na resposta. "Gostaria muito que me bordasse um quadro igual a esse seu" E eu, assim fiz.
      Fiz, não faço mais...

      Beijinho, Flor de jasmim.

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  7. Como estou com sono para tentar sequer iludir-me que poderia escrever um poema, vou é ver antes o que escreveram comentadores que antecedem :)

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    1. :)) Sempre a pensar em enigmas, querida Gábi!!
      Aqui, poderias apenas escrever uma frase poética em que reverenciasses a cebola. Mas deixa lá, que o Neruda já a elogiou q.b.
      :)

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  8. Quem diria que se poderia escrever assim sobre uma cebola :)
    Gostei.
    um beijinho
    Gábi

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    1. Eu também gostei, mas para ser sincera, ainda não me refiz da surpresa, Gábi!

      Beijinhos! :)

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  9. Regresso aqui para dizer que agradeço a receita mas estou a milhas de querer ser chef.
    Um abraço, ao largo, que cheiro a cebola crua (ah!, também gosto de alho cru), veja lá.

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    1. Credo! Tanto azedume...porquê?

      Eu também não sou Chefe de coisa nenhuma nem Chef de cozinha, sequer, e, mesmo assim, gosto de inventar receitas e experimentá-las.
      Se resultarem, muito bem se não, não volto a repetir.

      Quanto ao abraço, não precisa ser ao largo, mas deve convir que o cheiro a cebolas e alho...bem, como dizer; não é dos odores mais agradáveis...:)
      Não como alho cru, porque me faz azia. Não tenho culpa! :(

      Beijinhos.

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  10. Lá tenho que regressar aos comentários. Onde raio é que descobriu azedume? Já não se pode gostar de cebola e/ou alho?
    Um abraço, não tão afastado...

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    1. Ehehehehe, agora fez-me rir!

      Venha de lá esse abraço, então!...

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  11. Sabes?
    Hoje mudei a pilha ao relógio

    chego a todos os lugares
    fora de tempo e a más horas

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    1. Eu, até já lhe tinha marcado falta, Rogério!

      Ai, ese reloj qué no marca las horas...

      Nunca é tarde, meu Amigo. Para si, qualquer hora é hora de chegar. É sempre muito bem-vindo!

      :) Um abraço, atempado.

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