"História do Sábio Fechado na sua Biblioteca"
de Manuel António Pina
Ilustração de Guilherme Castro
“Deve ser isto a alegria. Que estranho sentimento! De repente, fiquei de bem comigo mesmo, como se estivesse zangado e tivesse feito as pazes comigo.” - E recordou-se então de quando era criança, e a mãe, à noite, antes de adormecer, lhe aconchegava os lençóis e se debruçava sobre ele para lhe dar um beijo. “Há quanto tempo não me lembrava de minha mãe!”, murmurou. E, sem saber porquê (que bem que se sentia por não saber finalmente qualquer coisa!), tudo à sua volta, o mundo, a vida, ele próprio, lhe pareceu então fazer sentido, um sentido claro e misterioso que ele, que sabia tudo, não conseguia entender, mas sentia dentro de si como se tivesse encontrado uma coisa que há muito perdera e de que já se esquecera.
Por um momento, pensou em desistir de continuar o seu caminho ao encontro do Reino das Sombras. Mas a ideia de regressar à Biblioteca era-lhe agora mais insuportável que nunca e logo retomou a viagem.
Continuou a andar durante muitos dias e muitas noites até que, fatigado, se sentou numa pedra à beira da estrada e adormeceu de cansaço.
Então, em sonhos, apareceu-lhe de novo a Rapariga.
(A Rapariga agora não é uma máscara, é uma personagem real)
– Lembras-te de mim?
– Lembro, meu amor. E tu, lembras-te de mim?
– Como te podia esquecer? Lembras-te de quando passeávamos de mãos dadas junto ao rio?
– Fugíamos à escola e íamos nadar. Lembras-te daquele dia em que saltei o muro de um pomar e roubei uma romã para ti?
– Oh, já foi há tanto tempo! Sabes que ainda guardo essa romã?
Está seca e mirrada, tenho-a guardada na gaveta da mesinha de cabeceira e, às vezes, à noite, quando estou triste ou quando acordo cheia de medo, pego nela e fico durante horas a olhá-la.
(A Rapariga pega nas mãos do Sábio)
- Também as tuas mãos estão agora secas e mirradas como a romã que um dia me deste.
(O Sábio aperta com força as mãos da Rapariga)
– As tuas não, as tuas continuam aveludadas e suaves. (Acariciandolhe o rosto:) E o teu rosto é ainda belo como era. E os teus olhos doces. E o teu cabelo liso e macio.
– Não, meu amor. Também eu envelheci. Passaram muitos anos, casei, tive filhos e netos, e agora, lembrando-me de mim e de nós, também eu me sinto como se fosse uma recordação guardada numa gaveta.
– Procurei-te durante tanto tempo!
– E eu a ti. E só te encontrava nos meus sonhos –
Sabes que há muitos anos que eu não sonhava? Na verdade, nem sequer dormia, fechava os olhos mas tinha medo do sono e de tudo o que se esconde atrás das suas portas. Sobretudo dos sonhos. Temia sonhar contigo e acordar e tu não estares ao meu lado.
– Mas agora estou aqui e nunca mais te deixarei. Não acordes, não acordes…
– Não, não quero acordar.
(Dando-lhe a mão) – Anda, vem comigo. Vamos de novo passear à beira-rio. Agora nada nem ninguém poderá separar-nos.
Partem ambos, de mãos dadas, e desaparecem no Reino das Sombras.
– O Sábio abriu os olhos e verificou então, surpreendido, que estava no meio da sua Biblioteca, sentado, como sempre, à sua mesa de trabalho.
Como era muito sábio, depressa concluiu que tinha morrido. Tinha morrido precisamente no momento em que soube a última coisa de todas as coisas que havia para saber e, desde aí, não mais vivera. Apenas sonhara, sem saber que tinha morrido. Até a sua viagem ao Reino das Sombras tinha sido, também ela, um sonho.
Sem saber que tinha morrido… Afinal sempre tinha morrido sem saber que morria como estava escrito no Livro onde estão escritas, diz-se, todas as coisas da Vida e da Morte.
FIM
Esta é a história escrita por Manuel António Pina.
Quanto à moral nela contida, cada um deve entendê-la de acordo com as suas próprias experiências e vivências.
Pela minha parte, limitei-me a elaborar a sua publicação.
Muito obrigada pela atenção dispensada e pela vossa sempre grata companhia.
Não conhecia esta história do Manuel António Pina que me deixou a refletir sobre a minha maneira de ser.
ResponderEliminarReflectir, pesar os passos dados, contrabalançando com os que daremos futuramente, é o que nos diferencia dos outros animais.
EliminarObrigada, bom fim-de-semana.
Eu concordo contigo. O único problema é que, geralmente, só pensamos no que devemos fazer numa fase mais adiantada da vida e, por vezes, nessa altura já tomámos certas decisões que não podemos alterar. Por isso é muito vulgar dizermos que, se soubessemos o que sabemos hoje....não teríamos feito isto ou aquilo. É essa a dificuldade de viver!
ResponderEliminarBeijinhos
E quem disse que viver, ou melhor, saber viver, é tarefa fácil, UmaMaria? As decisões, que conduzem os nossos passos, sejam bem ou mal dados, tanto acontecem na mocidade como na idade madura.
EliminarPesá-los, é ter a capacidade de avaliar se, no futuro, usaremos o mesmo trajecto para equilibrar o seu peso, na nossa vida... :)
Beijinhos e bom dia.
A minha mãe costumava dizer que o que custa é saber viver....
EliminarBeijinhos e bfd
Bfs
EliminarTambém a minha me disse isso muitas vezes, dado o meu temperamento de dizer tudo o que penso e até o que não penso:
Eliminar"Viver não custa, o que custa é saber viver".
- E como minha Mãe, e como - responder-lhe-ia eu hoje!
Beijinhos e, claro, também eu te desejo um Bom fim-de-semana.:)
Bom deia
ResponderEliminarPor mais que se pense que se sabe tudo, é o pior dos pensamentos.
E quando penso na morte faço os possíveis para não pensar.
JR
Bom Dia!!
EliminarSó os néscios pensam que tudo sabem.
Já eu penso diferente. À medida que os anos passam, menos medo tenho da morte. Tenho é pavor da vida sem autosuficiência. Esse, sim, é o grande medo que faço por afastar da minha mente.
Bom fim-de-semana.
Quando era muito jovem e, por mero acaso, pensava na morte, todo o meu corpo se arrepiava. Hoje, já não. Para mim morrer é como adormecer. Como sabe sou mais de poesia que de textos. Mas, confesso, que gostei de ler.
ResponderEliminar.
Feliz fim de semana … Cumprimentos poéticos.
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Pensamentos e Devaneios Poéticos
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Morrer, adormecendo sem acordar, é o que dizemos ser uma morte santa. Essa, seria a forma ideal para se morrer, mas...quem decide?
EliminarSim, sei que o Ricardo é mais de poesia do que de prosa. Já tomei as medidas que, por um lapso inesxplicável, não havia tomado antes, ou seja, adicionei-o ali à lista da minha vizinhança.
Obrigada e um bom fim-de-semana.
Obrigada, Janita.
ResponderEliminarTodo o texto é tão bonito e poético que até o 'Reino das Sombras' parece menos sombrio. Gostei muito.
Beijinho e luminoso fim de semana.
Olá, Mª Dolores!
EliminarMuito obrigada por ter-me acompanhado nestas publicações extensas e algo desmotivadoras para os que gostam de leituras corridas. Felizmente não é o seu caso, logo, eu é que lhe fico grata.
Um beijinho também para si com votos de um excelente fim-de-semana.
A concepção, o nascimento, a vida, o sonho, o tempo, a morte... Enigmas... Assuntos complicados, passíveis de grandes e acesos debates.
ResponderEliminarQuanto ao texto, como diz, cada um fará a sua apreciação e tirará as suas conclusões.
Um beijinho e bfs.
Gostei muito das suas palavras e, considerando que concordo totalmente com o que disse, resta-me agradecer-lhe todo o tempo e a paciência que me tem dispensado.
EliminarUm beijinho, com o desejo de bom fim-de-semana, José.
Parabéns ao Manuel António Pina pelo maravilhoso texto.
ResponderEliminarFaz-nos sentir algo estranho que ao longo dos três capítulos se vai entranhando.
Obrigado, Janita, por teres partilhado.
Beijinho
P.S. hoje há música, da boa, lá no espaço.
António.
EliminarPenso que tudo o que escritores e poetas têm esrito, ao longo dos tempos, traz implícita uma mensagem. Nem sempre nós, leitores, a saberemos compreender, explicar e, até, encontrar.
De modo que só mesmo o autor saberia onde e o quê, queria transmitir. Mas que dá para pensar, dá.
Beijinho, e obrigada.
( vou já lá, antes que me disperse e o sábado acabe. )
Afinal , morremos a cada dia que passa, mas renascemos quando descobrimos as coisas boas da vida.
ResponderEliminarGostei imenso deste texto que nos deixa a pensar e eu gosto de reflectir, de tirar as minhas conclusões e aprender.
Beijinhos querida Janita
Gostei da tua ilação acerca da leitura deste conto, Manu.
EliminarCada leitor faz a sua apreciação, pois cada um de nós tem o seu próprio pensamento. Quando algo não se pode definir fica a adaptação do indefinido ao jeito que cada um lhe encontra.
Um beijinho, querida Manu.
Obrigada.
Obrigada pelo texto que é muito bonito e o seu cantinho também um😘😘
ResponderEliminarOlá, Sara.
EliminarMuito obrigada pela visita e pelo elogio ao meu Cantinho.
Logo possa retribuirei com gosto a sua visita.
Beijinhos.
Morrer ou não morrer, deixo isso para mais tarde. Se tiveres paciência e vontade os meus pensamentos lerás.
ResponderEliminarAgora sobre o sábio: morreu sem perceber que estava morto. Morreu sonhando com a vida. Morreu convicto da sua imortalidade por acreditar que tudo sabia. Morreu somente porque morreu. Sem querer filosofar sobre o assunto, mas já filosofando, há por aí muito morto que ainda acredita estar vivo. Mas isto vai muito para além deste texto de M.A.Pina!
Beijos vivos com sorrisos
Amigo, tenho vontade de ler os teus interessantes pensamentos :) e tento sempre ter a paciência suficiente para isso. Tens razão de queixa? Meu querido - segundo reza a história, no Livro onde estão escritas todas as coisas da Vida e da Morte, penso ser o Livro do Destino, dizia que o Sábio morreria quando tivesse aprendido todas as coisas que havia para aprender. Assim, morreu sábio, o Sábio...ponto final.
EliminarOlha, tens razão. Eu, por exemplo, tenho dias em que me sinto mais morta que viva.
Beijinhos vivos e sorrisos sorrindo. :)
Tenho muita dificuldade em interpretar um texto como este...
ResponderEliminarAbraço
Compreendo perfeitamente, minha querida Leo.
EliminarHá coisas que transcendem a nossa capacidade de verbalizar o que delas apreendemos.
Um abraço e um excelente fim de semana.
Tenho continuado a andar durante muitos dias e muitas noites até que, fatigado, me sentei numa pedra à beira da estrada mas não adormeci de cansaço. Daqui a nada levanto-me e vou prosseguir a caminhada!
ResponderEliminarEnquanto houver estrada...
Quem corre por gosto não se cansa, Rogério.
EliminarQue a sua caminhada o conduza ao que ambiciona.
Cada caminhante escolhe o seu trajecto até chegar ao destino final. Quem o quiser acompanhar, vai, quem preferir ficar sentado a apreciar a paisagem, fica.
Caminante no hay camino, el caminho se hace al caminar.
Ou, se preferir:
Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace el camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino
sino estelas en la mar.
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Estamos sempre a desnascer
ResponderEliminare a aprender em todos os apeadeiros da vida
Bj
Sempre, caro amigo Poeta, sempre.
EliminarA renascer também se aprende.
Um abraço, bom fim-de-semana.
Uma excelente conclusão para uma história tão real
ResponderEliminar😊
Assim também o entendeu o autor. :)
EliminarObrigada por ter acompanhado a história, Miguel.
Boa noite.
Uma história que gostei de reler.
ResponderEliminarAbraço, saúde e bom domingo
Sinceramente, Elvira, o final, a mim não me gradou tanto como a narrativa do conto fazia prever.
EliminarUm abraço e obrigada.
Queria que tivesse terminado antes dele acordar de novo na Biblioteca ou então que continuasse ainda para saber o que acontece depois.
ResponderEliminarum beijinho
Já somos duas a ter preferido outro final, Gábi.
EliminarO facto do Sábio nunca ter saído da Biblioteca, foi decepcionante.
Pode ter sido sonho, mas sonhar não é o mesmo do que viver, não achas?
Beijinhos, boa semana.