sexta-feira, 27 de outubro de 2017

A PROPÓSITO...


BAQUE


   Parece que tenho o dever de decifrar e não mereço, por meu lado, ser entendido. Ninguém é obrigado a compreender-me a mim. Arrasto o encargo da indagação. Não é extinguível, nem comunicável, nem transmissível.
      No Luxemburgo, eu ia penando num estágio qualquer, e o marido de Madalena, emigrante de sucesso e negociante de vinhos, fartava-se de viajar, em boa hora, por Franças e Araganças.
      A recordação que me ficou mais viva, e ainda ressoa, foi aquele sobressalto, seguido de safanão: «Tire daí os dedos!». Atropelo, rudeza, pua de ferrugem a farpear em leito de rosas. Livra! Mas, então? Elucidou que sentia as minhas meiguices de mão, o meu dedilhar curioso, como a incomodidade bruta de um corpo estranho entre as pernas. Um corpo estranho? Ora! Deixasse-se disso. E seguiu-se um monumental desajeito de gestos e de posições. Se a dialéctica dos corpos, até então, não era perfeita, muito pior passou a ser. As frases e os protestos mútuos também não acertaram em termos satisfatórios.
      Orgulhava-se Madalena dos vistosos cabelos pretos, uma lisura espessa, longa, toque sedoso, a contrastar com a pele sardenta e áspera. Jazia comigo, numa imobilidade de preguiça, os redondos olhos negros parados no infinito, uma docilidade feita de inacção, espera e paciência. Como se os dedos – os dela; não vi, mas adivinhei – lhe tamborilassem no lençol, enquanto eu demorava a desunir-me. Parecia-lhe, porventura, que eu me demorava no tempo, que empatava.
      Noutra tentativa, num dos dias seguintes, quase não parou de conversar. E eu tolerei que ela tivesse sempre a boca desimpedida. O ponto era consabido: que, apesar «daquilo» não pensasse eu que…
   Alguma ingenuidade de mulher madura permitia-lhe aceitar todas as tranquilizações e garantias que eu outorgasse, enquanto procurava – mal- empregado – dar-lhe o melhor do meu esforço.
      Ela tinha assuntos do marido a tratar. Aturei filas de espera molengas, preenchimentos de formulários, leituras de regulamentos em bancos nevoentos de parques públicos, porque a minha amiga Madalena entendia que um relacionamento amoroso implicava contrapartidas de solidariedade burocrática. Padecer em conjunto. Desdenhar do mundo, ombro com ombro, coxa com coxa. E papéis debaixo do braço.
      A parte mais amena do empreendimento implicava sessões de cinema, de chatíssima e inábeis coisadas, extravagâncias a simular profundeza, com ressoos de Nouvelle Vague. A minha mão procurava a dela, por desfastio, relembrando as praxes de adolescente: «Esteja quieto», sussurrava-me. «Deixe-me ver o filme».

      Não há duas sem três, nem três sem quatro. Por duas vezes, encontrando-se ela em Lisboa, tentei reincidir para alterar. Ainda estou para saber como é que me deixei embrulhar em tanta complicação miudinha. No hotel não podia ser, que a reserva estava em nome do marido. Mesmo que não se soubesse, havia sempre aquele sentimento de traição, de se estar a aproveitar de uma assinatura, duma conta, que não a deixava à vontade.
       Telefonando, eu tinha acesso à garçonnière de um amigo. A minha própria casa pululava de presenças, três idosos e enfermeiras, de forma que muito agradecia aquele derivativo. Era um pequeno estúdio, numa cave, com um desengonço de cama e trastes em quinta mão, onde sobremaneira importava garantir a horizontalidade, não obstante rangessem e estalassem madeirames e fechos.
      Saiu Madalena do carro, intrigada, no jardim. Desceu um lance de escadas de malgrado, a olhar-me, desconfiada. Examinou-me, sobranceira, à porta, cirandou os olhos em volta do quarto e acabou por se sentar na única cadeira que ali sobrevivia, desarticulada, destinada a roupas atiradas. Ora pernas cruzadas, ora joelhos unidos, mãos sobre eles, em pose defendente, como se alguém pretendesse arrostar, o que era o caso.
      «Não!» Negativa breve e peremptória. O que eu conheço de todas as letras, todas as redondezas, todos os ínfimos recônditos desta maldita imprecação. Mas sou, desafortunadamente, compilador compulsivo e repleto.
      Afundava-me, sentado na borda da cama, e ia desistindo de justificar a indigência de tudo aquilo, as chitas ou lá o que era, os quadros de meio tostão ainda encostados à parede ( menino lacrimoso, pesca portuguesa, ou coisas assim ), a janela de vidros foscos, que parecia dar para um saguão.
      Ela explicava-me vivamente, muito digna, com os recônditos bem defendidos e segurança de voz, a transcendência dos relacionamentos. Que poderia eu fazer se não abdicar? Não sou de violações. Nem sei.
      Fui depô-la na portaria do hotel. Se calhar até pedi desculpa. Andor. Até sempre.
     
  
NOTA: Como já deu para perceber, este é mais um conto da autoria de Mário de Carvalho. Não vos inquieteis com a extensão do texto. Se não tiverem tempo para o ler, de uma assentada, vão lendo aos poucos...Depois, digam-me o que  acharam desta personagem feminina.  

  Obrigada a TODOS com votos de:

Feliz Fim-de-Semana


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25 comentários:

  1. Uma mulher resoluta e de forte personalidade.
    Beijos, bfds

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    1. Acha, Pedro? OK!
      No final darei a minha opinião, para não influenciar a dos meus estimados leitores. :)

      Beijinhos, Bom FDS.

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  2. Terei que ler com mais atencao depois de beber o meu cha... Um texto demasiado longo para ler ainda de madrugada... : )))

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    1. Catarina...ainda de madrugada e já estás a tomar o teu chá das cinco?... :))) Marota!!
      Mas, há tempo...
      Isto só daqui sai quando tiver plateia que justifique a trabalheira que tive para transcrever isto tudo. Lol

      Beijinhos

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  3. Curiosamente eu sou rigorosamente contrário à opinião do Pedro !
    Uma mulher sensaborona, irritante, sem interesse e sem personalidade ! ... De outro modo ficaria no "seu cantinho" e não andaria a "fazer que faria" ! :(

    Lá está mais um exemplo : "para dançar o tango, são precisos dois !

    "Que poderia eu fazer se não abdicar? Não sou de violações. Nem sei."
    "Fui depô-la na portaria do hotel. Se calhar até pedi desculpa. Andor. Até sempre."
    .... Eu no lugar dele faria o mesmo !... Andor !!! :(

    Beijinhos Janita :))

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    1. OK, Amigo Rui.
      Está formulada a tua opinião, quem sabe encontres ainda mais seguidores...:))
      Como disse ao Pedro, no final direi o que penso. Com todo o respeito pela opinião de cada um, obviamente!

      Beijinhos! :)

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  4. Não sei...
    É um nim. Mas se calhar a culpa nem será da história ou da mulher, mas sim da forma como o escritor escreveu. Não fiquei rendido à prosa.

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    1. Olá, Remus!
      Um nim parece-me bem! :) Mas, no final, direi mais. :)
      Aliás, como sabe melhor do que ninguém:

      "Cada cabeça sua sentença"!! ;)))

      Beijinhos.

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  5. Eu diria que não é tao fácil como contam, sair de casa e por os ditos na parte superior do cônjuge ! Sempre há voltas a dar, contar os vizinhos, arranjar estratégias, fugir dos remorsos, que trabalheira ! Parece que nos dias de hoje, pelos menos pela janela televisiva, a coisa passa como na caixa de um supermercado, com o engate menos complicado !!!

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    1. Livra! Uma trabalheira, Ângela!! :)

      Nada como levar uma vida simples...:)


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  6. Uma mulher igual a tantas outras, eu acho!! Espero pelo fim :)

    Beijinhos Janita bom fim de semana.

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    1. Mena, o conto terminou assim: tal como o transcrevi, não há mais nada a acrescentar da parte do autor.
      Antes de mudar o post, eu é que tentarei fazer uma 'análise' a esta personagem, se o conseguir, claro está! :)

      Beijinhos.

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  7. Uma ou mais facadas no matrimónio, vá lá, mas com o mínimo de decência "decorativa" que não num estúdio manhoso, com a cama a ranger e a desfazer-se.
    bji e bfs

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    1. Parece que seria essa a ideia da senhora...Lol

      Beijinhos

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  8. Em texto curto, o (meu amigo) Mário não perde pela demora e define-a a dado passo

    «Ora pernas cruzadas, ora joelhos unidos, mãos sobre eles, em pose defendente, como se alguém pretendesse arrostar»

    Está dito

    Ah, Madalena é um nome bonito..
    diria mesmo sensual... e até bíblico

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    1. E acrescentou...«e era o caso», Rogério!

      Está (contra)dito!! :)

      Nome bonito e bíblico, diz bem!

      "Quem foi que não pecou, ó Madalena"?

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  9. Li duma assentada, talvez por isso ainda não tenho opinião formulada.
    Volto de novo para analisar com calma a personagem.

    Bom fim de semana

    Beijinhos Janita

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    1. Minha querida, o pedido que faço não envolve nenhum tipo de pressão e muito menos obrigatoriedade. Era o que mais vos faltava, não era? Vir ler e, ainda por cima, analisar o comportamento da personagem de um conto, que envolve um fulano que não tinha pejo em se envolver com mulheres casadas...com tanta mulher livre por esse mundo fora. :))

      Beijinhos, Manu!

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  10. Como sabes, já li o livro todo e gostei imenso. E tu, gostaste? Parece que sim - para te teres dado ao trabalho de transcrever um dos contos para aqui, é porque gostaste.

    Beijinho.

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    1. Foi através da publicação que fizeste sobre este livro, que não descansei enquanto o não recebi e iniciei a sua leitura, Graça.
      Sobre a pergunta que me fazes, basta que cliques nas etiquetas, no nome do escritor, e obterás a resposta.

      Uma vez mais se confirma que, não existe nada que o tempo não cure, assim, tão cedo termine a leitura do livro que tenho entre mãos: "A Amiga Genial", darei continuidade à leitura dos cinco contos que me ficaram por ler, devido ao choque que me provocou o décimo primeiro conto.
      Coisas minhas, que não se vêem em mais ninguém...sou um caso perdido em matéria de coerência...Fazer o quê? :)

      Beijinhos Graça e obrigada!

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  11. Querida Janitamiga

    Não comento, apenas conto

    MUDANÇA DA HORA

    Puerto. Paragem de autocarro. Dois rapazes, uma velhota e uma boazona quiçá sua neta

    Ó Bictor ando mesmo com essa merda da mudansa da hora!?!?!?

    Benceslau - è facílimo: duas na noba, uma na belha...

    Belha

    - E três na puta da tua mãe!!!!

    Bjs da Raquel e qjs do Henrique, o Leão

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    1. C'um canudo, HenriquAmigo...

      A senhora belhinha se calhar
      oubia mal, tadinha! ehehehe

      As coisas que bais imbentar, balha-te Deus!

      Já acertaste os relógios? Eu não!!

      Dá aí um beijinho na tua Raquel, essa grande Senhora,
      pra ti bai aquele abraço com voto de saúde da boa!

      :)

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  12. A personagem feminina? Talvez fosse bela, atraente, habituada a que o mundo lhe caísse aos pés. Fora educada, contudo, nas amarras dos valores judaico-cristãos, em que o sentimento de culpa é preponderante. Muitas promessas deve ter cumprido, por sentimentos impuros... :)

    Abraço, Janita :)

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    1. Ficar-nos-á sempre a incerteza, pois este é um livro em que o autor se mete na pele de um conquistador, que tudo o que caía na sua rede, marchava!
      Mas vá lá, tinha a qualidade de saber aceitar o que lhe era permitido aceder. Nunca forçou nada. :) Muita coisa fica nas entrelinhas...
      Esta sra. dizia que «Não» mas outras disseram «Sim» e eram elas que procuravam.
      É um livro escrito sem falsos pudores, porém, numa linguagem que não choca nem fere os mais sensíveis.

      Um abraço e obrigada, A.C. :)

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  13. Meus Amigos,
    Cumprindo a palavra que dei, de me manifestar quando expirasse o prazo de validade deste post, e tendo já o seguinte pronto a sair do forno, depois de tantas e tão variadas opiniões irei 'falar' pela boca do editor, que afirma na contracapa do livro, o seguinte:

    «Este é um livro de ficção sobre sexo. Todas as histórias nele contidas narram percalços, espantos e sobressaltos entre homens e mulheres. O que se desvenda, o que se oculta. Rasgos perversos. Permanências e rupturas. Nem sempre se encontra o que se espera, nem se espera o que se encontra»

    Grata pela vossa disponibilidade, para ler e comentar, deixo um abraço para TODOS.

    Janita

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