quarta-feira, 4 de março de 2020

TRAÇANDO PERFIS IMAGINÁRIOS. [1]



Aquele homem ainda jovem, de aparência algo descuidada, mas limpa, que amiúde via sentado num banco do Largo do Jardim, e eu observava através da larga janela da farmácia enquanto aguardava a minha vez, foi-me povoando a mente de conjecturas, durante as longas noites de insónia, naquele Inverno não muito distante. 

Quem seria? De onde teria vindo? Que motivos o teriam levado a alhear-se de tudo o que o rodeava, murmurando palavras sem som que apenas ele ouvia, ou talvez nem isso?

Um dia, talvez movido pela força do meu insistente olhar, o homem levantou a cabeça e cruzou o seu olhar com o meu. Durante segundos, que me pareceram uma eternidade, fiquei como que hipnotizada pelo magnetismo que emanava daqueles olhos escuros, tão negros e misteriosos como uma noite de breu.

Fonte deste esboço de um retrato de Da Vinci.
 

Nessa mesma noite, vi-me sentada a seu lado. Sem me olhar nos olhos, ouvi o murmúrio da sua voz num tom doce, onde não se vislumbrava a mais leve sombra de mágoa nem revolta, e senti um impacto forte, de algo que tenho a certeza ter ouvido.

A prova, está registada nestas palavras manuscritas, quase sobrepostas umas nas outras, que li, estupefacta, nessa manhã ao acordar. Ali, naquele caderno que tenho na mesa-de-cabeceira, há meses, com o objectivo de que o sono não me viesse roubar a lembrança do sonho, estava escrito:

“Sinto-me derrotado, mas nada nem ninguém me venceu. Fui eu que desisti de lutar contra o vazio.”


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20 comentários:

  1. Sonhos são sonhos que ... por vezes ... são o espelho de grandes realidades.

    As últimas frases são de uma mensagem maravilhosa

    Votos de um dia feliz

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    1. ...ou, então, umas vezes adoçamos a verdade com sonhos, noutras, azedamos os sonhos com a realidade.

      Obrigada, Ricardo Valério!

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  2. O perfil tem força
    e a imagem de Da Vinci o reforça
    mas...
    por vezes acontece considerarem-se mortos
    e vão, assim, morrendo aos poucos

    não estranho que o tenhas trazido para os teus sonhos...

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    1. Também pode acontecer
      que, nos sonhos,
      os mortos-vivos
      precisem de nós
      e em nós procurem
      compreensão e abrigo.

      Ele faz parte dos meus sonhos...

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  3. Um excelente texto.
    Uma frase final muito intensa. Adorei.
    Abraço

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  4. Bolas, bolas, bolas!
    Já ia a meio da escrita, fui reler o 'caderno da mesa-de-cabeceira' e foi tudo para o galheiro.
    Bolas, novamente!
    Leio o texto, releio o 'caderno' e o comentário que aí fiz e fico às escuras, baralhado mesmo, talvez porque baralhado já ando eu, sei lá. Não quererá dar uma ajuda suplementar que me permita encontrar o fio à meada?
    Sem beijinho, não vá o vírus atacar.

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    1. Não, não, não!
      Desta vez, o único elo que liga este postal ao outro é o facto do caderno que foi posto na mesa-de-cabeceira, em virtude do trauma causado pela sua anterior ausência, ter finalmente sido utilizado. Agora, pergunto, quem o utilizou? O sonhador ou o personagem sonhado?

      Se encontrar a resposta, encontra o fio à meada...
      Isto não é só chegar e colher os frutos, há que subir à árvore...mais baralhado ou já esclarecido?

      Beijinhos.

      (Use máscara)

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  5. Por vezes é preciso desistir de lutar, para recomeçar por outras linhas!

    Beijos. Boa noite!

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    1. Pensar n'outras estratégias de luta, não é Cidália?
      Vai ver é isso! :)

      Beijinhos

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  6. Bom dia
    Será que os sonhos tem alguma coisa a ver com a nossa imaginação .
    A imaginação é muito fertil e os sonhos por vezes não tem explicação .
    Eu por exemplo nos meus sonhos por vezes não sei onde a minha mente busca tanta imaginação !!

    JAFR

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    1. Provavelmente, as coisas estranhas que sonhamos e para as quais não encontramos justificação, têm a ver com desejos que vivem escondidos em nós e nunca sequer tomámos consciência disso.

      Boa noite, JR.

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  7. :) Acaba de nos revelar uma curiosa página do seu caderninho de mesa-de-cabeceira, Janita.

    Por vezes, o que sonhamos parece tão real, tão real que, durante horas, sentimos relutância em atribuí-lo ao nosso imaginário. Ou ao nosso subconsciente? ;)

    Beijinho :)

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    1. Tenho de tomar mais precauções a respeito do sigilo sobre o que se passa comigo e o meu travesseiro, Maria João! :))
      Assim tipo segredos de alcova...ehehehe

      Beijinho. :)

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  8. Dou AQUI um pulinho só para te deixar um beijinho‼️

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    1. Obrigada, querida Teresa.

      Um beijinho também para ti.

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  9. Fiz todo o comentário e fui clicar novamente na tua outra crônica e perdi tudo! rsss Mas vamos lá, novamente:
    Janita, os sonhos são manifestações do nosso inconsciente. Sonho muito, mas fico indignada quando acordo antes do final derradeiro. Aí perco tudo.Também já fiz crônicas de sonhos meus, uma delas você comentou, lembra?
    https://taisluso.blogspot.com/2019/04/o-dia-em-que-chorei-em-amsterda.html
    Bem, é maravilhoso sonhar, li aluns de seus comentários e vi que tem gente que não sonha.
    Esse final, essa frase é maravilhosa:

    “Sinto-me derrotado, mas nada nem ninguém me venceu. Fui eu que desisti de lutar contra o vazio.”

    Também tenho um bloquinho e caneta na mesinha de cabeceira.
    Gostei muito de ler aqui, aplausos, amiga!
    beijo, um bom fim de semana!

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    1. Amiga Tais.
      Fiquei muito lisonjeada e feliz, pelo aval de uma cronista tão distinta, no apoio e carinho a estas minhas divagações "literárias".

      Ainda bem que a Tais deixou o link do post em que, no sonho, chorou em Amesterdão. Fui reler e de novo me emocionei. Como lhe disse, é um país ao qual me sinto muito ligada.

      Isto de escrever, é um dom que nem todos os que gostam de escrevinhar têm. Quem me dera ter sido abençoada, mas cada um cose com as linhas que tem. :) A Tais, sim, é uma escriba nata, para além de possuir outros talentos artísticos.

      Um beijinho e votos de um excelente fim-de-semana.

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  10. Um belíssimo quadro, coerente do princípio ao fim e, para que não houvesse devaneios, a autora deu-lhe margens para que não se esboroasse.
    Beijo.

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    1. Ufa..salva no momento de desabar, Poeta!
      Já me bastava a derrocada do "Vestido Amarelo"...

      Um beijinho! :)

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