domingo, 22 de janeiro de 2017

O Revisor de Livros Sobe a Calçada.



Sobe a rua e pensa nos netos, o Francisco e o Manuel. Sorri de pequena felicidade e não deixa de caminhar. Um pouco ofegante, agora; mas tenciona parar, um pouco mais acima, na barbearia do Cosme, com quem gosta de conversar de livros e de cultura. O Cosme é um barbeiro antigo e culto, dos quase desaparecidos, barba e cabelo impecavelmente feitos. Conhecem-se desde tempos quase imemoriais, quando havia polícia política, prisões cheias de recalcitrantes e pessoas desavindas em turbilhão. Às vezes, ele pensa: os antigos estão a desaparecer, de velhos e de doenças, é assim. Ele continua a ler. De preferência Emile Zola e os portugueses Ferreira de Castro e Alves Redol. Conheceu os dois, e chegou a rever provas de tipografia de textos de ambos. Nessa altura, a mulher ajudava-o, mas ela morrera de doença súbita, e ele ficara só, desorientado e sem saber como prosseguir. Mas prosseguiu com ardor e mais afã. O trabalho ocultava um pouco a dor de se sentir só. Os filhos, três, tinham a sua vida, e mais que fazer do que aturar um velho agarrado à sua solidão e à sua velhice.
     Há três semanas começou a sentir dificuldade em caminhar. Pensou que era uma dificuldade momentânea. Disse ao Cosme, e o Cosme sorriu, benevolente e atencioso. “Estás velho. Estamos velhos. Eu também sinto dificuldades em andar, mas que posso fazer?”
     Mais um pouco e lá chegaria. Ofegante e com as pernas doentes e dolentes, lá chegou. Os velhos chegam sempre é preciso é querer chegar. Um dia destes vai escrever uma história de velhos que nunca chegam ao destino, mas que persistem. O Cosme está à porta da barbearia. Esperava pelo amigo e assistira à sua caminhada dificultosa. Agora iam beber um café ou uma cerveja, tanto faz.
     Agora sente que envelheceu. Melhor, que está a envelhecer. Esquece-se de muita coisa e, sobretudo, de títulos de livros e do rosto de muita gente. Esquecer é um modo de matar ou de estar morto. A vida. Aprendeu que a vida é também isto. E sorri.


Crónica de Baptista-Bastos, que li recentemente e me disse muito. Tudo o que aqui está transcrito veio de encontro aquilo que me tem ocupado o pensamento de há um tempo a esta parte. A vida é também isto...e sorrio.

=======================================


20 comentários:

  1. O que importa mesmo e "sorrir de pequena felicidade". :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Tão enternecedora essa expressão, não é, Luísa?
      A felicidade é mesmo feita de pequenas coisas, como a lembrança de netos. :)

      Beijinhos, boa semana.

      Eliminar
  2. A sabedoria da idade.
    Um abraço e uma boa semana

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. ...que, agora, poucos jovens respeitam, Elvira.

      ( já para não pretender ser exagerada e dizer, nenhuns. )

      Abraço, boa semana.

      Eliminar
  3. Voltei só para dizer que adorei o novo look do blogue.
    Abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito obrigada, Elvira!
      A minha amiga é de uma incansável gentileza, que me adoça o coração.

      Outro abraço.

      Eliminar
  4. Sempre muito atento à vida, o meu amigo BB
    Peço desculpa, Janita, mas ainda não vi os postais que me envmanaiou. Não consigo abrir o mail. Pode enviar-me para o meu mail pessoal? Obrigado. Boa semana

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Gosto imenso de ler as crónicas de Baptista Bastos, Carlos.
      Esta, li-a numa revista que certa Instituição mutualista/ parabancária, costuma enviar aos sócios.

      Os postais já os enviei ontem, Carlos. Lamento não ter possibilidade de os digitalizar, como lhe explico no mail.
      Obrigada, eu. Boa semana.
      Um abraço.

      Eliminar
  5. A alternativa a envelhecer não é nada agradável.
    Gosto muito de andar por cá.
    Beijinhos, boa semana

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Claro, Pedro! A alternativa, embora a tenhamos como certa, quanto mais tarde, melhor. Contudo, há velhice e velhice.
      A solidão é o pior tormento que afecta as pessoas de idade que ficam sozinhas. Seja qual for o motivo.
      Beijinhos, boa semana.

      Eliminar
  6. Antes do post, chamou-me a atenção o quereres ter a Roménia pela frente ! O Palácio Real e a Ponte das Correntes ... Saudades ?... :))

    Quanto aos barbeiros do antigamente, bons tempos em que por lá se falava de tudo. Hoje ou é futebol, ou é política ! :((

    Beijinhos

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Rui, esta foto foi-me enviada por mail pelo meu Luís, quando se encontrava a trabalhar em Budapeste, na Hungria.
      Na altura, até fiz um post pela alusão que ele fez à união de Buda e Peste, associando esta soberba imagem, vista do quarto de hotel em que ele se encontrava, com o Porto e Gaia.
      Acho que confundiste Bucareste com Budapeste, e Roménia com Hungria, não seria?
      Já a tive aqui durante um tempo. Agora voltou à ribalta com o nome do blogue! :)

      Acho que para além do tema da velhice, Baptista-Bastos pretendeu também, aludir às amizades que se faziam, antigamente, e ainda se farão, nas barbearias. Os temas das conversas é que mudaram. :)

      Beijinhos.

      Eliminar
    2. Claro que tens razão, Janita. Confusão ocasional, minha.
      Trata-se de Budapeste, Hungria, claro e não Roménia ! :(
      Bjs

      Eliminar
  7. Aprecio Baptista Bastos.
    Boa semana, Janita.
    Beijinhos

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Já somos muitos a apreciar o BB, António. Porque ele merece! :)
      Beijinho e boa semana, amigo.

      Eliminar
  8. Nem sempre concordando com o teor, aprecio a escrita do BB, que trata a língua como poucos.
    Quanto à velhice, vamos andando e vendo e pouco a fazer.
    Bji.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. É isso mesmo, José. Podemos nem sempre concordar com a forma como ele encara determinados temas, mas a qualidade da sua escrita é inegável.
      Pois, a velhice que vá esperando por nós, né? :))
      Beijinho, boa semana.

      Eliminar
  9. Todos caminhamos cada dia mais devagar sendo a pressa de chegar cada dia menor.
    O tempo tem outra dimensão, ou pelo menos parece ter!
    Beijokas!

    §-importante é ter vontade de continuar sorrindo, né?

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sorrir é essencial, meu querido amigo! :)
      Só assim conseguiremos percorrer, de cabeça erguida, o caminho que nos resta...

      Beijinhos.

      Eliminar
  10. Gostei muito! Como gosto de quase todas as crónicas dele, dele como pessoa é que nem por isso... ;)

    Beijocas

    ResponderEliminar